O perde-ganha eleitoral

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Por JEAN MARC VON DER WEID*

Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

1.

Para começar, por que a surpresa, a depressão, a revolta? Alguém esperava de fato uma vitória da esquerda? Quem acreditou nisso estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos. Mas pelas reações que tenho lido nas mensagens de zap, os autoiludidos não eram poucos.

As ilusões levam a explicações curiosas sobre a derrota.

Para alguns os candidatos de esquerda erraram a tática ao tentar ganhar o voto do centro e diluindo a sua identidade política. Os mais radicais do “realismo político” apontam para um erro de partida na escolha dos candidatos. Se era para buscar o voto do centro (do “Centrão”?) o melhor seria abdicar de nomes marcados como esquerdistas. A discussão de nomes alternativos a Guilherme Boulos (devidamente “marcado” à esquerda) vai de Tábata Amaral a Ricardo Nunes (sim, por incrível que pareça).

Ou Luciana Brizola em Porto Alegre (em frente com o governador do PSDB!). A lógica desta posição revela uma aproximação maior com a realidade e a percepção de que candidaturas de esquerda estavam condenadas. Ela também revela uma estratégia de frentão amplíssimo incluindo toda a direita não bolsonarista. Como esta tem sido a lógica da formação da “base de sustentação” (a expressão chega a ser irônica) do governo, esta estratégia está longe de ser apenas um desvio de uma ala ultrarrealista do PT. Ela foi aplicada, discretamente ou não, em vários embates no segundo turno, em Goiânia e Curitiba, por exemplo.

Esta estratégia implica na renúncia de uma identidade própria da esquerda e vou discutir isso mais adiante, mas ela tem outro problema. Para haver um frentão (democrático?) seria preciso que os interlocutores do centro ou do centrão estivessem dispostos a receber os partidos de esquerda nas suas chapas e isto, claramente, não estava no script. Mesmo os partidos da direita com assentos no ministério não topariam subir no palanque junto com petistas ou psolistas.

Como estes partidos (ditos de centro, mas compondo a mais crua direita) cortejam o eleitorado onde viceja o bolsonarismo, aliar-se com a esquerda seria eleitoralmente tóxico. Vide a tática eleitoral de Eduardo Paes, no Rio de Janeiro, ou (no segundo turno) de Fuad Norman em Belo Horizonte. O primeiro recusou um vice do PT e escondeu até o apoio do Lula. O segundo, tendo uma candidatura nanica do PT no primeiro turno, sequer fez acenos a este eleitorado no segundo turno. Mesmo um candidato do PT, em Cuiabá, (não casualmente, o mais bem colocado do partido fora Fortaleza) esqueceu Lula e até do próprio partido na sua campanha.

Outras explicações da derrota da esquerda e, admita-se desde logo, do governo ou do presidente Lula, também são discutíveis. Aliás, alguns consideram que houve uma derrota da esquerda, mas não do governo ou do presidente. É uma lógica tortuosa. Pretende-se que não houve derrota porque os partidos do Centrão vitoriosos na eleição (PSD, MDB, União Brasil, Republicanos) são parte do governo e “aliados” do presidente.

E que Jair Bolsonaro engajou-se em várias candidaturas derrotadas, além do papelão na eleição de São Paulo, onde o vitorioso seria (e foi, de fato) Tarcísio de Freitas. Lula ficou tão ausente da peleia quanto lhe foi possível, para não se indispor com os “aliados” ou para não se queimar em uma derrota anunciada. De fato, Jair Bolsonaro saiu menor destas eleições, mas o bolsonarismo ganhou o maior número de prefeitos e de vereadores, não só no PL.

Mas Lula e o governo saem muito mais fracos do que entraram e não só porque o PT teve um “avanço” pífio em números, apenas recuperando (no fotochart!) uma prefeitura de capital em Fortaleza. Na “esquerda” o PSB ganhou esmagadoramente em Recife, mas perdeu algumas prefeituras na soma total. O PCdoB e o PDT desmilinguíram. O PSOL teve um resultado agridoce. Boulos chegou a pouco mais de 40% do eleitorado paulistano, o que não é pouco, mas apenas repetiu a performance de 2022, quando foi candidato solo do seu partido, com pouco tempo de TV e poucos recursos, sendo que agora saiu em frente partidária com 10 vezes mais recursos. E o PSOL perdeu a reeleição em Belém, com percentual de menos de 10%.

2.

As explicações para o insucesso são diversas. Segundo muitos analistas da mídia estas foram as eleições que consagraram o poder das emendas parlamentares, que teriam turbinado a recondução da grande maioria dos prefeitos incumbentes. Se isto fosse uma verdade absoluta o PT deveria ter conseguido uma votação mais significativa, já que foi o partido com o maior número e valores em emendas, pix ou outras. É o caso de se analisar como foi que os deputados e senadores do PT usaram as suas emendas e comparar com a performance dos outros partidos.

Estamos carentes de uma pesquisa que aponte como foram aplicados estes recursos das emendas e para quem eles foram dirigidos. Temos alguns dados que apontam para um direcionamento principalmente voltado para os prefeitos, mas também se diz que muitas foram entregues a ONGs vinculadas a deputados e senadores. A orientação do uso dos recursos aparece na mídia somente nos casos em que estoura algum escândalo: pavimentação de estradas para beneficiar as fazendas de suas excelências ou as “areninhas do Fufuca”.

Mas estes casos denunciados (mas nunca apurados) não podem ser a tônica das emendas pois isto não teria efeito eleitoral sensível. Verbas eleitoreiras tem que ter algum benefício para o eleitor, mesmo que pequeno ou simbólico, ensina a velha raposa do populismo carioca, Chagas Freitas. Na época esta prática ficou conhecida como a “política da bica d’água” e era dirigida para as favelas do Rio de Janeiro. Eram pequenas obras de abastecimento de água em fontes que abreviavam o trajeto das mulheres com latas d’água na cabeça subindo o morro como cantou um velho samba (“lata d’água na cabeça, lá vai Maria. Sobe o morro e não se cansa …”, não se cansa?).

O que é hoje o equivalente da bica d’água? Tenho um exemplo tirado da minha própria vivência de promoção do desenvolvimento de comunidades rurais no nordeste semiárido. O sucesso do programa “Um milhão de cisternas”, promovido pela sociedade civil desde a virada do século, levou as prefeituras a concorrerem na construção destas obras de enorme efeito na vida das populações rurais, sobretudo para as mulheres.

Mas as prefeituras adotaram uma prática perversa. As cisternas construídas pelo programa das ONGs eram abastecidas pelas chuvas captadas nos telhados das casas enquanto as das prefeituras eram localizadas longe o suficiente das casas para que elas só pudessem ser enchidas pelos caminhões pipa das prefeituras, gerando um voto cativo. As cisternas dos prefeitos eram construídas de alvenaria e custavam o triplo das do programa popular, noves fora os desvios de recursos das empresas contratadas em conluio com as autoridades. E, para completar o cenário, eram de má qualidade e rachavam em pouco tempo.

O governo de Lula, mirando nas eleições municipais de 2004, tentou entregar a construção de cisternas para as prefeituras e só foi parado por uma reação dos movimentos sociais do campo nordestino. Dilma Rousseff tentou outra vez, em maior escala, visando as eleições de 2012. Nesta nova proposta as cisternas seriam de plástico, produzidas em São Paulo e transportadas para os rincões do nordeste para distribuição pelos prefeitos, em propriedades escolhidas por eles. Uma gigantesca manifestação de protesto promovida pela Articulação do Semiárido (ASA) na ponte Petrolina-Juazeiro levou à suspensão da proposta indecorosa.

E hoje? em que foram aplicadas as emendas? Qual o benefício real para os eleitores? Se a reeleição da grande maioria dos prefeitos incumbentes indica uma aprovação de suas gestões, estamos diante de algo que o senso comum indica não ser real. É sabido que a gestão das prefeituras dos pequenos municípios é mais do que precária, sendo pouco mais do que cabides de emprego que beneficiam os apaniguados das autoridades locais, certamente em número insuficiente para um sucesso eleitoral.

