O negro da Filadélfia

Imagem: Büşranur Aydın
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Por TIANNA S. PASCHEL*

Prefácio à primeira edição em português do livro de W. E. B. Du Bois.

1.

É com grande entusiasmo que escrevo este prefácio à primeira edição em português do importante e rigoroso livro de W. E. B. Du Bois, O negro da Filadélfia. Em primeiro lugar, quero parabenizar a Cristina Patriota de Moura pelo trabalho bem executado. Esta tradução exigiu um entendimento profundo dos debates intelectuais nos quais Du Bois esteve envolvido, os contextos culturais, políticos e econômicos contidos no cerne do livro e obviamente um domínio da língua inglesa. É uma imensa empreitada tanto em virtude da importância do livro quanto de sua extensão.

Escrevo este prefácio na condição de mulher e intelectual negra estadunidense que realizou seus estudos no Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, durante a primeira década dos anos 2000, onde não havia sequer menção a Du Bois em qualquer uma de nossas disciplinas obrigatórias. Recordo-me de haver feito um apelo passional a meu professor de Teoria Social à época para que Du Bois fosse incluído no cânone de teoria sociológica após um semestre em que foram lidos exclusivamente autores europeus do sexo masculino, um dos quais (Max Weber) fora influenciado por Du Bois, mas sem menção às suas contribuições. Escrevo este prefácio quase vinte anos depois, quando as areias já se moveram consideravelmente e quando o trabalho de Du Bois, e em particular O negro da Filadélfia, vem recebendo renovada e, muitas vezes, nova atenção entre os cientistas sociais e sociólogos em particular. O que ofereço neste pequeno prefácio é minha própria perspectiva acerca dos motivos pelos quais esta obra é tão relevante e porque sua tradução para o português é não somente inédita, mas absolutamente necessária.

2.

Em 1896, um Du Bois de 28 anos chegava à Universidade da Pensilvânia não como professor, ou mesmo palestrante, mas com a tarefa específica de conduzir um estudo da população negra do Seventh Ward (Sétima Região) da Filadélfia. Apesar de seu pedigree – estudara em Harvard e na Europa, proferira palestra como convidado na Alemanha –, ele não foi considerado para uma vaga de professor ou mesmo de instrutor. Ao invés disso, foi contratado como instrutor assistente com a ressalva de que não poderia lecionar para estudantes brancos, uma restrição que essencialmente o barraria da docência por completo.

Posteriormente, em um ensaio autobiográfico, Du Bois lembrava-se de que só conseguira lecionar uma vez, quando levou um grupo de estudantes da universidade para uma visita a uma área negra degradada, um black slum. Ele também disse, acerca de sua experiência na Universidade da Pensilvânia: “Me ofereceram um salário de $ 800 pelo período limitado de um ano. Não me deram uma posição acadêmica de fato, nem escritório na universidade ou reconhecimento oficial de qualquer tipo: meu nome foi até omitido do catálogo; não tinha contato com estudantes e muito pouco com membros do corpo docente, mesmo os do meu departamento. Com minha esposa, desde três meses me instalei em um cômodo acima de um refeitório administrado por um College Settlement, na pior parte da Sétima Região. Vivemos lá por um ano em meio a uma atmosfera de sujeira, beberagem, pobreza e crime. Assassinatos ocorriam à nossa porta, a polícia era o nosso governo e a filantropia aparecia com conselhos periódicos”.[i]

Compreender o contexto no qual O Negro da Filadélfia foi escrito revela muito sobre os debates que estão no cerne da obra. Apesar de ter sido escrito sob os auspícios de uma universidade abastada do Norte dos Estados Unidos, poucos recursos foram disponibilizados a Du Bois. Mais que isso, Du Bois escrevia sobre os negros da Filadélfia em um momento de pânico moral em relação à crescente população negra não somente na Filadélfia, mas em todo o Norte dos Estados Unidos. De fato, nas décadas após a guerra civil, muitos dos anteriormente escravizados estavam se mudando para cidades do Norte como a Filadélfia em ritmo crescente, buscando melhores oportunidades, desejando paz e rezando para se livrar da explícita violência racializada.

Em vez de serem acolhidos de braços abertos nessa cidade progressista, eles eram recebidos com o discurso de que sua presença estaria ocasionando decadência moral e arruinando a cidade. A ideia vigente era que essa população crescente iria de alguma forma contaminar a cidade, uma ideia baseada no racismo pseudocientífico que vinculava a negritude a hipersexualidade, estruturas familiares instáveis, alcoolismo e atraso moral de maneira mais geral. Talvez de maior importância fosse a grande preocupação com o que a sua presença significaria para a política da Filadélfia, dado o seu crescente poder de voto e a possível corrupção e compra de votos que acontecia na Sétima Região da Filadélfia, onde o estudo de Du Bois estaria ancorado.

Além desse pânico moral e da ansiedade política, havia o fato de que Du Bois escrevia contra diversas tendências poderosas do discurso público e da abundante literatura acadêmica acerca do assim chamado “problema Negro”. Primeiro, havia a tendência de ver o problema Negro como inerente aos negros. O estudo encomendado havia sido formulado para sempre pensar acerca do problema negro como uma análise do que havia de errado com os negros da Filadélfia por não estarem vivendo o mesmo tipo de ascensão social que outros grupos viviam na cidade.

Essa premissa seria difícil de superar dado o escopo do projeto e o peso ideológico do racismo à época. Mais fundamentalmente, Du Bois estava escrevendo contra a tendência de ver pessoas negras como não inteiramente humanas, desprovidas da capacidade de se “desenvolverem”. Em outro de seus livros canônicos, Black Reconstruction in America 18601880, Du Bois conclui o prefácio com a seguinte advertência: “Irei contar esta história como se Negros fossem seres humanos comuns, ciente de que essa atitude irá já de início limitar a minha audiência”.[ii] Imaginemos, então, o possível leitor vislumbrado por Du Bois ao escrever O Negro da Filadélfia quase quatro décadas antes. A humanidade das pessoas negras estava longe de ser presumida.

Desta maneira, a obra de Du Bois era profundamente pessoal. Em seu canônico artigo “The Race for Theory”,[iii] a feminista negra Barbara Christian afirmou notoriamente que “aquilo que escrevo e a maneira como escrevo é feito para salvar a minha própria vida”. No caso de Du Bois, isso certamente deve ter sido verdade, especialmente quando ele embarcou no estudo. Ao argumentar de maneira rigorosa e poderosa que os Negros eram produto de sua história e condições estruturais e ideológicas, ele também se colocava como produto de suas próprias circunstâncias.

Ele era formado e mais do que capacitado, mesmo que isso não fosse reconhecível por seus alegados pares na Universidade da Pensilvânia, ou de Chicago, ou alhures. Dessa forma, o projeto de Du Bois que culminou em O negro da Filadélfia era um trabalho de grande urgência e importância. Para além de suas curiosidades acerca do mundo, Du Bois, como muitos intelectuais afro-americanos daquela época, inscrevia na existência a sua própria humanidade. Vemos isso nos trabalhos que o precederam, como o de Anna Julia Cooper e Ida B. Wells, bem como nos trabalhos que vieram depois.

Não é possível cobrir todas as inúmeras contribuições de O negro da Filadélfia, e muitas delas são bem apontadas pela tradutora e pelo revisor técnico deste volume, que escrevem a apresentação. Não obstante, elencarei duas que considero especialmente importantes para pensarmos sobre a vida desta grande obra em português.

3.

A primeira é a análise espacial e relacional de poder e desigualdade que o autor desenvolve neste trabalho. Um dos primeiros movimentos que Du Bois faz na obra é o de uma intervenção analítica e metodológica para pensar a Sétima Região da Filadélfia como uma cidade dentro da cidade. Ele foi incumbido da tarefa específica de estudar a Sétima Região da Filadélfia, mas não fez assim. Em vez disso, argumentou que seria impossível estudar um slum sem estudar sistematicamente outras partes da cidade.

Como ele afirma sucintamente na página 40 que “um slum não é um simples fato, é um sintoma, e conhecer as causas removíveis dos slums negros da Filadélfia requer um estudo que vá muito além dos distritos assim denominados”. Assim, ele desenvolve uma análise relacional que nos chama a atenção tanto para os grupos sociais quanto para o ambiente construído, a história e a cultura de um lugar.

Du Bois aplica essa abordagem perfeitamente no Capítulo II, no tópico inteligentemente intitulado “Os problemas negros da Filadélfia”: “[…] o estudioso deve reconhecer claramente que um estudo completo não deve se limitar ao grupo, mas deve observar especialmente o ambiente; o ambiente físico da cidade, seções e casas – o ambiente social muito mais poderoso –, o mundo circundante de costume, desejo, capricho e pensamento que envolve esse grupo e influencia de maneira poderosa seu desenvolvimento social” (neste volume, p. 39).

Em última instância, seus achados revelam que os negros não são excepcionais e que suas vidas refletem as maneiras como estão sujeitos a certas condições estruturais e ideológicas. Uma demonstração disso é a atenção dada por Du Bois à heterogeneidade da população negra da Filadélfia e suas histórias diversificadas de imigração. Entre outras coisas, essa manobra auxiliou na desnaturalização da relação entre negritude e pobreza, uma lição ainda relevante para nós atualmente. De fato, tanto dentro da academia quanto fora, há um frequente deslizamento entre raça e classe, ou mais especificamente entre negritude e pobreza, um reducionismo que é frequentemente reforçado pela falta de atenção ou reconhecimento a uma classe média negra.

