Por JOÃO CARLOS BRUM TORRES*
Apresentação pelo organizador da coletânea recém-lançada
Sentido e contexto do livro
Para esclarecer o sentido desta publicação sobre o bicentenário, será útil evocar como foi lembrado e comemorado o cumprimento do centenário do Brasil.
Não obstante os rescaldos da grande seca no Nordeste em 1919-1921, da instabilidade política que levou Epitácio Pessoa a decretar o estado de sítio de 5 de agosto até 31 de dezembro de 1922, a despeito das urgências decorrentes da proximidade das eleições que deveriam ocorrer em breve, as comemorações do primeiro centenário do Brasil foram de grande vulto e de inegável prestígio nacional, internacional e mesmo popular.
No dia exato do aniversário, a data foi festivamente comemorada com a abertura da Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, 7 de setembro este que foi também o da primeira emissão radiofônica do país, na qual, além do discurso inaugural do Presidente da República, foi transmitida a ópera O Guarani de Carlos Gomes. A importância dessa Exposição, cuja execução exigiu grandes obras de saneamento e renovação urbana do Rio de Janeiro, então capital do país, é atestada também pela expressiva participação internacional, pois Argentina, México, Estados Unidos, Portugal, Inglaterra, França, Itália, Bélgica, Suécia, Noruega, Dinamarca, Tchecoslováquia e Japão construíram pavilhões para demonstração de suas riquezas, cultura e progressos, notadamente industriais.
Também impressionante foi a apresentação do Brasil, que contou com a construção e organização de oito Pavilhões: da Administração e do Distrito Federal, das Grandes Industrias, das Pequenas Indústrias, da Agricultura, da Caça e Pesca, da Aviação, da Estatística, das Festas e dos Estados Brasileiros, mostrando que, apesar das graves dificuldades enfrentadas pelo país naqueles dias, os brasileiros não ignoraram a importância de avaliarem e celebrarem os cem anos da Independência.
Neste nosso quase desapercebido bicentenário, de comemorações não temos nada, e tudo indica que ele passará em branco, com cerimônias palacianas e algumas matérias de imprensa.
A ideia e o sentimento geral do país parece ser a de que não há o que comemorar e que o Brasil é algo muito abstrato, que o que importa é a política fiscal, os doze ou treze milhões de desempregados, a inflação que retorna, as políticas identitárias, a Amazônia e, talvez mais do que tudo, as eleições. As eleições mais do que tudo porque polarizadamente absorvidas pelo confronto entre o bolsonarismo – governo e movimento cujo projeto resume-se em um anticomunismo radicalizado e anacrônico e numa expressão perversa e torta de valores conservadores tradicionais, amalgamados em uma grande massa de ressentimentos heterogêneos de um país no qual, cada vez mais, os pobres se amontoam sob marquises e esquinas das grandes cidades – e o arco diverso e desconjuntado dos que, não sem razão, na esquerda e no centro do espectro político, têm como prioridade livrar o país da corrosão interna da democracia e a recuperação do bom-senso, com relação às prioridades das políticas interna e externa.
No entanto, embora essa preferência pelo presente, manifesta no desinteresse generalizado pela data simbólica dos duzentos anos, tenha sua lógica, tanto, específica e circunstancialmente, em vista das urgências implicadas na situação geral acima aludida, quanto, mais abstratamente, pelo fato de que há um sentido em que o presente tem mais valor do que o futuro, como se vê ao lembrarmos que títulos com vencimento futuro são duramente descontados quando, ao serem transacionados, são trazidos a valor presente.
Todavia, em contrapartida, há um sentido em que a priorização do que está mais próximo é funesta. Não é difícil percebê-lo se tivermos presente que ela também é típica do comportamento de crianças pequenas, para as quais a troca da satisfação de um desejo imediato por uma satisfação amanhã é incompreensível. Na verdade, é de grande imprudência e exposição irresponsável a graves fracassos desconhecer que as escolhas por meio das quais são construídas tanto as vidas individuais quanto a vida coletiva estão sujeitas a equívocos na identificação dos interesses próprios, dos valores que efetivamente merecem nosso compromisso, dos meios para realizá-los e dos tempos que para isso são necessários. Compreende-se, assim, porque não seja menos temerário ignorar a força simbólica de certas datas que nos convidam a olhar para trás, a fazer um balanço do caminho percorrido e a identificar a melhor perspectiva para visualização do futuro e do melhor modo de seguir adiante.
