O neoliberalismo é neofascismo?

image_pdf

Por MARCOS SILVA*

Aparentemente, Liberalismo e Fascismo são antípodas, situação cômoda para ocultar seu berço em comum: o Capitalismo

O Brasil e outros países do mundo contemporâneo experimentam, no final da segunda década do século XXI, governos de extrema violência contra pobres e múltiplos grupos que sofrem diferentes estigmas sociais, governos que agem para aprofundar pobreza e estigmatizações, em benefício de grandes fortunas e elites administrativas privilegiadas.Essas experiências abrangem de EEUU a Belarus, passando por Filipinas e Líbia. O uso de jaulas para encarcerar crianças, filhas de imigrantes ilegais, nos EEUU sob o governo Trump, é um claro exemplo dessas políticas.

Alguns analistas de tal universo o caracterizam como Neofascismo. Outros preferem a designação Neoliberalismo.

O prefixo “neo” é enganoso ao sugerir uma revivescência pura e simples de algo pré-existente. Por ser História, todavia,“nada será como antes”, como ensinam o refrão e o título de um bela canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. Ao mesmo tempo, nas mudanças, há continuidades mescladas a metamorfoses, tragédias tornadas farsas, conforme a clássica formulação de Karl Marx, no livro O 18 brumário de Luís Bonaparte. E as experiências sociais do passado deixam tópicos em aberto, que os pósteros poderão retomar, de acordo com os debates de Walter Benjamin sobre projetos revolucionários (e talvez também se apliquem a conservadores momentaneamente encurralados), no ensaio “Sobre o conceito de história”.

Nenhum Neofascismo reprisará integralmente a Itália de Mussolini ou a Alemanha de Hitler, mas qualquer um poderá ter como programa destruir sindicatos e outros organismos associativos, além de escolher – para eliminar – inimigos visíveis, apelar para o extermínio generalizado de qualquer vestígio de dignidade social. Nenhum Neoliberalismo será lição prática de Adam Smith, mas sempre poderá apelar para a mão do Sagrado Mercado e desprezar o espaço público, jogando os direitos sociais no lixo.

O Neoliberalismo é uma versão de si que o Capitalismo encenou para destruir direitos sociais e desqualificar sujeitos na cena pública. Aparentemente, Liberalismo e Fascismo são antípodas, situação cômoda para ocultar seu berço em comum: o Capitalismo. Os fascistas atacavam tópicos liberais, o que não impedia indiferença, ou até simpatia, de algumas de suas lideranças em países com forte presença liberal no debate político, como EEUU e Reino Unido.

Governantes e o alto escalão administrativos desses diferentes países não hesitaram em se declararem neoliberais, raramente alguns deles se definem como neofascistas, mesmo quando reproduzem quase literalmente textos e posturas públicas claramente inspirados ou mesmo copiados da Itália mussolinista ou da Alemanha hitlerista, como se observa no governo Bolsonaro, Brasil. Há uma fina limpeza em evocar raízes liberais, ao contrário da memória escandalosamente criminosa do Nazifascismo. Margareth Thatcher e Ronald Reagan anunciavam profissões de fé neoliberais e estiveram solenemente presentes nos funerais de João Paulo II, personagem que foi claro exemplo de acirrado anticomunismo no período em que foi papa (1978/2005).

Esse desembaraço na alegada filiação liberal de políticos, associado à vergonha com ser associado em Nazifascismo, é sintomático. Analistas devem mimetizar a suposta identidade neoliberal de tais mulheres e homens?

Tal problema merece ser associado à forte tradição da cultura histórica (além de escritos de historiadores, ficção, monumentos, memória social) a considerar o Nazifascismo um assunto encerrado em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Certamente, setores dessa cultura histórica abordaram perturbadoras continuidades do Nazifascismo: sem pretensão de arrolamento, são exemplos esparsos o romance A peste, de Albert Camus (1947), a peça teatral Os sequestrados de Altona, de Jean-Paul Sartre (1959),e os filmes O homem do prego, de Sidney Lumet (1965), e Pocilga, de Pier Paolo Pasolini (1969). No plano do ensaísmo histórico-filosófico, A personalidade autoritária, de Theodor Adorno et al. (1950), e O que resta de Auschwitz, de Giorgio Agamben (1998), apontam questões atinentes a perturbadoras continuidades do nazifascismo.

*Marcos Silva é professor do Departamento de História da FFLCH-USP.

 

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES