O pensamento cinematográfico de Jean-Claude Bernardet

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Por FERNÃO PESSOA RAMOS*

A obra de Jean-Claude Bernardet inventou um pensamento cinematográfico brasileiro ao colocar no centro a questão ética da alteridade: como o cineasta de uma classe pode representar o povo de outra sem trair sua essência?

Os poetas concretas paulistanos gostavam de citar a frase de Ezra Pound que divide artistas em “inventores”, “mestres” e “diluidores”. No campo da reflexão sobre cinema no Brasil, na segunda metade do século XX, início do XXI, tivemos alguns ‘mestres’, certamente muitos ‘diluidores’, mas arrisco a dizer que um inventor se destaca no sentido poundiano do termo.

Trata-se de Jean-Claude Bernardet, intelectual, e também artista, que forneceu no período os principais contornos do pensamento cinematográfico brasileiro, interagindo criativamente com a produção audiovisual. Em sua obra, colocou foco na sobredeterminação social das estruturas estéticas e se debruçou sobre o modo de produção, distribuição e exibição, elementos que caracterizam particularmente a cinematografia.

Pessoalmente, Jean-Claude Bernardet sempre teve um viés iconoclasta, voltando-se sem cerimônias para desconstrução de si mesmo. Num movimento de rodopio envolvente, atingia também, no mesmo impulso, as convicções de seu interlocutor. A pertinência do procedimento às vezes tinha como consequência negativa abrir por demasia o campo da contraposição, deixando jovens pensadores empoderados com argumentos de terra arrasada que, em seguida, tinham eles mesmos dificuldades em sustentar – uma vez que o mestre-inventor, já ausente na sustentação, voltava-se novamente cético contra a posição que havia concedido.

Jean-Claude Bernardet era brilhante na argumentação dialética, no sentido socrático do termo, contrapondo argumentos pelo diálogo, postura que exerceu soberano enquanto arrastava, para lá e cá, durante pelo menos cinquenta anos, a reflexão em cinema no Brasil.

Depois, já avançando na idade, nos anos 2010, seu foco maior parece ter sido a atividade artística (como ator, roteirista, diretor, nas diversas facetas da realização, e também como escritor), deixando para trás o plano da dissertação e, principalmente, da pesquisa. No entanto, a proximidade entre expressão artística e o trabalho da escritura sobre sons e imagens em movimento sempre estiveram próximos, desde o início misturados.

Nesta trajetória, as artes serviram como o campo para a expressão de uma heterogeneidade aguda. Muitas vezes figuram, em sua prática, como contraponto ao pensamento, questionando qual o estatuto limítrofe para a representação.

Jean-Claude Bernardet foi marcado pela demanda conceitual pós-estruturalista da segunda metade do século XX, mesmo que nunca tivesse, conforme ele mesmo afirma em entrevistas, proximidade sistemática com a produção bibliográfica de seus conterrâneos de língua e cultura “materna”, como Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Jacques Rancière, Michel Foucault e outros.

São autores que não costumam aparecer nominalmente em seus textos, embora delimitem nítido horizonte em sua obra. Fornecem outra faceta de sua personalidade, avessa à sucessão dos modismos que desembarcam no Brasil com a mesma intensidade que o breve fascínio. Encontramos, no entanto, as digitais deste recorte, por exemplo, na visão crítica que apresenta da “historiografia clássica do cinema brasileiro”, abordada abaixo, numa análise com o corte foucaultiano do discurso, atraída pela gravidade das “epistemes” genealógicas.

Na realidade, Jean-Claude Bernardet Bernardet nunca conseguiu, ou quis ser, um teórico sistemático em suas referências conceituais. Talvez o mais próximo que tenha chegado a isto seja a tradução que empreendeu de A Significação no Cinema de Christian Metz (Perspectiva, 1972), seguida de um consistente Posfácio sobre dilemas metodológicos da semiologia estrutural e uma curiosa tentativa de aplicar, plano a plano, a grande sintagmática metzniana em São Paulo Sociedade Anônima/1965de Luiz Sérgio Person.

Estava, no entanto, mais à vontade explorando a dialética negativa da argumentação radical que valorizava os afetos da expressão artística enquanto força vital que ultrapassa o pensamento. Nessa trilha, soube articular a produção audiovisual de seu tempo marcada pela realidade de classes violenta e excludente, que sempre assolou país que adotou.

A seguir estabelecemos quatro “partes” no pensamento de Jean-Claude Bernardet, até que foi submergido no corpo a corpo mais radical com as artes. O desmembramento em partes tem, evidentemente, um caráter provocativo ao gosto (ou contragosto) de nosso autor.

São fronteiras tênues interagindo entre si que se misturaram, com idas e vindas, durante sua vida. Com meus botões, imagino sua reação enfática ao deparar com a divisão de si em partes e o prazer que teria em misturar as bolas, na intensidade enfática de uma negação carregada pelo sotaque característico – próprio do jeito generoso de ser que tanto apreciaram alunos, colegas e amigos.

1.

O primeiro grande impacto de Jean-Claude Bernardet na cena cinematográfica nacional foi certamente Brasil em Tempo de Cinema, livro originalmente publicado em 1967 (dentro de coleção dirigida por Alex Viany para a editora Civilização Brasileira) e que traz como subtítulo (em geral esquecido), a divisão do tema em parte, ou periodização histórica: “Ensaio Sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966”.

A epígrafe do livro menciona ser a obra uma ‘quase biografia”, apontando a identificação pessoal de Jean-Claude Bernardet com o personagem glauberiano que refletiu com precisão os dilemas sociais deste período: Antônio da Mortes (“Este livro – quase uma autobiografia – é dedicado a Antônio das Mortes”).

A genialidade do Jean-Claude Bernardet “inventor”, neste momento, foi ter percebido o núcleo das dicotomias da sociedade brasileira se concentrando na figura de Antônio das Mortes (Maurício do Valle), protagonista de Deus e o Diabo na Terra do Sol/1964, de Glauber Rocha. Sua tese é que o personagem se constitui enquanto agente ambíguo de classe média, destacando-se assim da cultura popular que lhe cerca em todos os poros e para a qual, contraditoriamente (visto seus vínculos de classe com latifundiários), é atraído.

Cultura popular expressa nos tipos dos camponeses (‘Manuel’/Geraldo del Rey e ‘Rosa’/Yoná Magalhães) e a atração deles pelo personagem popular-messiânico ‘Beato’ (Lídio Silva) e, depois, pelo popular-cangaceiro (‘Corisco’/Othon Bastos – ‘Dadá’/Sonia dos Humildes). Está formado o personagem pêndulo, oscilante, sacada central da análise de Brasil em Tempo de Cinema. Esse oscila, com sua característica má-consciência de classe, entre mandantes e latifundiários que pagam seu trabalho de caçador de cangaceiro (estrutura que se repete, ainda mais nítida, em O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro/1969)e o povo, no qual Antônio das Mortes vislumbra raízes.

Ao sobrepor os próprios cineastas da geração cinemanovista ao personagem chave que criaram, Jean-Claude Bernardet dá o xeque-mate que incomoda muita gente no momento. Como podemos nós, cineastas de classe média, fazer um cinema popular se não somos povo, se não temos a experiência do modo de existir deles, o viver-povo? Se apenas pensamos este ser-outrem que é o povo, a distância para a infinitude de outrem/outros é intransponível e, então, nossa visão de classe não possui legitimidade para ensinar. Em outras palavras: qual o estatuto epistemológico do “saber” nosso, cineastas que não somos povo, da luta social de outrem e em que base éticas podemos assumir o desvelamento, para ele povo, da ideologia de sua alienação?

Trata-se de dilema que atravessa a esquerda brasileira em boa parcela da segunda metade do século XX seguindo, no caso do cinema, até depois da Retomada, na década de 1990. Pensar o fôlego deste livro magistral que é Brasil em Tempo de Cinema a partir de uma exegese da bibliografia sociológica (em boa parte de origem norte-americana) sobre o conceito de classe média, é certamente reduzi-lo. É errar a mão no movimento de análise e perder a visão do todo pela parte, num tecnicismo de corte acadêmico.