Os resultados da eleição de 2022 indicavam a conquista de um eleitorado cativo de Lula nestes rincões do Brasil. Muitos explicaram este fato pelo impacto dos programas sociais nas regiões mais pobres do país, em particular no norte e no nordeste. Já nas eleições municipais de 2016 e nas presidenciais de 2018 e 2022 a esquerda não cansou de usar a ameaça da suspensão do Bolsa Família no caso de vitória da direita e, pelo menos nesta última oportunidade a argumentação parece ter funcionado, em parte. Digo em parte porque, apesar de todas as declarações de Jair Bolsonaro escarnecendo os nordestinos, o voto do energúmeno no Nordeste foi acima do esperado, inclusive com um crescimento no segundo turno.

A verdade é que a confiança dos partidos da frente lulista na lembrança dos eleitores dos progressos sociais proporcionados pelos governos populares entre 2004 e 2016 não se confirmou no conjunto do eleitorado e sequer no conjunto dos beneficiários. O desastre econômico do segundo governo de Dilma, as denúncias de corrupção da Lava Jato e as perdas de renda e emprego ao longo dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro deixaram os eleitores da “nova classe C” com um gosto amargo. A ampliação dos beneficiários e dos valores do Bolsa Família no governo do energúmeno devem ter tido um efeito deletério, apesar de ele ter se oposto a estas medidas num primeiro momento. Para os carentes, não importa quem decidiu aprovar as medidas (o Congresso), mas quem distribuiu o dinheiro (o governo federal). O PT descobriu que não é “dono” das políticas sociais e que a direita pode usá-las eleitoralmente tanto quanto ele.

Em um país com tantas carências sociais como o Brasil, as “soluções” via assistencialismo tendem a predominar e elas estão sujeitas às percepções dos beneficiários que variam com a conjuntura e com o fluxo de recursos disponíveis.

3.

O governo Lula III apostou na recuperação da economia para alavancar a sua popularidade, mas a conjuntura não facilita as coisas. Há menos recursos a distribuir e isto foi sentido pelo eleitorado, apesar dos números favoráveis do emprego formal, do aumento real do salário-mínimo e da renda em geral. Parece que o eleitorado não sentiu estes ganhos de forma significativa e, de fato, eles foram pouco importantes devido à inflação dos alimentos, ao aumento dos custos de energia (gás de cozinha, eletricidade) e à precariedade do emprego informal, o que mais cresceu no período. O progresso foi pouco e pouco sentido pelo eleitorado.

O governo pode explicar tudo isso pela sua incapacidade de investir, tolhido como está pelo congresso que chupa recursos do executivo sem remorsos (50 bilhões de reais contra os 150 bi disponíveis para investimentos do governo federal) e pelo Banco Central que mantém as taxas de juros nas nuvens, ampliando a fatia do erário (700 bilhões) que vai para os rentistas.

Tudo fica mais difícil ainda quando muitos desses recursos têm que ser aplicados através dos entes federativos, na sua maioria sob o controle de opositores. É como se explica a vitória do execrável prefeito de Porto Alegre nas eleições. O dinheiro aplicado pelo governo federal na capital do Rio Grande do Sul foi intermediado pela prefeitura e o prefeito, como avalia um observador local atento, esmerou-se em estar presente junto aos atingidos pela catástrofe que ele próprio gerou, enquanto a oposição de esquerda escrevia catilinárias nos zaps. Mais uma vez, importa menos quem aporta os recursos e mais quem os distribui.

Em outra linha de explicações encontramos quem atribua a derrota aos sinistros evangélicos, o mais notável grupo dos “pobres de direita”. Não há dúvida que este eleitorado está, em grande parte, influenciado pelos pastores, em sua grande maioria de direita e bolsonaristas. Mas o que o PT e a esquerda em geral ainda não entendeu é que o poder dos pastores não é principalmente ideológico, embora os chamados “temas culturais” tenham o seu lugar nesta adesão. A meu ver o poder de controle político das igrejas evangélicas está em outro lugar.

O elemento mais importante nesta influência dos pastores é o papel assumido por estas igrejas na vida das pessoas. Uma comunidade evangélica tem múltiplas funções, para lá das rezas e “milagres”. Elas são um espaço onde os fiéis encontram solidariedade coletiva, organizada pelos pastores e obreiros. Eles se ajudam para resolver um sem-número de problemas (individuais) do quotidiano: procura de emprego, abrigo eventual, recursos emergenciais e até comida.

Estas comunidades são também espaços de lazer, de cultura e de ensino, nos melhores casos. Por fim, mas não por último, as comunidades têm um papel de apoio moral coletivo e criam um sentimento de pertencimento tão poderoso quanto podem ser partidos políticos, sindicatos e torcidas de futebol.

Pode-se dizer que os evangélicos tomaram o lugar da igreja católica, que foi abandonando o seu caráter assistencial e de organização comunitária. Nas igrejas católicas hoje em dia os fiéis (cada vez mais raros) se reúnem apenas para seguir os ritos nas missas e só interagem nos momentos em que todos se cumprimentam. Estão longe os dias em que as comunidades eclesiais de base organizavam milhões, e mais ainda os tempos dos movimentos de juventude católica (JOC, operária, JAC, camponesa, JUC, universitária e JEC, estudantil secundarista) que foram a base da criação de um partido de esquerda, a Ação Popular.

O movimento pentecostal, fortemente influenciado pelas denominações de origem americana, prega uma ideologia individualista onde o sucesso é o resultado do esforço de cada um e não da mudança nas relações sociais. E o fracasso é culpa do indivíduo, punido por Deus pelos seus pecados.

O movimento pentecostal também prega uma visão de mundo reacionária, quase medieval, destacando-se pela oposição a tudo que consideram uma ameaça à família convencional – aborto, casamento gay, ensino laico, etc. São contra o empoderamento das mulheres, recusam o ambientalismo (as crises ecológicas são vistas como a vontade de Deus, para punir a Humanidade por seus pecados) e são contra todas as manifestações religiosas que não as suas, em particular, contra as crenças de origem africana. Mas de todas estas características, a mais importante é a ideologia do empreendedorismo, que se reflete na visão de que cada um deve buscar meios de sobrevivência autônomos e na visão de que o Estado interfere negativamente na vida das pessoas.

Não há dúvida que o movimento pentecostal é uma força reacionária importante e ele veio para ficar, sendo base das mais importantes para a direita e extrema direita. Mas precisamos lembrar que, até a virada progressista da encíclica Populorum Progressio, nos anos sessenta, o papel da igreja católica do ponto de vista eleitoral foi mais ou menos o dos evangélicos hoje. O anticomunismo católico foi uma força importante na política nacional, inclusive no apoio ao golpe de 1964.

Assim como a igreja católica acabou sendo influenciada pelas mudanças dos últimos 50 anos, o evangelismo também não é invulnerável a mudanças políticas e temos exemplos (minoritários, ainda) de comunidades progressistas nestas denominações. Mas não vai ser estigmatizando os evangélicos que vamos conseguir mudar seu modo de pensar e de votar.

4.

Resta analisar, entre as causas da derrota, um fator que primou pela ausência nestas eleições. Votamos em um ano em que a crise climática nos impactou de forma brutal, quer pelo excesso quer pela falta de chuvas. Mais da metade do país foi afetada (e ainda está sendo) pela mais generalizada das secas da nossa história, acompanhada por incêndios florestais catastróficos e por uma das mais espetaculares inundações dos últimos anos (e não foram poucas). No entanto, os temas ambientais não definiram os votos, nem na alagada Porto Alegre, nem nas ressecadas e incendiadas Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga.

O caso do Rio Grande do Sul já foi discutido acima e só cabe ressaltar que o tema da inundação foi o eixo da campanha da candidata Maria do Rosário, sem efeito no eleitorado. Mas nos outros biomas, se houve uma reação do eleitorado ela não foi contra as autoridades responsáveis, mas contra os órgãos de controle ambiental, IBAMA e ICMBio, sobretudo na Amazônia. Candidatos da direita nestes lugares pregaram o fim da interferência governamental nas práticas destruidoras do meio ambiente, sejam os garimpos sejam as grilagens e desmatamentos. E, mais do que nunca, temos prefeitos e vereadores eleitos representando os interesses dos devastadores.

Os temas ambientais não encontram eco nas eleições por duas razões. Em primeiro lugar porque os candidatos da esquerda não os adotam em suas campanhas, por não compreendê-los ou prioriza-los ou porque consideram que o eleitorado não os entende. É um sinal extremamente perigoso para o nosso futuro. Se o tema ambiental não tem prioridade (para além de discursos sem consequência do presidente) para o governo federal, não vão ser os candidatos a prefeitos ou vereadores que vão assumi-los.

