O nazifascismo como ardil

Imagem: Görkem Dalgıç
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Por ROBERSON DE OLIVEIRA*

Ao se acusar a extrema direita brasileira de nazista, fascista ou neonazista, aquilo que parece ser uma crítica contundente, a denúncia de um inimigo da civilização, na verdade torna-se uma nuvem de fumaça

“Regra: Chamar as coisas pelo nome” (Lev Tolstói, Anotação em diário, 17/01/1851).

Já há algumas décadas se consolidou entre setores progressistas e de esquerda que militam nos vários níveis da luta política no Brasil a tendência de nomear várias frações da direita e da extrema direita brasileira de nazistas, fascistas, nazifascistas, neonazistas, neonazifascistas etc. De fato, em muitas ocasiões, essas frações da direita e da extrema direita reproduzem atitudes e simbolismos que remetem diretamente a este ideário, como que tentando legitimar a denominação atribuída por seus inimigos políticos. Além do mais, via de regra, não fazem a menor questão de contestar a denominação que lhes é dada, reagindo em algumas situações com indiferença e em outras, com escárnio.

Em geral, vários seguimentos progressistas e da esquerda argumentam que a vocação autoritária destes grupos, a perseguição implacável aos direitos dos trabalhadores e às suas organizações, o autoritarismo, a intolerância exacerbada, o uso da violência e da eliminação física dos inimigos como recurso privilegiado da ação política, a misoginia, o racismo, a homofobia, a aporofobia legitimam a rotulação dessa extrema direita como nazifascistas. A impressão que dá é que se recorre a esta denominação numa tentativa de representar esses grupos de extrema direita e seus simpatizantes como a encarnação do mal. E como o nazifascismo foi pródigo no recurso à barbárie e a crueldade, parece fazer sentido a associação.

Mas afinal, essa extrema direita é, de fato, é nazifascista?[1] Será que faz sentido denominar esses grupos de extrema direta de nazifascistas porque eles encarnam o mal, a crueldade, a intolerância, o exercício da violência aberta e desabrida contra seus inimigos políticos, no caso em questão, os trabalhadores, os pobres e os vulneráveis, os “diferentes”? Por essa via, Fulgencio Batista, Anastasio Somoza, Baby Doc, Mobutu, Suharto, Pinochet, Medici seriam todos nazifascistas, neofascistas ou afins? É razoável argumentar que regimes autoritários ou ditatoriais, intolerantes, violentos, cruéis e opressores constituem necessariamente linhagens do nazifascismo?

Essa discussão pode parecer estritamente acadêmica, excessivamente abstrata, bizantina até, sem muita relevância prática. Entretanto, do ponto de vista que assumimos aqui, já há algum tempo é urgente e relevante demarcar a total e radical impossibilidade de se associar aos setores de direita, de extrema direita e seus simpatizantes que existem no Brasil, e por extensão, em todos os países de extração colonial, o rótulo da nazifascistas ou afins.

Tal como no caso dos conceitos de totalitarismo e populismo (este, na versão dos anos (19)60), os dois de extração liberal, diga-se de passagem), a aplicação desse rotulo às frações das classes proprietárias reacionárias e seus agregados que operam no Brasil, mais obscurece, dissimula e camufla do que revela e explicita a real natureza do programa político que unifica as variadas frações da direita e da extrema direita no Brasil. O resultado é a criação de uma série de inimigos imaginários e alvos falsos para os setores progressistas e esquerda em geral que contribui para o quadro de desorientação generalizada que impera entre as forças civilizatórias e as camadas populares no país.

Só adiantado, e com um pouco de provocação, o surgimento de uma direita ou de uma extrema-direita nazifascista no Brasil constituiria um salto de qualidade inestimável. Pelo menos não teríamos que lidar com a situação humilhante, servil, degradante e repleta de simbolismo de um presidente da república batendo continência para a bandeira do Império. Ou alguém consegue imaginar Hitler ou Mussolini batendo continência para as bandeiras da Inglaterra ou da França? Uma extrema direita nazifascista no Brasil ao menos poderia ser um polo adicional de resistência às linhas de força que atualmente induzem o país a uma posição de submissão canina aos interesses do Império de plantão que caracteriza a quase totalidade das classes proprietárias brasileiras e seus agregados, na sociedade civil, no sistema político, nas classes médias, na burocracia estatal, nas Forças Armadas, nas forças Policiais e no Judiciário.

Uma extrema direita nazifascista no Brasil talvez pudesse contribuir de alguma forma para conter a tendência aparentemente inexorável que, de crise em crise, de privatização em privatização e em rodadas sucessivas de internacionalização de setores inteiros da economia nacional, vem “promovendo” o país, da condição de quintal do império, dominado por exploradores acampados, para a condição de um terreno baldio, submetido a várias linhagens do crime organizado.

No que se refere à esquerda, em especial, não deixa de ser intrigante o fato de que uma época na qual a exigência de “rigor” na declinação dos pronomes e na nomeação das variadas modalidades de existência e expressão da sexualidade, por exemplo, conviva de forma natural e confortável com a escandalosa falta de precisão e clareza na nomeação e caracterização do programa e dos objetivos políticos de fundo das forças que são as principais inimigas da chamada “diversidade”. Dito de outro modo, enquanto em um campo do debate político se exige adequação, “rigor” e “precisão” nas nomeações, em outro campo decisivo, o da nomeação precisa dos inimigos, aceita-se com naturalidade chamar “um urubu de meu louro”.