Ficamos na nervura da folha da árvore e perdemos a visão da floresta. A questão central na qual o livro se debate é a dimensão intransponível da alteridade de outrem-outros, dimensão que, no decorrer dos anos, se expande no pensamento de Jean-Claude atingindo o próprio corpo da subjetividade, como carne de uma expressão que não se quer autoral.

Aqui, neste momento, parece estar ligada à heterogeneidade cultural do outrem-popular na extremamente acentuada divisão de classes da sociedade brasileira – outrem-outros que possuem padrões distintos de rendimentos/salário, habitação, educação, expressão cultural, linguagem/fala e sensibilidade. Trata-se de um “em-si”, em sua alteridade de “dele-lá”, mas que necessariamente rebate num “por-mim” – se constituindo radicalmente pela voz-do-mesmo que enuncia áudio-visualmente o filme.

Uma situação de classe, portanto, marca a fundação daqueles “outros” para-mim, e por-mim. Em determinado momento histórico, a fissura acentua-se como culpa no inescapável face-a-face com a face de outrem/outros, no sentido que Emmanuel Levinas concede necessariamente à responsabilidade da alteridade.

Agora, sustentada na positividade de um saber, crê ter poder para fundar eticamente a representação, o que nega a radicalidade da alteridade em sua qualidade diferencial (certa voz fílmica do Cinema Novo pôde dizer, enunciando: “a cultura popular – samba, futebol, carnaval – é fonte de alienação política”). A noção de classe média, mesmo em sua generalidade, delineia de modo suficiente em Jean-Claude Bernardet o movimento contraditório e recuado da alteridade que Antônio das Mortes encarna no encontro com o outro-popular.

Pode-se acrescentar que o livro foi escrito antes do lançamento e do visionamento, por parte de Jean-Claude Bernardet, da segunda obra chave de Glauber Rocha do período, Terra em Transe (1967). Isto só vem aprofundar as intuições de Brasil em Tempo de Cinema sobre o personagem pendular de filmes do Cinema Novo como Os Fuzis, O Desafio, Barravento, Porto das Caixas, Cinco Vezes Favela (e em outras obras do jovem cinema brasileiro como Bahia de Todos os Santos, São Paulo Sociedade Anônima, A Grande Feira).

Certamente, Paulo Martins (Jardel Filho), protagonista de Terra em Transe,é o grande personagem pendular que falta em Brasil em Tempo de Cinema, ao mesmo tempo que indica o caráter orgânico da ligação da obra com a produção artística de seu tempo. Em nota do livro, Jean-Claude Bernardet (p. 121, primeira edição) afirma que, durante a redação, “seu autor teve apenas a oportunidade de ler um dos roteiros preparados por Glauber que, como se sabe, improvisou muito no momento da filmagem (de Terra em Transe)”.

Terra em Transe dialoga claramente (e diretamente) com as teses de Brasil em Tempo de Cinema, num momento em que ambos, artista e pensador, captam, através de diálogo direto e de “antenas” sensíveis, um dilema central da época: aquele da responsabilidade/culpa pela superioridade do saber de classe que, um dia, fez valer positivamente a decalagem ao classificar como alienada a cultura do outrem-popular.

Jean-Claude Bernardet expõe criticamente a fissura ao localizá-la para além do engajamento existencialista, em seu modo de encontro. Agora intransponível, ela funda a má-consciência de Antônio das Mortes. Simultaneamente, Glauber confirma a intuição de nosso “inventor” Jean-Claude Bernardet na figura barroca de Paulo Martins em Terra em Transe: personagem que rodopia em exasperação vazia sem superar o fosso aberto pela dimensão do outrem-popular que traz em agonia para-si.

2.