A segunda contribuição que eu gostaria de destacar aqui tem a ver com a maneira de pensar sobre a desigualdade racial em um lugar que se imagina como estando fora dos legados mais explícitos do racismo e da escravidão. De fato, somente uma geração após a escravidão formal e da Guerra Civil, cidades do Norte como a Filadélfia – que lutou contra a confederação – se pensavam como mais evoluídas e civilizadas em relação a questões de raça. A escravidão não foi tão proeminente no estado da Pensilvânia (onde está a Filadélfia) quanto nos estados do Sul, e fora gradualmente abolida décadas antes de o ser nacionalmente.

Du Bois tem consciência disso, e diz logo no início do livro que escrevia explicitamente contra uma tendência de pensar a vida no Norte seja como uma vida de liberdade verdadeira ou como mais opressiva do que no Sul. Em vez disso, ele propõe pensar a vida dos negros na Filadélfia como uma questão empírica, “para extrair da massa complicada de fatos evidência tangível de uma atmosfera social que cerca os negros”. Ele obviamente se situa a meio caminho. O fato do estudo ser realizado em uma cidade do Norte é crucial porque seus achados revelam que, mesmo na ausência do racismo ostensivo e legalmente sancionado como o que existia no Sul dos Estados Unidos, o racismo ainda vigorava e a desigualdade racial ainda era reproduzida na Filadélfia de maneiras que produziam impactos devastadores sobre as vidas das pessoas.

As implicações da obra são que leis universalistas cegas à cor podem estar muito longe de produzir, na prática, o universalismo sem referência a cor, uma vez que mecanismos ideológicos extralegais podem agir como poderosos motores para a perpetuação da desigualdade racial. Esta lição pode ser de especial interesse para quem estuda o Brasil.

4.

O negro da Filadélfia oferece ao mundo um modelo de como utilizar todos os recursos metodológicos disponíveis para realizar trabalhos acadêmicos de rigor empírico, audácia teórica e urgência política. A obra é um testemunho da humanidade e resiliência das pessoas negras, mesmo enquanto ainda lutamos para viver vidas com dignidade às margens da cidadania estadunidense.

Porém, por mais admirável, pioneiro e intelectualmente profícuo que seja O negro na Filadélfia, o livro não deixa de ser somente uma peça na composição da vasta obra e do legado intelectual de Du Bois. Há pouco mais de uma década, a Sociologia vem começando a reivindicar e revisitar Du Bois. Essa é uma guinada admirável e necessária na área. Mesmo assim, ao passo que reivindicamos Du Bois, devemos também nos lembrar da extensão e da genialidade do trabalho de sua vida inteira.

O Du Bois de O negro da Filadélfia era um jovem Du Bois, um verdadeiro empirista, um sociólogo, possivelmente o primeiro de sua categoria nos Estados Unidos. Porém, ao experienciar o mundo como intelectual e ativista, ele necessariamente se tornou interdisciplinar em seus métodos, continuando a analisar arquivos e a conduzir trabalhos etnográficos, ao mesmo tempo em que incorporou outras maneiras de narrar histórias afeitas às humanidades.

É preciso lembrar que Du Bois escreveu sobre o que Émile Durkheim chamaria de “fatos sociais” de maneira obstinadamente apegada às evidências, mas também escreveu poesia ao longo de sua vida. Não podemos nos esquecer que Du Bois contou histórias multidimensionais sobre as vidas complexas de negros estadunidenses, e acerca das contradições da democracia estadunidense e do capitalismo por meio das narrativas empiricamente amarradas que vemos em O negro da Filadélfia, mas também através da prosa lírica de As almas do povo negro. Dessa forma, Du Bois plantou a semente para os Black Studies nos Estados Unidos e no mundo, um campo que seria assumidamente interdisciplinar e radicalmente comprometido em contar histórias humanizantes de vida e morte de negros. Esse talvez seja o motivo pelo qual não exista programa de Black Studies nos Estados Unidos onde Du Bois não tenha sido ensinado continuamente, há décadas.

Assim, ao retirarmos a poeira acumulada sobre o livro O negro da Filadélfia e ao darmos a Du Bois, o cientista social, todos o reconhecimento que merece, lembremos também das múltiplas maneiras de contar histórias que ele escolheu ao longo de sua vida. Consideremos que, em última instância, Du Bois decidiu que o “problema negro” era complexo e multifacetado, requerendo muitos métodos diferentes, muitas vozes diferentes.

Tianna S. Paschel é professora do Departamento de Estudos Afro-Americanos e do Departamento de Sociologia da Universidade da Califórnia, Berkeley.

Referência

W. E. B. Du Bois, O negro da Filadélfia: um estudo social. Tradução: Cristina Patriota de Moura. Belo Horizonte, Autêntica, 2023, 438 págs. [https://amzn.to/4cMFhsx]

Notas


[i] DU BOIS, W. E. B. My Evolving Program for Negro Freedom. In: LOGAN, Rayfor (Ed.). What the Negro Really Wants. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1944.

[ii] DU BOIS, W. E. B. Black Reconstruction. Nova Iorque: Harcourt Brace, 1935.

[iii] CHRISTIAN, Barbara. The Race for Theory. Feminist Studies, v. 14, n. 1, p. 67-79, 1988.


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