Nazifascismo? Neonazifascismo? Neofascismo?[2]

Vamos direto ao ponto. Por que é um erro oceânico denominar de nazifascistas, neonazistas e variantes afins, as várias frações da extrema direita, e seus agregados, incrustadas no Parlamento, no Judiciário, nas Forças Armadas, nas Forças Policiais civil e militar, nos meios de imprensa, no interior do setor empresarial, nas classes médias, entre os coachs, youtubers, influencers dos mais variados tipos? Por que as consequências políticas desse erro são desastrosas?

Para responder à primeira questão não há como escapar do resgate do conceito do fenômeno político nazifascista em seus aspectos essenciais. O passo seguinte seria verificar se faz algum sentido recorrer a este conceito para caracterizar as frações da extrema direita brasileira e o projeto que elas têm para o país.

Isto posto, numa primeira aproximação, há que se fazer um imenso esforço para não se dar conta da natureza imperial da ideologia e do programa nazifascista. Não se trata, entretanto, de um programa imperial qualquer. É um programa imperial que se articula numa determinada etapa do desenvolvimento capitalista na Itália e na Alemanha num contexto no qual o mercado mundial já se encontra dividido e hierarquizado entre algumas potencias industriais hegemônicas.

Diante disso, para assegurar a continuidade de seu desenvolvimento econômico e afirmar a soberania do estado nacional, o programa do nazifascismo tem como objetivo estratégico contestar e reordenar a ordem imperial já estabelecida e dominada pelo condomínio de potências capitalistas hegemônicas. Não existe a menor possibilidade de se compreender a natureza e programa do nazifascismo se não atentarmos para esse elemento essencial que, ao fim e ao cabo, garantia a organicidade de praticamente todos as demais características desse projeto.

É importante destacar que o nazifascismo não se reduz a um agregado de características. Apesar de vários elementos da ideologia nazifascista circularem na Europa há algumas décadas antes da sua chegada ao poder, Mussolini e Hitler não se limitaram a entrar num supermercado de ideias e sacar das prateleiras para seus carinhos aquelas com as quais eles sentiam mais empatia. A ideologia nazifascista implicava um projeto de nação e de estado, orgânico, coeso, orientado por um vetor de expansão imperial, bancado pelo grande capital italiano e alemão, cujo objetivo era projetar o poder econômico e militar da nação no cenário mundial e afirmar a soberania do estado-nação perante a outras potencias imperiais, custe o que custasse!

Quase tudo de relevante implementado no plano interno e externo pelo programa do fascismo e do nazismo na Itália e na Alemanha foi para atender a este objetivo estratégico. Se imaginarmos o nazifascismo como a cena de um quadro regido pelas regras da perspectiva, o projeto imperial contestador da hierarquia de poder em vigor na ordem internacional era o ponto de fuga do quadro, a referência que organizava e dimensionava todos os demais elementos que compunham a cena.[3]

De saída, precisa ser reconhecido a espantosa lucidez e clareza da liderança nazifascista, Mussolini e Hitler, em relação ao tamanho da encrenca que eles tinham pela frente e das imensas demandas que precisariam ser atendidas, no plano interno e externo, para atingirem seus objetivos estratégicos.

Nos dois casos, assim que chegaram ao poder, Mussolini e Hitler não hesitaram em desencadearam uma perseguição implacável contra todos os possíveis focos de oposição visando implantar uma ditadura que fosse capaz de assegurar a coesão interna necessária para o confronto externo de grandes proporções que eles não tinham a menor dúvida que iriam enfrentar. Daí vai derivar o caráter antiliberal, antidemocrático e anticomunista do nazifascismo, e, como contraponto, a incorporação do ideal corporativista.

Na concepção nazifascista, a convivência institucional com liberais, democratas e comunistas era inaceitável, pois cada um a seu modo, conspirava contra a necessária coesão social e política que o regime demandava para atingir seus objetivos imperiais na conjuntura dos anos (19)20 e (19)30. O liberalismo, era considerado uma ameaça crônica de instabilidade político-institucional pela defesa que fazia dos direitos individuais, dos direitos civis (liberdade de imprensa, liberdade de manifestação), por reconhecer a legitimidade da luta política-parlamentar entre os partidos legais e aceitar a rotatividade do poder através de eleições periódicas.

A democracia era um ideal igualmente inaceitável pois a coesão e continuidade do projeto não podia ficar ao sabor do debate aberto de ideias e da resolução dos conflitos por decisão de maioria. Do ponto de vista do nazifascismo, seu programa era claro. Não havia o que discutir. Tratava-se de preparar a nação para implementá-lo. Já o comunismo e os trabalhadores organizados eram considerados inimigos mortais, uma vez a doutrina contemplava a radicalização da luta de classes visando uma revolução que eliminasse a propriedade privada dos meios de produção, cujo sujeito seriam os trabalhadores. Isso era tudo que os nazistas queriam evitar pois essa doutrina ameaçava, a um só tempo, a coesão social e política demandada pelo programa e a própria razão de ser do nazifascismo, isto é, os interesses das classes proprietárias do grande capital italiano e alemão.

Os elementos antiliberais, antidemocratas e anticomunistas do nazifascismo também se justificavam no plano externo pois, a liderança nazifascista atribuía à França e a Inglaterra, regimes de filiação liberal-democrática, a responsabilidade da crise que atingiu Itália e Alemanha no pós-guerra. Os fascistas e nazistas não perdiam a oportunidade de mobilizar os ódios, os rancores e o sentimento de vingança das camadas populares contra a França e a Inglaterra nos seus discursos, uma vez que os italianos se sentiam traídos por terem suas ambições imperiais frustradas no Tratado de Versalhes.

Os alemães, por sua vez, se sentiam humilhados pelas imposições do mesmo tratado que reduziram a ruinas a outrora poderosa economia alemã. Só repetindo, um dos principais impulsionadores da ideologia nazifascista era o ódio visceral contra as potencias imperiais estabelecidas pois, e isso era um fato, elas bloqueavam a ascensão econômica da Itália e da Alemanha e suas aspirações a condição de potência tolhendo a afirmação da soberania nacional plena dos dois estados. É por isso que os nazifascistas não batiam continência para as bandeiras que representavam o império de plantão!