O segundo grande momento da obra de nosso “inventor” está em Cineastas e Imagens do Povo. O filme documentário brasileiro define uma “parte-fora-da-parte” que percorre horizontalmente o pensamento de Jean-Claude. O eixo continua sendo o embate com a alteridade, definida agora como “imagens do povo”.

Percebe-se que os “cineastas” continuam no lado do “mesmo” que o artigo “e” do título do livro funda, ao separá-los do de-lá, “imagens do povo”. A reflexão se desloca – mais madura na análise estilística – para as particularidades das asserções fílmicas audiovisuais documentárias, enunciando o “outrem popular” pelo si-mesmo.

Como no caso de Brasil em Tempo de Cinema, também estáausente, na primeira edição do livro, um filme essencial para o salto qualitativo que a obra descreve nos novos modos de enunciação do popular. Cabra Marcado para Morrer (1963/1984), de Eduardo Coutinho, chega um pouco atrasado no encontro, o que valoriza sua presença indireta (em movimento similar ao que vimos com Terra em Transe).

Esse documentário chave da filmografia brasileira do século XXé lançado logo em seguida à conclusão do livro. A primeira edição é de 1985 (Brasiliense) e o documentário, de 1984, não pôde ser visto pelo autor antes ou durante a redação, não incidindo diretamente.

No entanto, novamente as antenas do artista Eduardo Coutinho (principal documentarista brasileiro no período) e aquelas do crítico estão sintonizadas: parece que a obra responde ao livro e vice-versa. Numa “Advertência ao Leitor”, na página inicial da segunda edição lançada pela Companhia da Letras em 2003 (e ausente na edição de 1985), Jean-Claude Bernardet sente necessidade de deixar explícito que “Conclui este ensaio antes de ter visto Cabra Marcado para Morrer. Se tivesse escrito depois, a minha perspectiva de trabalho provavelmente teria sido outra”.

Frase que segue uma afirmação que deixa clara qual é a dívida com o Cabra de 1984: “Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista: é necessário que alguém faça os filmes”. Ao que poderíamos acrescentar, seguindo a abordagem levantada aqui: a questão, em sua contradição, é que aquele que faz os filmes, infelizmente, não é o mesmo que dá o corpo (e a voz) para ser encarnado em sua feitura. Não se pode falar de um documentário popular (como também não se pode falar de um cinema popular na produção cinemanovista, e depois), pois praticamente não havia, em 1985, ou em 2003, filmes realizados pelas camadas populares da população brasileira – questão central sobre a qual se debateu durante décadas nossa cinematografia.

Ausência que é decorrente essencialmente, naquele período, dos altos custos envolvidos na arte do cinema, muito além do poder aquisitivo das comunidades populares e da capacidade “popular” de articular-se como grupo para obter recursos junto a órgãos, públicos ou privados, de financiamento.

A estilística de Cabra, apesar de não conseguir deixar para trás a fissura da alteridade, introduz novos elementos formais para sustentá-la e este é o ponto que atrai nosso autor. Procedimentos que Jean-Claude Bernardet já levanta na análise fílmica do Cineastas e Imagens do Povo de 1985 e que ficaram explícitos, tomando outra dimensão qualitativa, no intervalo que decorre até a edição de 2003, para a qual introduz diversos “apêndices” (capítulos menores) tentando dar conta do deslocamento tectônico que Cabra Marcado para Morrer provoca no Cinema Brasileiro. Deslocamento, em particular, pela forma narrativa do chamado Cinema Direto, ou Verdade, introduzido pelo filme em todo seu frescor de articulação narrativa estrutural, senão de novidade (Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Paulo César Saraceni e outros já o haviam experimentado na década de 1960).

Agora, Cabra sustenta o modo de estabelecer uma proximidade de tato pela câmera com a face do outrem-popular, agora respirando em toda indeterminação de um de-lá que vive no acontecer mesmo da cena na tomada. É o que permite a Jean-Claude Bernardet tematizar criticamente (em sintonia com as análises fílmicas de 1985), a voz documentária que antes chamou de “método sociológico”, a “voz do outro”, o “outro documentarista” – louvando assim o “espelho que perturba o método” (títulos de capítulos de Cineastas e Imagens do Povo), nas prefigurações que Cabra acaba, posteriormente, por sintetizar numa coincidência tão genial quanto recém-descoberta.