Esta é a razão pela qual tudo indica que a desconsideração do bicentenário é sintoma de uma quadra doentia de nossa história, de uma espécie de vergonha do país que temos, de um encurtamento da imaginação e do reconhecimento de que conjunturas e períodos históricos são justamente períodos e de que as dificuldades que os caracterizam não devem fazer esquecer nem a obra feita nem a obra a fazer e que o sucesso ao fazê-la depende crítica e decisivamente de que se enxergue além das premências diárias e que se tenha visão de futuro.
Esta coletânea é uma espécie de protesto contra a dominância dessas disposições ressentidas, curtoprazistas, ignorantes do passado, incapacitadas de olhar acima dos interesses e frustrações do presente, de entender que a melhor maneira de superar as distorções de nossa sociedade – enorme desigualdade econômica e social, subdesenvolvimento industrial, infraestrutura de serviços básicos defasada e insuficiente, desenvolvimento urbano marcado pela segregação das classes sociais, serviços de educação gritantemente ineficazes, capacidade de inovação tecnológica muitíssimo limitada e um sistema político cada vez mais disfuncional – é voltar a ter uma ideia clara do que em outros tempos se chamou um projeto nacional e que hoje podemos dizer, mais simplesmente, que é a de voltar a confiarmos em nós próprios, restaurando assim a ambição de fazer do Brasil uma sociedade que permita que todos os brasileiros tenham acesso aos níveis de bem-estar que a humanidade pode oferecer às populações que tem o privilégio de viver no século XXI.
Tarefa por certo enorme em uma sociedade como a brasileira, na qual a minoria dos que têm acesso às melhores condições de vida que o tempo presente pode oferecer é ostensivamente separada do enorme contingente dos que continuam a viver precariamente, sem educação, sem renda, sem moradia, sem emprego. Ter presente esse desafio, identificar com clareza as dificuldades a vencer e o modo e os tempos necessários para fazê-lo é essencial, pois, sem isso, aceitando e pregando, conforme a ideologia hoje dominante no país, que para tal desiderato o único caminho racional é deixar funcionar livremente as forças de mercado, o que teremos à frente, na melhor das hipóteses, será uma figura quantitativamente maior desta mesma sociedade que hoje disputa o campeonato mundial das desigualdades em todas as dimensões da vida social.
Não é objetivo desta coletânea a insensata pretensão de ter receitas com relação ao modo de levar o Brasil a melhor futuro. Os textos que compõem este livro não são escritos políticos, não pretendem ter propostas para o futuro do Brasil e, não sendo ensaios de historiadores profissionais, tampouco pretendem fazer propriamente a história de nossos duzentos anos. Seu propósito é mais modesto e mais simples: é o de oferecer aos leitores o testemunho dos que não perderam o interesse nos destinos de nosso país e que acreditam que pensar sobre dimensões variadas da trajetória que nos trouxe até aqui não é uma distração penosa e inútil, mas, antes, uma espécie do dever de lembrar: do dever de lembrar que vida não examinada é rota certa para uma vida e, coletivamente, para uma história desperdiçada.
Portanto, seus capítulos devem ser vistos antes como sondas, cujo escopo é restituir a importância e a força que tiveram e que, como legados de nosso passado, ainda têm certos personagens, eventos, obras feitas ocorrentes no desdobramento de nossos dois primeiros séculos. Sua disparidade em termos temáticos, em tamanho, em estilo é evidente, mas esta pluralidade de enfoque abre o livro e o espírito dos que o lerem para a riqueza, a complexidade e o largo espectro das ondas em que se distribuem os sucessos e fracassos da história do Brasil-País.