Com a URSS o problema era outro. Pairava sob o domínio do estado soviético os incomensuráveis recursos naturais os quais, principalmente a Alemanha, tinha em vista para impulsionar seu desenvolvimento industrial, afirmar sua soberania e forçar seu ingresso no condomínio das potencias imperiais hegemônicas (espaço vital – lebensraum). O nazifascismo considerava condição de sobrevivência o extermínio do socialismo realmente existente, tanto na sua manifestação interna (PC alemão) quanto no externo (pelo fato da URSS deter os recursos necessários que o grande capital alemão considerava necessário para a continuidade do seu desenvolvimento).

A coesão social e política interna e a capacidade de enfrentamento das potencias externas só podiam ser obtidas através de um estado forte. Daí o papel central que ele ocupa na ideologia do nazifascismo. Ele é o responsável por implantar e operacionalizar no plano interno (social, político e econômico) todas as medidas necessárias para viabilizar a concretização dos objetivos imperiais no plano externo. Em outras palavras, havia uma intima relação entre os objetivos da expansão imperial e as formas de organização do estado-nação deveria assumir para atingi-los.

Trabalhadores submetidos, mas com emprego; aliança sólida entre as classes proprietárias, o grande capital e o partido; privatizações eventuais de áreas estratégicas para os empresários nacionais; encomendas em grande escala do estado para as indústrias nacionais, particularmente para a indústria armamentista. As grandes encomendas do estado para o complexo industrial militar italiano e alemão era o pilar que sustentava o sucesso do programa nazifascista no plano interno e externo. No plano interno, geravam empregos e salários para os trabalhadores e potencializava a acumulação para o grande capital nacional.

No plano externo, o rearmamento em grande escala viabilizava o projeto imperial. As operações militares de conquista de territórios, mercados e recursos seria o meio pelo qual o estado-nação iria se qualificar para reivindicar e afirmar a sua participação no condomínio das potencias hegemônicas do sistema imperial em vigor.  Estas conquistas, por sua vez, também garantiriam as condições para a continuidade do desenvolvimento econômico, industrial e da acumulação privada exigida pelas classes proprietárias nacionais sem o apoio das quais o poder do estado-nação frente as outras potências não teria como se sustentar.

Já o racismo, incorporado como elemento decisivo da ideologia nazista, era um corolário dos principais programas de conquista e expansão imperial correntes no século XIX. As potencias imperiais europeias recorreram as teorias de superioridade racial do homem branco para legitimar a conquista e o recurso a todo tipo de violência para submeter os territórios, as populações e o confisco em grande escala dos recursos naturais na África na Ásia. As classes proprietárias dos EUA recorreram a sua versão das teorias de superioridade racial para justificar a conquista e o confinamento em campos de concentração, ou melhor, em reservas, os indígenas que ocupavam territórios alvos de poderosos interesses econômicos.

Os nazistas, em particular, adaptaram aos seus interesses o racismo que legitimava a expansão imperial das potencias europeias e dos EUA num duplo movimento. Num primeiro passo, interiorizaram para o contexto europeu o mesmo procedimento que as nações imperialistas europeias tradicionais vinham utilizando para submeter os povos da África e Ásia. Assim como os europeus alegavam uma suposta superioridade inata para justificar suas ações imperiais nestes continentes, os nazistas recorreram a uma atualização do racismo, alegando uma suposta superioridade dos povos germânicos frente aos demais povos da Europa para justificar suas ambições de poder imperial no cenário europeu.

O que os nazistas fizeram, basicamente, foi voltar contra as potencias imperiais europeias as mesmas ideias racistas que elas vinham utilizando para legitimar suas conquistas na África e na Ásia. O segundo passo foi incorporar, quase sem modificação, a doutrina do Destino Manifesto, segundo a qual a providência divina havia atribuído aos homens brancos anglo-saxões protestantes (wasp) dos EUA, a tarefa de expandir a experiência de liberdade e democracia que eles haviam implantado na América. Um corolário desta doutrina era uma suposta superioridade racial wasp para legitimar a conquista dos territórios e, no limite, o extermínio das populações indígenas do Oeste do subcontinente americano.

Como os indígenas constituíam um obstáculo a esta expansão e, além disso, havia uma grande diferença entre seus hábitos e costumes com os do homem branco, o passo para considera-los uma “raça” sub-humana não demorou a ser dado. O problema que eles representavam contou com dois tipos de soluções; a primeira consistia em removê-los dos territórios importantes economicamente e confina-los em campos de concentração, ou melhor, reservas, nas quais a extinção desses povos nativos era mais ou menos evidente no longo prazo (solução definitiva – ultimate solution); ou então torná-los economicamente úteis, empregando-os em campos de trabalhos forçados.

Os grandes grupos econômicos dos EUA consideravam que os indígenas eram um obstáculo à integração territorial, prejudicando a acumulação de capital e comprometendo o desenvolvimento econômico necessário para reforçar o poder e a soberania do estado-nação. Ou eles eram enquadrados para contribuir para estes objetivos ou deveriam ser extintos. Os nazistas, exceto a delegação divina, não sentiram a necessidade de fazer nenhuma alteração adicional no programa racista dos EUA.

