O naufrágio econômico da Alemanha

Imagem: David Peinado
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Por ZAK PAINE*

Parece ter havido planos norte-americanos para fazer da guerra na Ucrânia motivo para naufragar a economia alemã

A RAND Corporation nasceu após a Segunda Guerra Mundial como uma espécie de think tank de pesquisa e desenvolvimento que poderia reunir as melhores e mais brilhantes mentes dos Estados Unidos, para formular hipóteses e resolver problemas antes que eles surgissem. Embora sem fins lucrativos, e originalmente concebida como organização apartidária, essa organização, ligada à CIA e ao Pentágono, evoluiu para ser tudo, menos isso.

Suas publicações têm a pretensão de “desenvolver soluções para desafios de políticas públicas e ajudar a tornar as comunidades em todo o mundo mais seguras e protegidas, mais saudáveis e mais prósperas”. Elas proporcionariam a investigação e a análise de problemas enfrentados por governos e por outros agentes, mas sempre sob a lente do que melhor possa servir à elite governante dos Estados Unidos e às suas comunidades de informação e de defesa.

A Rússia, como contrapeso global ao domínio dos Estados Unidos, tem sido um assunto de particular interesse para a RAND e, mais especificamente, sua desestabilização e enfraquecimento. É claro, o resultado final de uma Rússia desestabilizada seria não mais que os Estados Unidos ainda mais fortes, não importa se, durante o processo, centenas de milhares de pessoas possam ser impactados pela guerra, fome ou instabilidade econômica. Se alguém navegar pelo site da RAND, pode encontrar centenas de links para blogs e para análises políticas com títulos como: Superdistender e desequilibrar a Rússia (Overextending and Unbalancing Russia), “A assistência de armas dos Estados Unidos à Ucrânia pode levar à escalada russa?” (“Could US Weapons Assistance to Ukraine Lead to Russian Escalation?”) e Caminhos para a escalada russa contra a OTAN na guerra da Ucrânia (Pathways to Russian Escalation Against NATO from the Ukraine War). Tudo isso bem recente.

É claro que a operação militar especial russa na Ucrânia não foi simplesmente uma ocorrência da noite para o dia e, desde seu início efetivo em 24 de fevereiro, os militares ucranianos receberam bilhões de dólares em assistência dos Estados Unidos e talvez também uma quantidade razoável de assessoramento estratégico da RAND.

A guerra é uma aposta complexa. Com um confronto dessas dimensões e tantos jogadores internacionais envolvidos, sem dúvida muitas motivações entram em jogo. Para a Rússia, segurança e proteção parecem ser a primeira das motivações. Com a ameaça potencial da adesão da Ucrânia à OTAN, tal como propôs a própria vice-presidente Kamala Harris, assim como a presença de biolaboratórios operados em conjunto com o Departamento de Defesa norte-americano, ou a presença de um contingente de mercenários organizado pela CIA e composto por forças especiais de antigos estados soviéticos, torna-se fácil entender o conjunto das motivações daquela parte.

Mas as motivações do atual regime norte-americano para o contínuo apoio à Ucrânia e a faceirice com que parecem estar mergulhando a Europa em um longo e escuro inverno econômico, isso já é um pouco mais nebuloso.

Tomemos como fio do novelo a RAND Corporation. A partir dele, quando examinamos a publicação ininterrupta de análises políticas sobre a destruição da Rússia e de seu povo, podemos encontrar as pistas para essas razões. As suas motivações, no entanto, ficam ainda mais claras quando se trata de análises que essa organização prefere não publicar no seu site.

A partir de um relatório de análise recentemente revelado, produzido pela RAND, datado de 25 de janeiro de 2022 e classificado como “confidencial”, John Mark Dougan divulgou o que poderia ser uma das motivações mais relevantes para os Estados Unidos incentivarem o conflito na Ucrânia: manter o poder.