A distribuição temática do livro
Muito embora praticamente todos os capítulos do livro tenham levado em conta o ponto de partida do bicentenário – as circunstâncias políticas, sociais, econômicas e morais do período da Independência – os textos que integram esse conjunto majoritário foram sensíveis a aspectos diversos do que então teve lugar e da herança que nos deixaram. Em alguns casos atendo-se à importância do ocorrido nesse momento inicial, em outros prolongando-se em suas consequências e avançando para outros momentos e etapas dos duzentos anos de vida institucional do Brasil que agora se completam.
A essas variações no modo de determinar o foco temático dos diferentes capítulos de caráter mais claramente histórico, se somam as diferenças devidas à diversidade da formação dos autores e também o modo diferenciado em que esse nosso passado lhes tocou a sensibilidade. A sensibilidade no sentido geral que essa palavra tem e também as diferenciações que esta assume com relação ao que no mundo nos toca e aqui, muito especialmente, a dimensão política da história de nosso país. O que não pode deixar de acarretar diferenças no modo de entender, apresentar, implícita ou explicitamente, julgar os acontecimentos constituintes de nossa história.
Abre o livro, “Ainda as veleidades libertárias no Brasil”, de Lourival Holanda, que está para o livro como uma espécie de advertência preliminar: a de lembrar que há em toda comemoração oficial: o risco de, na circunstância, a hagiografia sufocar a exigência crítica, risco que um livro como este não pode deixar de correr, cujas consequências não podemos deixar de assumir, mas que cremos termos conseguido prevenir, ou, no caso deste organizador, pelo menos mitigar. “Veleidades Libertárias” chama atenção para como a massa da herança colonial e da exclusão social, da dependência e do abismo que separa a elite das forças populares, no caso do Brasil e da América Latina em geral, fragiliza radicalmente as tentativas de construção de sociedades autônomas, democráticas e igualitárias.
“Jornalismo, escravidão e política na Independência”, de Juremir Machado concentra-se no episódio da Independência e o faz iluminadoramente graças ao recurso de considerá-lo à luz de três perspectivas de análise diversas: a do relato centrado na intriga, na restituição minuciosa dos episódios e da ação dos personagens que ocuparam o proscênio do processo independentista, do qual Varnhagen é o representante principal; o da explicação do mesmo processo em função das relações de classe e da predominância das questões econômicas tanto no plano interno, quanto no das relações internacionais que delimitaram e, em última análise explicam o processo de independência segundo Werneck Sodré; e finalmente, considerando a análise mais abrangente do processo de Indepêndencia, tal como realizado pela equipe coordenada por Sérgio Buarque de Holanda na monumental História da Civilização brasileira, abrangência esta que põe ênfase nos condicionantes ideológicos e culturais trazidos pelo Iluminismo como fator também importantes para compreensão do quadro de ideias dentro do qual surgiu o ideário emancipacionista. Da articulação dessas análises distintas surge uma visão mais completa do ocorrido em 1822, Juremir acrescentando ainda a sua análise uma atenta reconstituição da presença e da importância da militância jornalística dos acontecimentos ligados à Independência.
Em “O Nascimento de uma Nação na biografia de um homem trágico”, Renato Oliveira, mediante um estudo aprofundado da biografia de José Bonifácio, personagem central da Independência, por um lado abre o foco de análise do momento inaugural de nossa história, por outro o estreita, ambos os movimentos servindo para que se perceba as implicações que a complexa trajetória pessoal de José Bonifácio veio trazer para o entendimento de certos traços que marcaram o nascimento do Brasil-País. Ao fazer desse estudo biográfico fio condutor de sua análise, Renato Oliveira trata de mostrar como, na Europa e em Portugal do período em que o Andrada ali viveu, a dimensão científica da renovação cultural trazida pelo Iluminismo, em muitos casos, era combinada com a reação restauradora voltada à contenção do republicanismo radicalizado da Revolução francesa.
Ao mesmo tempo, o texto fecha o foco da análise para mostrar como, em curto espaço de tempo, José Bonifácio, já em plana maturidade e, sob certo aspecto, com a vida feita, rompe com os estreitos laços pessoais e profissionais construídos em Portugal, retorna ao Brasil e abraça a causa independentista, transformando-se assim e então no duro executor e controlador do processo de emancipação, determinando, decisivamente, a forma e os limites que ele deveria ter, sobretudo fechando o espaço para veleidades republicanas ou limitações externas do Poder imperial.
“Ao Ensejo do Bicentenário. Notas Sobre a Questão da Identidade do Brasil” é o texto em que Brum Torres, organizador da coletânea, trata de fazer da atenção ao cumprimento do bicentenário o ponto de partida para discussão dos termos em que se deve determinar o que seja a identidade do Brasil-País, expressão com a qual o capítulo fixa o objeto de sua análise. Depois de resenhar brevemente os diferentes modos em que o ponto foi anteriormente tratado, o texto avança a tese de que o modo mais próprio de considerar essa problemática complexa consiste em entender que a identidade de um país não é apenas construída ao longo do tempo, mas que é na intriga – por assim dizer: na novela de que são capítulos os diversos momentos de história – que vão sendo fixados os traços característicos da identidade nacional.
Correlatamente, o texto argumenta que o povo, no caso, o povo brasileiro – nós todos, na condição simultânea de atores e autores – é quem construiu e constrói a identidade do Brasil e isso do mesmo modo em que, individualmente, cada um de nós é autor da própria vida e, assim, do perfil que esta toma. A elucidação da plausibilidade dessa analogia depende de uma explicação adequada dos termos em que deve ser entendida a constância de um sujeito coletivo, ponto que exige uma análise conceitual e dá ao capítulo a figura um tanto insólita de um texto que mistura considerações historiográficas e filosóficas, debruadas por um rodapé de muitas notas.
“O Tempo dos Pêssegos – o desejo de futuro na literatura brasileira”. O capítulo de Luís Augusto Fischer, à primeira vista, aparece, paradoxalmente, como um texto curto e ao mesmo tempo rapsódico, pois no panorama da cultura literária brasileira as evocações vão do Padre Vieira ao Emicida. A melhor ver, no entanto, o escrito de Fischer é concentrada e profundamente reflexivo, cada uma das obras evocadas constituindo-se em um levantamento sagaz, preciso e sutil de como em momentos diversos de nossa vida cultural a questão do tempo foi tratada.
De um modo geral, o balanço parece ter sido que ao longo da história da cultura literária brasileira, o tempo futuro foi tratado, para tomar de empréstimo um título de Philip Dick, como se estivesse sempre out of joint. Quer dizer, às vezes vagamente anelado, outras ignorado, outras ainda como já chegado e encerrado, como no vanguardismo paulista de 1922, e agora, finalmente, mais consequentemente substituído pela preocupação com o presente. De certo modo, obliquamente, o capítulo faz eco com a advertência de Lourival, de não nos deixemos enganar, que as recordações do passado ou o desejo de futuro não nos desvie dos desafios e tarefas do presente.
“Independência e as Raízes de um Projeto de Desenvolvimento”. Dificilmente haverá modo mais conciso, claro e preciso de mostrar a radicalidade das mudanças acarretadas pela passagem de uma sociedade da condição de colônia a de Estado independente do que Pedro Fonseca conseguiu neste capítulo. Para fazê-lo, Pedro parte da própria literatura que pretende depreciar a importância dessa alteração histórica, para mostrar que é dela que decorre a possibilidade de que uma sociedade se torne sujeito de seu desenvolvimento, pois, como se vê no caso brasileiro, foi a Independência que permitiu e, mais do que isso, forçou o país a ter política monetária, cambial e fiscal, o que é dizer que sem ela não poderia o Brasil vir a ter os elementos minimamente necessários para ter economia própria e decisão sobre os rumos de seu desenvolvimento econômico. Pedro completa seu capítulo mostrando como a partir da Revolução de 30 forma-se progressivamente um projeto explícito de industrialização e desenvolvimento nacional que dá continuidade a construção do Brasil moderno, a despeito das limitações severas que até hoje nos afligem.