Ele se encaixava perfeitamente ao destino que os nazistas pretendiam dar aos territórios da URSS e aos povos eslavos que eram considerados por eles exatamente como os indígenas americanos pelos homens brancos anglo-saxões protestantes dos EUA. O plano geral dos nazistas para a URSS e a Ásia em geral era conquistar e transformar o continente e sua população predominantemente eslava, num imenso campo de trabalhos forçados em benefício do grande capital alemão e do poder imperial do III Reich. Daí que o racismo desempenhava, com certas particularidades, um papel altamente funcional no programa imperial nazifascista, assim como vinha desempenhando nos demais programas imperiais concorrentes.

A convergência com o projeto imperial de assegurar o máximo de coesão interna para potencializar os vetores de expansão e conquista visando a afirmação do poder do estado-nação no plano interno e perante as demais potencias imperiais pode ser observado em outros aspectos da ideologia e do programa nazifascista, como por exemplo no controle dos meios de comunicação, na política cultural, na indústria cultural.

Havia um plano do Estado para cada uma destas esferas em linha com os valores ideológicos mais caros do nazifascismo, como os elencados até aqui. Esta caracterização poderia seguir, mas creio o painel apresentado, apesar de incompleto, é suficiente para demarcar alguns dos principais elementos da ideologia e do programa nazifascista, destacando seus objetivos, os elementos principais da doutrina e do programa e a maneira como eles se articulavam tendo em vista contemplar seus objetivos estratégicos.

Nazifascismo, neofascismo no Brasil?

Isto posto, cabe perguntar em que medida a ideologia e o programa nazifascista que temos explorado até aqui, podem ser relacionados ao que a extrema direita pensa e propõe para o Brasil?

Ora, um vislumbre, mesmo que precário e superficial, mostra de maneira evidente que, pelo menos desde o pós-II Guerra Mundial, a essência do programa da extrema direita para o pais resume-se em empreender todo tipo de esforço para reforçar sua extração colonial, reiterando sua condição de grande fornecedor de commodities agrícolas, minerais (e mais recentemente, de commodities financeiras e proteína animal) cuja exportação gere recursos suficientes para assegurar o fluxo de importação de “miçangas” de alto valor agregado, produzidas pelas grandes  corporações industriais do condomínio imperial administrado pelos EUA.

A rigor, a rigor, feitas as devidas adaptações em relação ao tipo de commodities que o país exporta e em relação ao tipo de mecanismo de extração do excedente, que se modificou ao longo do tempo, esse modelo de ordem geral pode ser retroagido até o séc. XVI. Nestes termos, a extrema direita existente no Brasil atual seria apenas o ponto de chegada de uma longa trajetória das classes proprietárias que há cinco séculos vem atuando de maneira sistemática e bem sucedida, sempre com o apoio dos impérios de plantão, para manter o país, essencialmente, como um fornecedor de produtos agrícolas e minerais para exportação.

Com a globalização, criou-se um novo tipo de commodities, a financeira. A nossa moeda, a taxa de câmbio, os títulos da dívida pública, o mercado de ações, todos esses ativos passaram também a fazer parte da prateleira de produtos financeiros através dos quais o condomínio imperial gerido pelos EUA extrai vultosos excedentes e valoriza seu capital liquido.[4]

No que se refere aos últimos quarenta anos, várias medidas têm sido adotadas para que este modelo, típico de extração colonial (caracterizado por submissão política e espoliação econômica), se reitere. Entre eles se destacam, a imposição de limites rígidos aos gastos e investimentos públicos de tal forma que políticas de estimulo à demanda interna, ao financiamento e a constituição de grandes grupos industriais nacionais fiquem bloqueadas (“campeões nacionais”). Além disso, cria-se um ambiente hostil aos investimentos privados no setor industrial mantendo os juros há décadas em níveis escandalosamente elevados, muito superiores aos praticados pelas grandes economias do G10, por exemplo.

Para isso é necessário que o gestor da política monetária, o Banco Central, fique imune às pressões que possam reduzir os juros, baratear o crédito e estimular o crescimento e o desenvolvimento. Isto é, O Banco Central precisa ser independente do Estado e submisso às demandas de remuneração do capital líquido (interno e externo). Foram adotadas medidas para a privatização das empresas estatais estratégicas, para evitar que elas possam ser utilizadas como instrumentos de desenvolvimento pelo Estado. Foram extintas as mais tímidas iniciativas de políticas industriais, como as praticadas por todos os países atualmente industrializados.

Os escassos recursos disponíveis para investimento, interno e de origem externa, foram canalizados para os setores de pesquisa voltados ao aumento de produtividade das commodities agrícolas, para elevar o volume destas exportações, reduzir seus preços e reforçar a dependência do país em relação à exportação destas commodities (Embrapa). Paralelamente, o poder aquisitivo da imensa parcela da população é mantido próximo ao nível da subsistência ou abaixo, pois uma elevação da demanda interna poderia ser traduzir em uma redução da oferta das commodities agrícolas e proteína animal destinada à exportação.

A redução da oferta destinada ao mercado externo, elevaria os preços destas commodities nos mercados globais e aumentaria os custos de importação pelas potencias do condomínio imperial. Em outras palavras, manter milhões de brasileiros próximos a linha de subsistência ou abaixo dela é funcional aos grandes interesses do condomínio imperial pois a transformação destes milhões de brasileiros em consumidores de commodities agrícolas e de proteína animal, se traduziria numa elevação dos preços que o condomínio imperial paga por esses produtos. Daí que o ingresso de milhões de brasileiros no mercado de consumo, em especial de produtos básicos, não é necessariamente uma boa notícia para o condomínio imperial e as classes proprietárias que faturam em dólares.

Apesar de muitos não se darem conta, a eliminação da pobreza, da miséria e da fome no Brasil, e a criação de um grande mercado interno não se reduz a um problema social e econômico. É, sobretudo, um problema geopolítico e envolve aspectos de soberania nacional. Não é por acaso que todos os governos que, até hoje, tentaram enfrentar esse problema entraram na alça de mira do gestor do condomínio imperial e foram abatidos em pleno voo.