As aporias de nossa antiga dicotomia na responsabilidade pelo outrem-de-classe surgem, em Cineastas e Imagens do Povo, na análise das vozes em “over” (fora-de-campo) que se estabelecem soberanas, numa verdadeira epistemologia da cultura do povo. Refletem-se nas estruturas narrativas de uma dramaturgia documentária que traz esse recorte na composição sonoro-imagética.

Em particular, Jean-Claude Bernardet é bastante crítico àquelas que denominou (cunhando outro conceito central na bibliografia sobre cinema documentário) de “modelo sociológico”, com a sua “voz do saber”. Com ele, designa parte da produção documentária dos anos 1960, incluindo boa parcela dos filmes grupo Farkas que, em torno de 1964 e depois no final da década, tomou para si representar usos e costumes remotos e pouco conhecidos da cultura popular.

Geraldo Sarno, por exemplo, nunca aceitou essa designação, e a dobra do saber que a análise colocou sobre a alteridade que traz consigo a voz enunciativa de Viramundo (1965) – elemento que marcou, durante alguns anos, uma das polêmicas na qual Jean-Claude Bernardet se envolveu em vida.

Cineastas e Imagens do Povo/1985possui dívida com o levantamento sistemático sobre a temática do popular levado a cabo, dois anos antes, com Maria Rita Galvão, no livro intitulado Cinema – repercussões e caixa de eco ideológica (as ideias de ‘nacional’ e ‘popular’ no pensamento cinematográfico brasileiro) [Brasiliense, 1983]. Trata-se de obra que percorre um amplo espectro de textos publicados em revistas e jornais sobre a temática da representação do popular (aqui acrescentado da dimensão do “nacional”, como era gosto na época).

Livro em sintonia com a “zeitgeist” vigente, acompanha coleção mais ampla sobre o tema da Editora Brasiliense que teve coordenação de Adauto Novaes. Uma outra reflexão mais madura de Jean-Claude sobre documentário, incorporando novos dilemas de sua mise-en-scène (mas ainda presa à falsa contradição que busca obter uma espécie de grau zero da linguagem cinematográfica para justificar o nome “documentário”), aparece num dos poucos momentos em que nosso autor abandonou o contexto nacional para se dedicar, em 2004, ao cineasta iraniano Abbas Kiarostami (Caminhos de Kiarostami, Companhia das Letras).

3.

A terceira parte fundamental na ensaística de Jean-Claude Bernardet é o pensamento de uma nova historiografia no cinema brasileiro. A questão de como construir essa história retorna constantemente em sua obra, assim como a crítica da periodização surgida nos anos 1950/1960: seja nos questionamentos que desenvolve em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro (Annablume, 1995), seja nas tentativas de recorte as quais se entrega no anterior (1979, Paz e Terra) Cinema Brasileiro – propostas para uma história.

Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro tem como subtítulo o enunciado (muitas vezes esquecido em debates sobre os objetivos da obra) “Metodologia e Pedagogia”. Se a parcela propriamente pedagógica, que compõe a última parte do livro, tem sua origem em discussões curriculares mantidas por Jean-Claude Bernardet no Departamento que desenvolveu sua carreira na Universidade de São Paulo (como o próprio livro expõe), a questão metodológica que a ela remete incide de modo mais fértil. Questiona as demandas da reflexão historiográfica a partir das quais, tradicionalmente, se quis constituir uma “história do cinema brasileiro”.

Trata-se, em outras palavras, de uma espécie de discurso do método sobre a representação audiovisual cinematográfica no Brasil, incidindo sobre a validade do recorte temático tradicional em sua escala temporal-cronológica. Neste questionamento, vem embutido não só um choque de gerações, mas também um acerto de contas pessoal. O acerto é com os escritos tardios do mestre e mentor do jovem Jean-Claude, Paulo Emílio Salles Gomes, que representa aqui a linha evolutiva da historiografia (clássica) do cinema brasileiro desde Adhemar Gonzaga, passando por Alex Viany e, inclusive, o primeiro Jean-Claude, conforme o encontramos em Cinema Brasileiro: Propostas para uma história.