O relatório de seis páginas intitulado “Sumário Executivo”, foi publicado antes mesmo do desencadeamento do conflito, mas após o aviso ameaçador do Departamento de Estado a propósito de “ataques de falsa bandeira patrocinados pela Rússia”. A versão vazada parece ser a fotocópia de uma brochura oficial da RAND, destinada à Casa Branca e à comunidade de segurança nacional norte-americana, ou, mais especificamente, de acordo com sua indicação de distribuição: ao chefe de gabinete da Casa Branca, à ANSA [?], ao Departamento de Estado, à CIA, à Agência de Segurança Nacional (NSA) e ao Comitê Nacional Democrata. Isso mesmo! O Comitê Nacional Democrata é “copiado” em um relatório de análise dirigido à comunidade de segurança nacional e a membros da Casa Branca de Biden.

A segunda página apresenta as referências padrão de direitos autorais e o palavrório sobre a missão da Rand. Na terceira página é onde chegamos às coisas mais interessantes.

Não se sabe se o relatório se estende para além das quatro páginas apresentadas nesse “Sumário Executivo”, mas os títulos e o texto incluídos nessas quatro páginas já são suficientemente incriminatórios. Explicitamente, a RAND antevê que a economia dos Estados Unidos está à beira do colapso. O endividamento crescente e a emissão descontrolada de dinheiro como resultado da desaceleração econômica provocada pela pandemia conduziram os Estados Unidos a uma posição notavelmente precária. Eles preveem que a contínua deterioração da economia provavelmente levará à derrota do Partido Democrata nas próximas eleições para o Congresso, abrindo a porta para um impeachment de Joe Biden na sua próxima legislatura: “O impeachment do presidente não pode ser descartado nestas circunstâncias, que devem ser evitadas a todo custo”.

Essa passagem, por si só, já demonstra o viés partidário do trabalho que está sendo feito pela RAND e sinaliza para a coordenação das táticas atualmente em prática pelo Partido Democrata e pelo Estado de Segurança Nacional, o “Estado Profundo”. Mas o mais chocante são as medidas que a RAND sugere para manter o controle da nação por ambos os grupos, a fim de proteger Joe Biden e os que manejam os cordéis nos bastidores.

O “Sumário Executivo” começa com o título “O enfraquecimento da Alemanha, e o fortalecimento dos Estados Unidos”, onde se insinua como objetivo final a afluência de dinheiro ao sistema bancário norte-americano, a partir das nações europeias e alinhadas à OTAN, com a esperança de que isso se faça sem custos militares e políticos significativos.

Na opinião da RAND, o maior obstáculo para atingir esse objetivo é a crescente independência da Alemanha. Esse problema parece ter sido agora resolvido com a guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia, que resultaram na morte dos gasodutos Nordstream e no corte de gás natural da Rússia para a Alemanha. Isso por si só, sem dúvida, levará a Alemanha a exigir assistência de outras nações europeias, caso queira salvar seus cidadãos quando o frio começar.

O controle sobre a Alemanha e sobre seu processo governamental de tomada de decisão parece ser a principal preocupação da RAND, que prevê que a desestabilização dos Estados Unidos levaria a uma aceleração da independência da Alemanha e ao inevitável fim da influência norte-americana. Quando isso acontecer, a RAND acredita que a França e a Alemanha se alinharão, juntamente com outras as nações da “Velha Europa”, criando um concorrente econômico e político para os Estados Unidos. Enquanto essas coisas puderem ser evitadas, o domínio global dos Estados Unidos poderia estar assegurado.

Previa-se que as sanções à Rússia e a pressão contínua exercida pela influência norte-americana na Europa incidiriam sobre duas coisas: o consumo alemão de gás barato da Rússia e a exportação russa de combustível nuclear barato para a França. A França e a Alemanha dependem severamente da eletricidade produzida pelas usinas nucleares francesas.

Esses dois elementos são os próprios pilares do modelo econômico alemão: gás e eletricidade. Com a guerra na Ucrânia, ambos foram ou muito em breve serão decepados. A Alemanha se voltará para o Ocidente, e a França será forçada a buscar combustível no Canadá e na Austrália, ambos solidamente sob influência dos Estados Unidos [e partícipes do condomínio internacional de espionagem e inteligência conhecido como Five Eyes (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia)].

Na seção intitulada “Crise Controlada”, a análise admite que através de “nossas ações precisas, foi possível bloquear o comissionamento do gasoduto Nord Stream 2”, e sugere que a Alemanha deva ser forçada a rejeitar por completo o gás natural russo, envolvendo-a, o mais possível, no “conflito militar na Ucrânia”. Nesse interim, a Rússia, terá interrompido todas as exportações de gás natural para a Alemanha. Problema resolvido!

Na época em que este texto foi escrito, o conflito na Ucrânia era pouco mais do que uma guerra civil entre o leste e o oeste do país. A Ucrânia Ocidental (alinhada aos Estados Unidos) agiu claramente como agressora contra a parte oriental. Vale a pena notar que os Estados Unidos estavam batendo os tambores de guerra antes que Putin movesse um só soldado para dentro das fronteiras da Ucrânia. Então, parece que o esforço para envolver a Rússia e a Europa no conflito ucraniano estava em planificação já há algum tempo.

O texto segue adiante, discutindo os métodos pelos quais o atual regime norte-americano pode fabricar os elementos necessários para criar uma crise econômica e humanitária. Isso inclui fazer uso dos ambientalistas alemães, na coalizão do primeiro ministro com o dogmático Partido Verde, citando nominalmente, inclusive, dois idiotas úteis [Annalena Baerbock e Robert Habeck], que poderiam ser proveitosamente orientados no sentido de ajudar a criar a atmosfera que se buscava.

Mesmo depois que os erros fossem percebidos, os danos duradouros terão já tornado difícil, para os líderes do atual e mesmo de um novo governo alemão, reavivar as relações com a Rússia, especialmente depois que a Alemanha fosse forçada, por seus parceiros ocidentais, a fornecer armas e munições à Ucrânia.

As consequências desses movimentos geopolíticos serão catastróficas para a Alemanha. Sem o gás russo, para que se possa evitar a morte em massa de cidadãos alemães, a indústria será forçada a fechar, produzindo escassez de produtos básicos, quebra nas cadeias logísticas e “eventualmente, a ocorrência de um efeito dominó, pela paralisação completa das maiores plantas químicas, metalúrgicas e de construção de máquinas, uma vez que que elas não têm lastro para reduzir o consumo de energia”.

A RAND prevê perdas para a Alemanha na casa das centenas de bilhões de euros, causando um colapso na sua economia, redução do PIB e, eventualmente, colapso total também da economia da União Europeia. Todas as moedas europeias se tornarão tóxicas e muito menos desejáveis que o dólar, levando a um inevitável fortalecimento da economia dos Estados Unidos e a um reposicionamento do país como a nação mais favorecida. É claro que, a contragosto, a China também se beneficiaria dessas condições econômicas da Europa.

Além dos problemas econômicos, espera-se migração em massa à medida que os empregos escasseiam e a mão de obra qualificada não seja mais necessária na Europa. Nesse caso, seu único recurso será ir para os Estados Unidos, onde a economia doméstica em expansão os receberá para ocupar os empregos que inevitavelmente serão criados.

A economia dos Estados Unidos é salva, a sociedade norte-americana é mantida distraída e os “riscos eleitorais” são reduzidos, mantendo os democratas no pleno controle, caso as previsões da RAND se concretizem. Neste momento, a totalidade dos planos do Estado de Segurança Nacional ainda não se concretizou, mas se assim o for, esse relatório de análise poderá se tornar muito significativo.

Enquanto isso, os Republicanos podem eventualmente se apresentar como um contrapeso a essas forças, pois ainda é previsível a retomada do controle da Câmara e do Senado em 2023, com a implementação de um processo de impeachment logo em seguida, além de investigações em grande escala sobre membros do Partido Democrata. Os melhores planos de ratos e homens ainda podem dar errado e, embora o Estado Profundo tenha se posicionado hoje nas trincheiras do poder mais do que em qualquer outro momento da história, o Partido Democrata pode ainda amargar uma grande derrota nas próximas eleições.

*Zak Paine é jornalista multimídia norte-americano, simpatizante do Partido Republicano.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

 

Referência


O documento da RAND pode ser acessado em: http://acloserlookonsyria.shoutwiki.com/wiki/Weakening_Germany,_strengthening_the_U.S.

 

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