Liberais, extrema direita e o grande consenso.

Em resumo, nos últimos quarenta anos, o programa da extrema direita, e da direita em geral, para o Brasil se resumiu a aplicar, sem anestesia, o programa gestado nas organizações multilaterais de crédito sediadas em Washington, que pode ser traduzido resumidamente na eliminação do papel do estado nas tarefas do desenvolvimento, no equilíbrio fiscal a qualquer custo, na liberalização comercial e financeira e nas privatizações dos serviços públicos. A rigor a rigor, o programa de todas as frações da direita no Brasil (dos liberais à extrema direita, da Faria Lima a Bolsonaro) já há algum tempo, é basicamente o mesmo. O objetivo final e estratégico é manter e reproduzir a nossa condição de “fazenda do mundo”. O que diferencia as frações da direita são as formas pelas quais esse objetivo pode ser atingido.

Os liberais e seus agregados acreditam que é possível manter o Brasil como “fazenda do mundo” preservando o cercadinho da democracia realmente existente no Brasil. Acreditam que através do esfacelamento da estrutura partidária, da liberdade de imprensa, da realização de eleições periódicas e apoio à pauta da diversidade, fornecimento de bolsas de estudo em Harvard para jovens da periferia e de classe média, entre outras coisas, é perfeitamente possível ir manobrando a correlação de forças políticas de tal forma a impedir que os grupos de esquerda e demais frações civilizatórias da nossa sociedade, reúnam forças para superar o modelo de “fazenda do mundo” no longo prazo.

A extrema direita, por sua vez, acredita que a melhor maneira de consumar o modelo “fazenda do mundo” é simplesmente exterminar os grupos opositores a este modelo. Isso explica seu flerte permanente com uma ditadura. Ela acredita que ao exterminar a esquerda, poderá tomar todas as medidas necessárias para reduzir definitivamente o país às condições de “fazenda do mundo” ou de protetorado consumado do condomínio imperial administrado pelos EUA.

Quem sabe até transformar o país no quinquagésimo primeiro estado do império ou mesmo num imenso território com estatuto semelhante ao de Porto Rico. Se tudo isso pode parecer um exagero, talvez seja o caso de lembrar que o Brasil passou nos últimos quarenta anos por um selvagem processo de privatizações e de desindustrialização.[5].

Desde a descoberta do pré-sal e adoção do sistema de partilha, o país está sob uma campanha feroz, ininterrupta e metódica de desestabilização. A participação da indústria no PIB, se encontrava ao final do governo de Jair Bolsonaro no nível observado nos anos imediatamente anteriores ao Plano de Metas (1955), de JK. Todo o esforço de industrialização empreendido durante o Plano de Metas, I PND, II PND foi praticamente destruído durante os governos FHC, Michel Temer e Jair Bolsonaro. As iniciativas adotadas durante os governos Lula e Dilma Rousseff foram insuficientes para conter as forças que se conjugaram, interna e externamente, para reprimarizar o país.

Recentemente temos observado o atual governo patrocinando novas iniciativas visando a reindustrialização do país. Não tenhamos ilusão. Neste exato momento o império está atuando para, no momento oportuno, abater mais essa iniciativa, como fez em 1954, 1964, durante a década perdida, com a imposição do Consenso de Washington, com o mensalão, com a operação Lava Jato, com o golpe de 2016, com a prisão do Lula… Os brasileiros podem não ter percebido, mas desde a descoberta do pré-sal, em 2006, o Império e seus agentes internos patrocinaram uma guerra, metódica e sistemática, contra as forças que pretendiam impor alguns limites a espoliação do país.

O golpe de 2016 representou a consumação da derrota destas forças! O que seguiu, é o normalmente aplicado a um país derrotado numa guerra. As tropas vencedoras iniciaram uma operação de destruição e saque. Os setores de construção civil, construção naval e petroquímico passaram por um processo seletivo de destruição, desativação e privatização. O pré-sal foi aberto para as petrolíferas americanas, em condições de exploração e preço do barril no poço que margeiam o confisco; a Petrobrás foi condenada a pagar vultosas indenizações nos EUA e tornou-se, nos anos seguintes, a petrolífera que pagava aos acionistas os maiores dividendos no mundo, os quais em sua maioria operavam na Bolsa de New York. Procedimentos em linha aos adotados pelo Império inglês após a vitória sobre a China na Guerra do Ópio, quando seguiu-se uma operação de confisco (de portos) e indenizações para remunerar a operação militar.

A vitória de Lula em 2022 e as inciativas de reindustrialização e de afirmação tímida e cuidadosa da soberania nacional que estão se seguindo constituem um interregno. O retorno dos liberais ou da extrema direita ao poder (ou de ambos), já em preparação, através de eleições ou de um novo golpe, trará como consequência um esforço para a revogação desse conjunto de inciativas e reenquadramento do país aos desígnios do império, a saber, reiteração do país à condição de fornecedor de commodities agrícolas, minerais e financeiras, no qual uma parcela pequena da população aufere renda para consumir “miçangas” de alto valor agregado generosamente ofertadas pelas corporações do condomínio imperial.

Os representantes da extrema direita (e poderíamos dizer, da direita em geral, incluindo os liberais) no Brasil se orgulham de reverenciar e bater continência para a bandeira do império. Quando enfrentam dificuldades, buscam refúgio ou auxílio, em Orlando, Miami, Langley (Virginia), Maryland e Washington. Dizem até que seus celulares se conectam automaticamente a rede Wi-Fi quando visitam a CIA e a NSA. A extrema direita não hesita em invocar a intervenção externa no Brasil, como já fez no passado, pois não vê contradição entre os seus interesses e os do império.