Todos ainda sem a visão mais global do Cinema Novo e o significado de seu último fôlego demolidor que dilacera os limites da própria representação fílmica, conforme se configura nitidamente na ruptura do Cinema Marginal. Os percursos da historiografia clássica são conhecidos, com suas variantes pontuais: Cinema Mudo, Cantantes, Cavadores, Documentários, Ciclos Regionais, Cine-Jornais, Primeiro Falado, Chanchadas, Vera Cruz, Independentes, Cinema Novo, Marginal, Pornochanchada, fim da Embrafilme, Retomada, etc.

Em Propostas, por exemplo, respira-se a tentativa de reestruturar a cronologia clássica em novo recorte, com a ênfase nacional-desenvolvimentista da época, centrada na crítica ao modo de produção dependente do cinema brasileiro. A periodização geral é mantida no horizonte.

Jean-Claude Bernardet, portanto, sobreviveu aos fundadores da historiografia do Cinema Brasileiro para contar o percurso até, pelo menos, a Retomada, que foi também o limite de seu interesse nesta trilha. Se, depois, sua produção intelectual abandonou o foco, no período da Retomada nosso autor ainda se debruça sobre os dilemas que a reflexividade do si-mesmo introduz na fissura da representação de Outrem.

O modo de encontro continua na epifania do fundamento ético, mas agora a aparição está numa produção fílmica que coloca na roda um corpo-a-corpo que é a própria expressão artística de Jean-Claude Bernardet. É o caso, por exemplo, da interessante reflexão que estabelece entre a dramaturgia do modo trágico e do modo dramático em filmes de Tatá Amaral, nos quais trabalha como roteirista. Em texto publicado originalmente na Revista Cinemais nº. 3, janeiro/fevereiro de 1997, depois intitulado “A Dramaturgia de uma sociedade anômica”, Jean-Claude reflete sobre o processo de feitura do roteiro que co-assina para o filme Um Céu de Estrelas/1996.

Nele revela um recorte já mais tardio, agora imbricado à expressão artística. É sua maneira de desembarcar da fissura amarga da alteridade com o outro-popular (acima exposta), afirmando para si uma revelação que passa ao largo da responsabilidade e da má-consciência. Trata-se de uma espécie de hermenêutica da alteridade pela fusão que desvela. Consegue, assim, encontrar na multiplicidade a dimensão de um outrem que se configura para além de palavras, expressão de uma infinitude que não tenta (nem pode) explicar-se na cognição.

“Por que tanta violência sem explicação?” pergunta no ensaio mencionado, referindo-se à dramaturgia de Um Céu de Estrelas: “Foi exatamente isso que procuramos. A violência explicada, justificada, insere-se num sistema de análise, de pensamento, (que) de certa forma é recuperada, é dominada ao nível do pensamento. Isso quisemos evitar”.

Evitar, portanto, na abertura entre drama e tragédia (a tragédia é onde ele quer fazer circular Um Céu de Estrelas,na intensidade exorbitante de sua cena), a recuperação da alteridade-outrem por um pensamento reflexivo consolador, inserido como motivo na dramaturgia. É para isso que faz vibrar, no roteiro, a expressão de afetos que circulam pela pulsão livre, modo de não dominância no encontro com a infinitude que se abre no face-a-face. É para onde o pensamento, ou melhor, o não pensamento, de Jean-Claude Bernardet caminha em sua maturidade, partindo dos dilemas iniciais de um primeiro embate, ainda pendular, com a alteridade de classe.