“A Lei de Terras de 1850 e o advento do capitalismo brasileiro”. O capítulo de Fabian Scholze Domingues trata de um ponto complexo e não completamente exaurido pelos estudos históriográficos dedicados a reconstituição da história da ocupação do território nacional e de seu papel no desenvolvimento econômico do Brasil. O capítulo chama atenção para vários aspectos dessa problemática complexa, pondo em relevo a desigualdade de acesso à propriedade, a herança institucional das sesmarias, as formas precárias de posse, a violência da negação do direito à moradia e à terra e procura mostrar como essas diferentes formas de exclusão caminham pari e passu com um incremento, gradual na maior parte dos casos, e estonteante no caso do café e de outros produtos destinados ao comércio internacional
“O ‘mundo rural’: o novo emerge sobre as raízes do passado”. O capítulo de Zander Navarro tem uma posição singular no contexto desta coletânea e isso menos por tratar de um período recentíssimo de história brasileira, embora também isso o distinga, mas por apresentar organizadamente a evidência de que um dos traços que historicamente sempre marcaram negativamente a realidade brasileira está desaparecendo e sendo substituído por algo inequivocamente positivo, não obstante ambiguidades e incertezas que ainda possam sobrevir. O ponto do capítulo de Zander é mostrar que o Brasil rural entendido como o lugar do atraso da economia, da estagnação e da pobreza de um grande contingente de brasileiros e consequentemente foco de tensões sociais e políticas permanentes, está desaparecendo, substituído pelo extraordinário crescimento do agronegócio brasileiro.
Mais do que isso, o que a análise de Zander trata de mostrar é que embora o dinamismo atual do agro brasileiro esteja vinculado a um cultivo dominante, o da soja, como ocorreram no passado ciclos de prosperidade com o café, o açúcar, ou a borracha, há agora várias diferenças fundamentais: distintamente do passado, a soja não esta presa regionalmente, mas se expande pelo país afora engendrando um extraordinário crescimento econômico e prosperidade de imensas áreas novas pelo país inteiro; em segundo lugar essa expansão se faz com ganhos de produtividade ligados e dependentes íntima e intensamente da pesquisa tecnológica e em conexão com um importante conjunto da produção industrial ligado a montante e a jusante da produção agrícola; em terceiro lugar esse avanço se perfaz com agentes cuja mentalidade XX é a do empreendedor capitalista, ethos que se derrama para outras áreas do setor primário brasileiro como o do cultivo do algodão e sobre a pecuária nacional. O resultado disso é então uma mudança profunda em um traço central da identidade histórica brasileira.
“Projeto Econômico da Ditadura Militar e a longevidade dos nossos anos de chumbo”. O capítulo de Carlos Paiva faz não apenas um exame minucioso, abrangente e grandemente esclarecedor das políticas econômicas concebidas e aplicadas no país a partir de 1964 e ao longo de todo o ciclo do regime militar, mas mostra convincentemente que a performance econômica extraordinária ocorrida no Brasil entre 1964 e 1980 expressava e dava consequência a uma compreensão clara dos desafios colocados ao país para afirmar-se exitosamente na dinâmica econômica mundial a partir de uma posição de dependência tecnológica, financeira e industrial. O que é dizer que os governos militares tinham um projeto bem estabelecido de desenvolvimento e uma ideia do que fazer com o Brasil, muito embora, obviamente, esse projeto se autoentendesse como um projeto de desenvolvimento capitalista, indiferente as desigualdades inerentes a esse sistema.
Mas Paiva vai além e mostra que esses elementos são suficientes para nos fazer entender que as ameaças golpistas do governo Bolsonaro, e seu êxito eventual, são incomparáveis com o que puderam fazer e fizeram os governos militares, pois as aspirações ditatoriais de Bolsonaro não estão apoiadas, contrariamente ao que se viu em 1964, em uma visão clara de como superar os impasses atuais de nossa sociedade, nem é capaz de efetivamente soldar o apoio dos setores mais dinâmicos e poderosos da economia e da sociedade brasileira. No entanto, diz-nos ainda o capítulo, ideia clara do que é preciso fazer no Brasil tampouco têm as correntes de esquerda e mesmo as do centro político, o que permite prever que o mais provável é que o zigue-zague em que nos temos perdido nos últimos anos não terá fim próximo.