Sem forçar as cores, seu programa poderia ser reduzido a dois pontos essenciais: o primeiro, é a implantação de uma ditadura no Brasil e o segundo é, através desta ditadura, alinhar o país de maneira clara, explícita, integral e definitivamente aos ditames e interesses do império. Poucos se dão conta, mas diferentemente do que ocorre nos países europeus ou dos países que superaram sua herança colonial, a extrema direita brasileira não tem o mais remoto compromisso com a soberania nacional.

Eles vão para manifestações com camisa amarela, acenando a bandeira do império e pedindo intervenção dos marines. No contexto dos anos (19)20 e (19)30, alguém consegue imaginar um militante indo para uma manifestação fascista ou um nazista na Itália ou na Alemanha agitando bandeiras da Inglaterra ou da França? A extrema direita mundo afora é nacionalista e chauvinista. Os extremistas de direita no Brasil são pro-imperialista.

Em resumo, o programa de fundo que unifica as várias frações da direita brasileira, dos liberais (de todos os matizes) aos grupos mais extremados, é o de consumar o país, definitivamente, como um estado vassalo reprimarizado. Liberais e extrema direita divergem em relação a melhor maneira de consumar esse objetivo estratégico. Os liberais acreditam que é perfeitamente possível fazê-lo nas condições da democracia realmente existente no país. A extrema direita acredita que o melhor caminho é implantar uma ditadura, exterminar a esquerda e enquadrar definitivamente o país aos desígnios do império.

Atraso como fator de coesão.

Talvez fosse o caso de considerar com mais vagar esse ponto. Essa cisão que existe atualmente entre as classes proprietárias brasileiras (das frações liberais à extrema direita) reedita, com novos conteúdos, a cisão que surgiu entre as classes proprietárias brasileiras na transição do estatuto colonial para o de estado independente. Entre 1822 e 1840, a parte os diversos projetos que surgiram para o país no período, dois se destacaram como os mais influentes. O primeiro que surgiu logo após o rompimento com Portugal foi o “projeto” “federalista” ou “autonomista”.

Ele agregava as frações das classes proprietárias que desejavam assegurar um certo grau de autonomia para as províncias em relação ao poder central sediado no Rio de. O outro “projeto”, cujo principal expoente e defensor foi José Bonifácio, defendia um modelo de estado centralizado no qual as províncias teriam suas prerrogativas políticas severamente restringidas. O embate entre esses dois “projetos” se insinuou já nos debates por ocasião da elaboração da primeira constituição. Mas se radicalizou no período Regencial (1831/1840) quando disputas em torno da divisão de poder entre as frações aristocráticas que controlavam o poder central, sediado no Rio de Janeiro, e os grupos aristocráticos provinciais, evoluíram para uma guerra civil aberta com as revoltas da Cabanagem, no Pará, Farrapos, no Rio Grande do Sul, Sabinada, na Bahia, e Balaios, no Maranhão.

Estes embates acabaram se equacionando no início dos anos (18)40 com a implantação do II Reinado e a constituição de modelo monárquico mais em linha com o projeto das frações aristocráticas que defendiam um estado centralizado com consequentes restrição das prerrogativas dos poderes provinciais. Não é o caso aqui de entrar nas particularidades de cada uma destas revoltas, algumas separatistas e republicanas e outras que desejavam apenas ampliar as prerrogativas de poder nas províncias.

A questão que nos interessa aqui é as frações aristocráticas que decidiam os destinos do estado imperial pós-independência divergiram por um tempo sobre o modelo de estado a ser adotado, se centralizado ou federalista, mas havia um traço de fundo da nossa formação de extração colonial que as unificava. Esse elemento comum em torno da qual a convergência entre as várias frações aristocráticas era total, consistia na barbárie da escravidão. Eles podiam ir às armas por vários motivos, mas a comunhão em torno da escravidão era absoluta.

Essa coesão resoluta em torno da escravidão vai explicar muita coisa. Vai ajudar a compreender as motivações que estiveram por trás da implantação do II Reinado, dos conflitos com a Inglaterra até a abolição do tráfico em 1850[6]; vai ajudar a entender as dificuldades do abolicionismo e por fim, a grande atraso econômico acumulado pelo país em decorrência do fim da escravidão ter ocorrido apenas em fins do XIX. Enquanto o país tentava acertar as contas com a escravidão, a industrialização avançava aceleradamente em outros países e a corrida interimperialista colocava o conflito armado entre as potências na linha do horizonte.

A que vem esta digressão? Para que possamos ter uma perspectiva histórica da nossa situação e das questões que estão em jogo, já há algumas décadas, creio que é possível observar alguns paralelos entre os dilemas da construção do estado imperial e a trajetória recente das lutas que atravessam estado nacional brasileiro. No período Imperial, as frações aristocráticas tinham lá suas divergências em relação a que tipo de Estado monárquico a adotar (“federalista” ou centralizado), mas possuíam uma convergência de fundo, a saber, um compromisso inafiançável com a barbárie da escravidão.

Atualmente, as principais frações das classes proprietárias (dos liberais mais ilustrados à extrema direita tosca e todos aqueles no seu raio de influência) admitem algum grau de divergência em relação ao tipo de regime mais adequado ao país, uma democracia liberal ou uma ditadura, mas há algo em torno do qual elas mantêm uma concordância de fundo, um compromisso igualmente inafiançável, a saber, a consumação de um Estado vassalo reprimarizado.