Em Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro, portanto, as contas a acertar são com a figura paterna de Paulo Emílio Salles Gomes que prefaciou seu primeiro livro, Brasil em Tempo de Cinema,e abriu as portas para sua carreira de crítico no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo. O alvo é uma periodicidade cronológica clássica, pedagógica, do Cinema Brasileiro, que segue um eixo evolutivo estruturador para o qual, como mencionamos, ele mesmo Jean-Claude Bernardet havia sido atraído em Cinema Brasileiro: propostas para uma história.

Figura paterna que é uma dimensão analítica na qual Jean-Claude Bernardet sempre trabalhou à vontade, seja nas reservas à historiografia clássica, seja no corpo a corpo recorrente com a teoria psicanalítica, conforme desenvolveu principalmente nos anos 1980.

Em outra “magnus opus” de sua carreira, O Vôo dos Anjos: Bressane, Sganzerla – estudo sobre a criação cinematográfica (Brasiliense, 1991), introduz de forma magistral a ruptura do Cinema Marginal que faz ser personificada na trinca Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Helena Ignez, contrapondo-se, quase como conflito edipiano, com a imago paterna de Glauber que traz o Cinema Novo na bagagem.

Nas dedicatórias desse livro menciona a dívida com “as discussões ocorridas no seminário ‘A morte do pai, cinema e psicanálise’”, que ministrou em 1986 com a participação do psicanalista Luiz Meyer. O Voo do Anjos mantém continuidade com as demandas acima delineadas em sua obra de juventude, mas que agora, sob a capa da psicanálise, dão lugar à diluição da noção autoria que embasa o livro. Na densidade da análise da alteridade como crítica ao saber cognitivo, há uma clara elegia da crueldade na experiência visceral pulsional, em termos artaudianos.

É, então, nesta mesma barca, da crítica ao pensamento como fundamento do método (que mostramos em O Voo dos Anjos e no roteiro de Um Céu de Estrelas), que se situa o deslocamento pedagógico da cronologia que Historiografia Clássica do Cinema Brasileiro propõe. É assim que Jean-Claude encontra a periodização de Paulo Emílio, herdeira dos esboços de Alex Viany e Adhemar Gonzaga, e também o Glauber de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro/1963, como nos deixa claro em seu texto.

À crítica de corte pós-estrutural adiciona uma justificada demanda de precisão, com menos impressionismo, para uma historiografia que agora já tem acesso a fontes primárias antes desconhecidas. Em movimento que parece se contradizer, estabelece o núcleo do ensaio nas reservas da própria viabilidade do método de pesquisa, espécie de elegia autofágica da fragmentação fundamentada na miríade de um recorte genealógico.

Metodologia genealógica, se assim podemos expressar, que abandona a possibilidade de uma epistemologia historiográfica. A periodização e a pedagogia passam a ser vistas como expressões prismáticas do poder do saber exercido sobre a alteridade radical pelo sujeito do conhecimento.

O objetivo, em sua raiz um pouco opaca e mesmo contraditória, entusiasmou parcela significativa da jovem reflexão acadêmica em cinema na virada do milênio – embora as alternativas esboçadas à periodização clássica não tenham se definido com tanta concretude quanto a crítica desafiadora do mestre-inventor (aliás, sempre fazendo valer seu método, este sim orgânico, comparado atrás às idas e vindas de uma exposição dialética).

4.

Para finalizar o panorama das partes (ou das “partes extra partes”?) na obra “Jean-Claude”, é necessário mencionar, como quarto ponto, o debate sobre as dimensões estruturais da “autoria” no cinema. Antiga preocupação, o tema é sistematizado nos anos 1990 para servir de tese a uma titulação acadêmica que as idas e vindas da vida, por muito tempo, haviam adiado (ou tornado desnecessária).

Em O Autor no Cinema – A política dos autores: França, Brasil anos 50 e 60 (Brasiliense, 1994), Jean-Claude Bernardet apresenta um consistente panorama da fortuna crítica do conceito no cinema brasileiro, de Walter Hugo Khouri a Glauber Rocha passando por Moniz Viana e Paulo Emílio, abordando igualmente sua ascensão e queda no berço de origem: a França e a geração “Cahiers du Cinéma”, dos anos 1950-1960, fundamentando o novo panteão dos grandes “autores” que demarcaram a tardia modernidade cinematográfica.