“A esquerda no poder: apogeu e declínio de um experimento constitucional (2002- 2016)” de Cícero Araújo e Leonardo Belinelli trata dos antecedentes imediatos da situação crítica em que se cumpre o bicentenário do Brasil. O texto trata de mostrar como o que denomina de “social-liberalismo”, próprio dos anos dos governos petistas, ao mesmo tempo em que teve êxito em resgatar significativamente parte da chamada dívida social, amadureceu mal e desgastou-se profundamente, permitindo que o país tenha vindo a ser lançado “na deriva em que hoje se encontra”.
O texto, ao mesmo tempo em que analisa as causas desse desgaste progressivo propõe, não sem plausibilidade, que a origem sociológica desse desgaste, ou de classe, como se costumava dizer, encontra-se em que o as políticas do PT como que esqueceram os vastos contingentes que constituem as classes médias do país, desenvolvendo suas políticas em benefício das camadas mais desprivilegiadas da sociedade brasileira e, na outra ponta, em benefício da grande burguesia. Análise que incluiu também atenção especial ao que o texto denomina de “câmara invisível”, esse espaço de XX corrupção semi-escondida empregado para dar aos governos condições de governar em uma situação de fragmentação partidária e congressaual, típica do chamado presidencialismo de coalizão.
Uma última preliminar sobre o estatuto do livro
Por fim, um último registro a fazer é que embora esta coletânea não tenha assentado seu foco no exame dos desafios hoje enfrentados pelo país – pois isso a levaria a uma análise da conjuntura presente que, para ser bem feita, estenderia o trabalho para além dos limites editoriais que fixamos para o projeto ora realizado, incluindo nesses limites a recomendação de ênfase à nossa história pregressa – isto não quer dizer que não nos apercebamos de que, mais uma vez, nestes dias em que estamos a viver, o destino do Brasil esteja em jogo, diante de um divisor de águas, frente a uma situação em que os parâmetros institucionais fixados pela Constituição de 1988 estão sendo postos à prova e no qual há risco de um passo regressivo, no qual, uma vez mais, as Forças Armadas, autoadjudicando-se arbitrariamente a condição de últimos intérpretes da vontade nacional, violem a integridade do processo eleitoral.
Oxalá não tenhamos que nos confrontar com um tão funesto desfecho, pois isso seria comprometer nosso país com a ideologia retrógrada, comprada nos obscuros armazéns da extrema direita internacional, protagonizada pelo atual Presidente. Presidente que, embora se cubra de verde e amarelo, recusa a evidência de que no tempo presente, o desprezo pelo estado constitucional de direito, é a mais ostensiva traição do verdadeiro patriotismo. Porque o que este implica e requer, nesta terceira década do século XXI, é mantermos o ponto alto de desenvolvimento institucional que hoje temos – o de sermos uma das grandes democracias do mundo – e fazer desse patrimônio jurídico e político a base da construção de uma sociedade mais próspera, mais justa, mais educada, porque, sem isso, preservados os níveis de pobreza e desigualdade que hoje temos, o Brasil nunca será um país desenvolvido, deixando-nos, mais uma vez, longe, muito longe de ser o assombro do mundo novo e velho que, no alvorecer de nossa Independência, D. Pedro I nos vaticinou.
Por certo, a simples preservação da integridade dos ritos eleitorais, está muito longe de nos garantir a realização de um tão ambicioso destino, mas sem ela, voltaremos à primeira casa desse jogo de devagar se vai ao longe que tem sido o penoso processo de construção do Brasil que almejamos.
*João Carlos Brum Torres é professor aposentado de filosofia na UFRGS. Autor, entre outros livros, de Transcendentalismo e dialética (L&PM).
Referência
João Carlos Brum Torres (org.). O país do futuro e seu destino: ensaios sobre o bicentenário do Brasil. Porto Alegre, L&PM, 2022, 336 págs.
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