Enquanto os países como EUA, Rússia, China, Índia (os poucos países do mundo que podem ser comparados ao Brasil quando consideramos, território, população, disponibilidade de recursos naturais para o desenvolvimento e para assegurar segurança alimentar e energética) empenham-se em reforçar a soberania dos respectivos estados-nação potencializando sua indústria, aprofundando sua capacitação tecnológica, incrementando o poder das suas forças armadas, o seu arsenal nuclear, etc… no Brasil, as classes proprietárias e seus porta-vozes colocam todo tipo de obstáculo e objeções a programas de reindustrialização, assumindo abertamente e sem pudores, o objetivo estratégico de consumação de um Estado vassalo reduzido à condição de fazenda do mundo.

No fechamento do primeiro quarto do século XXI no Brasil ainda não acertou as contas com a soberania nacional de seu estado-nação e ainda discute se é o caso de se industrializar ou não. Enquanto isso nos EUA, Rússia, China e Índia essas duas questões estão resolvidas há décadas, em alguns casos, há mais de um século.

Retomando a questão

Isso posto, vamos retomar a questão inicial proposta. O que esse programa e esse papel que a extrema direita arroga para si no Brasil tem a ver com o nazifascismo?

A essência da ideologia e programa da extrema direita (e da direita como um todo) para o Brasil é o exato oposto da ideologia e do programa do nazifascismo.

O traço essencial da ideologia da extrema direita brasileira é o da reconversão colonial, da desindustrialização, do esmagamento da soberania nacional. Tudo que ela pensa e faz visa manter a pais na condição de quintal do império. Mais recentemente, ela tem trabalhado para a promoção do país a terreno baldio. Vide a ação destrutiva exercida entre 2019 e 2022 na economia, nas políticas públicas voltadas para o desenvolvimento, ciência, educação, saúde, cultura, meio ambiente, tecnologia de ponta, etc.

Já a ideologia e o programa nazifascista caracterizavam-se como um projeto imperial de expansão, conquista, de desenvolvimento industrial e de afirmação da soberania do estado-nação, custe o que custasse! Não hesitaram em atear fogo ao mundo para atingir o objetivo de incluir a Itália e Alemanha no condomínio das nações industrializadas, imperiais e hegemônicas.

Por que vias foi possível associar uma ideologia imperial de expansão agressiva e de afirmação do estado-nação através de uma guerra em escala mundial a uma extrema direita que assume a condição de jagunço de um poder imperial externo sem o menor compromisso com a soberania e a afirmação do Estado nacional é um mistério que mereceria ser desvendado. No caso do nazifascismo, a ditadura era um dispositivo político para assegurar a coesão interna, projetar o poder do estado nação no cenário internacional e afirma-lo entre as potencias. A extrema direita brasileira sonha, há décadas, com uma ditadura que enquadre a nossa economia e o estado nacional, de forma definitiva e consumada, aos interesses do império.

A palavra que define a extrema direita no Brasil não é, fascismo ou nazismo ou qualquer coisa parecida. A extrema direita brasileira não guarda o mais remoto parentesco com o nazifascismo. A barbárie que a caracteriza é herdeira direta da nossa tradição colonial e escravista.[7] Ela cumpre papel equivalente ao jagunço do senhor de engenho colonial. Existe para garantir a ordem da escravaria na grande propriedade exportadora na expectativa de proteção e recompensas.

A alcunha de jagunço, capitão de mato, capanga ou, para aqueles que preferem uma terminologia mais atualizada, de proxy do império, lhe cai bem pois é um agente a soldo, feroz na condição de mando, mas de submissão e obediência canina ao gestor do império, sempre na esperança de proteção e recompensas. Já a barbárie nazifascista remete a outra herança, resultante de um processo histórico distinto no qual a conquista da unidade nacional, da modernização industrial e da busca de um lugar entre as potências, ocorreu num contexto de exacerbação dos conflitos interimperialistas.

O nazifascismo é um agente de interesses internos, capitaneado pelo grande capital nacional. Visa a promoção do desenvolvimento industrial e de afirmação da soberania do estado-nação confrontando outras potencias e recorrendo a guerra, se necessário. Trata-se de uma descrição! No nosso caso, as frações da extrema direita brasileira disseminadas no interior das Forças Armadas, do Judiciário, da burocracia estatal, da grande imprensa, das classes proprietárias, das classes médias, etc. concorrem alucinadamente entre si para promover no país os desígnios do império de forma mais eficiente, sempre na expectativa de proteção e recompensas.

No caso do nazifascismo, os interesses que orientavam a doutrina eram contrários, opostos aos das demais potências imperiais no sentido de que o ganho de um lado implicava em perdas do outro. O resultado foi o confronto, a guerra. No caso da extrema direita no Brasil, os seus interesses são convergentes, coincidem com os interesses do império, e são contrários, antagônicos ao desenvolvimento, ao bem estar da nação e a afirmação da soberania nacional.

Daí a sua atuação pela secular submissão política, pela reprimarização produtiva, pela reprodução da pobreza, da miséria e da fome e de todas as outras mazelas que bloqueiam o desenvolvimento do país. Há elementos comuns, mas suas propostas são completamente distintas, excludentes, incomensuráveis. Não estamos diante de uma manifestação particular de um fenômeno geral (nazifascismo, no caso). São fenômenos distintos, de natureza distinta e proposições centrais antagônicas.

Enfim, por que é um erro de dimensões trágicas utilizar a denominação de nazifascistas para designar a extrema direita no Brasil? Qual o efeito prático, ou talvez, mais precisamente, qual o efeito colateral desse procedimento muito comum na esquerda?

O império dispende anualmente centenas de milhões de dólares com suas agências de notícias e com a sua indústria cultural (cinema, música, shows, etc.) para veicular em países ocupados, ou submetidos, ou de frágil identidade cultural ou os que atendem às três condições, uma imagem de paladino da liberdade, defensor da justiça e inimigo dos opressores e dos ditadores. Em outras palavras, o império dispende um montante de recursos significativos para fixar a sua imagem de “bom moço”, defensor das melhores causas e de um mundo baseado em regras (criadas por quem?).