No cotejamento com o que chamou de “anti-humanismo pós-estrutural”, fica claro como foi dado o último tiro de morte numa determinação analítica tão fértil aos estudos de cinema. Arte coletiva por excelência, sempre às voltas com egos de artistas e atores que colaboram para um produto final, a construção da noção teórica de “autoria” surge aqui em lugar de destaque.

O Autor na Cinema teve uma segunda edição ampliada, lançada pela Edições SESC em 2018. Dentro da mencionada tradição dialógica generosa de nosso pensador, agora Jean-Claude percebe o interesse em tencionar este conceito no modo de um diálogo com novas gerações que não viveram as polêmicas teóricas, estéticas, e de produção cinematográfica propriamente, que cercaram a emergência da “politique des auteurs”.

Neste sentido, na nova edição de 2018, convida o jovem crítico e cineasta Francis Vogner dos Reis para comentar o livro, passo a passo, numa espécie de arguição tardia de sua antiga tese de doutorado. O movimento, apesar do resultado heterogêneo, não deixa de apresentar interesse. Já vimos como O Voo dos Anjos traz para o debate a noção de autoria diluindo seu núcleo, enquanto modo de existência, para analisar a expressão autoral como “função” de uma individuação rarefeita, já inteiramente dentro da órbita gravitacional do primeiro corte pós-estruturalista que encontramos no Roland Barthes de A Morte do Autor (1968), ou no Michel Foucault de O que é um autor? (1969).

Em O Autor no Cinema Jean-Claude Bernardet traça uma retrospectiva crítica, mantendo esse norte no horizonte, trilha que também percorre em Caminhos de Kiarostami (2004). Como em O Voo dos Anjos,sentimos na análise da obra de Abbas Kiarostami um certo travo conceitual na lide com uma categoria que, negada em escritos anteriores, surge de modo evidente na abordagem.

Finalmente, gostaria de destacar o Jean-Claude Bernardet pesquisador de cinema no sentido mais literal do termo: aquele que vai com disposição às fontes primárias de difícil acesso para levantar dados. Em Filmografia do Cinema Brasileiro 1900-1935 – Jornal O Estado de S. Paulo (1979, Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura), Jean-Claude apresenta um levantamento exaustivo da produção brasileira audiovisual no primeiro terço do século XX, sistematizando dados dispersos e contraditórios, a partir do levantamento de anúncios publicitários do Estadão.

Os filmes (ficção/documentários) e cinejornais mencionados são cotejados com as primeiras filmografias originais, mais imprecisas, como as de Araken Campos Pereira. Trata-se de obra exaustiva, um grosso volume com mais de 500 páginas (não numeradas), que detalha, pela mídia impressa, a data de veiculação, exibição, título, produção, além de outros elementos a cada menção.

Os filmes foram “arrolados em ordem cronológica de exibição” – o que mostra a importância para o crítico, neste momento, do recorte focado na exibição e na cronologia do método. Trabalho de pesquisador, pouco valorizado, que toma tempo e esforço sem retorno de ribalta, servindo de substrato para obras futuras. Entre as facetas de seu trabalho intelectual e artístico esta talvez seja a que foi mais deixada de lado.

Corresponde, no entanto, à uma época em que se consolidava um conhecimento mais sistemático da produção nacional, embasado em fontes inéditas de pesquisas filmográficas.

Pensador e artista de perspectivas diversas, o “inventor” Jean-Claude Bernardet deixou marcas fortes no cinema brasileiro e na cultura de seu tempo que, progressivamente, vêm sendo reveladas em toda a amplitude de suas dimensões.

*Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Instituto de Artes da UNICAMP. Autor, entre outros livros, de A Imagem-Câmera (Papirus).[https://amzn.to/43yKnWf] e co-autor de Nova história do cinema brasileiro (Ed. SESC).


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Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
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Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
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Impactos sociais da pílula anticoncepcional
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10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
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O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
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