Sempre que denominamos um representante da extrema direita no Brasil, ou o que dá no mesmo, um agente do império, de nazista, fascista ou afins, a pata do império desaparece. Na ausência de um contraponto, o campo simbólico fica livre para a fixação pelas agências de notícia e pela indústria cultural do império a sua imagem de paladino da liberdade e da justiça. Quando denominamos um(a) extremista de direita brasileira de fascista porque ele defende a implantação de uma ditadura no Brasil, por exemplo, estamos ajudando a camuflar este agente, pois ele é na verdade, um proxy do império.

Mais uma vez, para a extrema direita brasileira a implantação de uma ditadura só faz sentido se for parta consumar os desígnios do império no que ele considera um quintal de mais de oito milhões de quilômetros quadrados. Ao se acusar a extrema direita brasileira de nazista, fascista, neonazista, etc… aquilo que parece ser uma crítica contundente, a denúncia de um inimigo da civilização, na verdade torna-se uma nuvem de fumaça, ou uma camuflagem que esconde a real natureza do alvo da crítica ou da denúncia. Eles sabem disso, provocam …e se divertem! E o império, penhoradamente, agradece!

Fulgencio Batista, Anastasio Somoza, Baby Doc, Mobutu, Suharto, Pinochet, Medici, Rafael Videla e outros tantos ditadores do mundo pós colonial eram agentes de poderes imperiais externos. Há um nome consagrado para este tipo de regime. Chama-se protetorado!

Eles podem existir sob várias formas ou gradações, mas basicamente o protetorado é um estado vassalo, governado por lideranças oligárquicas locais, nativas, mas tuteladas por potencias imperiais que as sustentam, fiando-se, em última instância, em presença militar indireta através ligações profundas e/ou aparelhamento das Forças Armadas do estado submisso que fica reduzida praticamente a uma Guarda Pretoriana imperial.

É com esse modelo de regime que a extrema direita brasileira flerta já há bastante tempo tendo em vista consumá-lo de forma definitiva. Não se trata de nazismo, fascismo ou neofascismo mas simplesmente de agentes que pretendem cumprir o papel de jagunços do império. Talvez seja o caso de nomeá-los pelo que de fato são.

*Roberson de Oliveira é doutor em História Econômica pela USP.

Notas


[1] Essa discussão não é nova. José Chasin, em seu estudo publicado em 1978, O Integralismo de Plínio Salgado procura demonstrar a inadequação de se considerar o Integralismo uma versão local do nazismo. Este artigo procura recuperar o argumento básico da tese relacionando-o às frações correntes da extrema direita brasileira e ao contexto das relações Brasil-EUA no pós II Guerra Mundial.

[2] O objetivo aqui não fazer um retrospecto bibliográfico do assunto. Trata-se basicamente de recuperar os elementos essenciais da ideologia e do programa nazifascista em torno dos quais há relativo consenso na bibliografia, enfatizando a organicidade desses elementos no contexto da doutrina e do programa. Dito de outra forma, a ideia é apresentar o conceito de nazifascismo como um todo orgânico, situado historicamente abandonando o método de demarcar o conceito fazendo uma lista de características. Para uma introdução ver, Hobsbawm, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

Mazzucchelli, Frederico. Os anos de chumbo: economia e política internacional entre guerras. São Paulo, Editora UNESP, Campinas, SP: FACAMP, 2009.

Saes, Flávio A. M. de; Alexandre M. História Econômica Geral. São Paulo: Saraiva, 2013.

Konder, Leandro. Introdução ao Fascismo. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 1977.

Losurdo, Domenico. Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917. São Paulo: Boitempo, 2017.

————————-. Contra História do Liberalismo. Aparecida SP : Ideias & Letras 2006.

————————-. Guerra e revolução : o mundo um século após Outubro de 1917. São Paulo : Boitempo, 2017.

————————-. Stálin e Hitler: irmãos gêmeos ou inimigos mortais? In 1917, O ano que abalou o mundo. São Paulo : Boitempo : Ed. SESC SP, 2017.

Mattei, Clara E. A ordem do capital : como os economistas inventaram a austeridade e abriram a porta para o fascismo. São Paulo : Boitempo, 2023.

[3] Sobre os conceitos de “império”, “condomínio imperial” aos quais recorremos aqui ver

Fiori, José L. (org.) Estados e moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis RJ : Vozes, 1999.

———————– O poder americano. Petrópolis RJ : Vozes, 2004.

Wood, Ellen M. O Império do Capital. São Paulo : Boitempo, 2014.

[4] Fiori, José L., Medeiros, Carlos (org.) Polarização Mundial e crescimento. Rio de Janeiro : Vozes, 2001.

[5] Palma, José Gabriel. Quatro fontes de “desindustrialização” e um novo conceito de “doença holandesa”. Trabalho apresentado na Conferência de Industrialização, Desindustrialização e Desenvolvimento organizada pela FIESP e IEDI, Centro Cultural da FIESP, 28 de Agosto de 2005.

—————————. “De-industrialisation, ‘premature’ de-industrialisation and the dutch-disease”. Revista NECAT – Ano 3, nº5 Jan-Jun de 2014.

DEPECON – FIESP/CIESP. Perda de Participação da Indústria de Transformação no PIB, São Paulo Maio/2015.

[6] Alencastro, Luiz Felipe. “O fardo dos bacharéis” Novos Estudos CEBRAP, n 19, dezembro de 1987 pp 68/72.

[7] Souza, Jessé. A elite do Atraso. Rio de Janeiro : Estação Brasil, 2019.


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