A crítica mais à esquerda do comportamento dos candidatos progressistas nestas eleições explica a derrota pela falta de radicalidade, pelo abandono de uma identidade histórica, centrada na defesa dos direitos dos oprimidos (pobres, negros, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, trabalhadores rurais e urbanos), pelo reforço do poder do Estado para garantir um desenvolvimento distributivo, pelo aprofundamento da democracia e pelo fortalecimento dos movimentos sociais, pelo Estado laico, pela educação e saúde de qualidade para todos.

Nesta linha, os partidos de esquerda foram condenados por terem se rebaixado a um debate raso, visando atrair o voto de centro e evitando falar do que não é parte do senso comum do eleitorado. Tudo isto é verdade, mas não quer dizer que a repetição do discurso tradicional da esquerda fosse trazer uma vitória eleitoral. Provavelmente a derrota seria ainda mais contundente.

Teríamos que concluir que a derrota eram favas contadas? Com certeza, mas a explicação não está no presente, mas no passado, no trajeto adotado pela esquerda nos últimos 30 anos.

Para começar esse flashback, precisamos analisar a vitória de Lula na eleição de 2022. A esquerda acreditou que tinha ganho a eleição quando na verdade quem ganhou foi a rejeição (levemente majoritária, lembremos) do eleitorado a Jair Bolsonaro, muito mais ampla do que o voto de esquerda. Se bem me lembro, o voto no PT para a Câmara, que exprime com clareza o peso do partido na eleição (e não o voto no Lula), foi de 23%, enquanto o resto da esquerda (PSB, PDT, PCdoB e PSOL, mesmo descontando o fato de que os dois primeiros já derivaram para o centro direita há tempos) ficaram nos 6 a 7%.

Lula chegou aos 48% no primeiro turno. Mais ainda, no segundo turno, Lula ganhou no fotochart com os votos de Simone Tebet. O resultado de tudo isto foi a derrota de Jair Bolsonaro, fundamental para a sobrevivência da democracia, mas também a eleição de um Congresso com ampla maioria da direita e extrema direita.

Com este quadro institucional o governo Lula III dependia, mais ainda do que nos governos anteriores, de concessões aos partidos do Centrão. Entretanto, Lula e o PT não leram os resultados como eu (e a torcida do Flamengo e do Corinthians somadas) fizemos. Montaram um governo do PT e associados nos ministérios mais importantes e deram umas missangas para os partidos do Centrão, salvo o importantíssimo ministério da agricultura. Entendo que o contexto brasileiro naquela eleição não permitia que o governo fizesse o que seria o recomendável: propor um programa de frente ampla com seus eventuais aliados. O PT não tinha um programa claro e os outros não tinham qualquer programa, a não ser o de ocupar espaços no ministério, se possível “de porteira fechada”.

Lula tratou os outros partidos na base da “compra”. Te dou um ministério (ou mais) e você me dá os votos da tua base no Congresso. É um repeteco, em outra forma, dos governos Lula I e II e de Dilma I e ½, sendo que a compra se deu no varejo do mensalão no primeiro governo e no atacado do petrolão nos outros.

Agora o quadro é outro. O Congresso, empoderado desde o golpe contra Dilma e a capitulação de Bolsonaro, tem mais poder de fogo do que nunca e os partidos, com a farra das emendas, dependem menos do executivo para satisfazer os seus fisiológicos. Descontentes com os ministérios de pouco orçamento e poucos cargos para administrar, os partidos do Centrão são governistas quando lhes interessa. Sem pressão da sociedade para as pautas que defendeu, o governo Lula foi cedendo cada vez mais anéis e já está entregando as falanges dos dedos. E todos à esquerda perguntam se vale a pena estar no governo para executar uma política de direita.

5.

Aqui cabe analisar por que os partidos de esquerda e os movimentos sociais não fizeram o contraponto para equilibrar o jogo. Para entender esse fenômeno é preciso olhar para as administrações passadas da esquerda. Ao longo de 14 anos a administração progressista cooptou uma grande quantidade de quadros, tanto dos partidos quanto dos movimentos sociais, para o executivo.

O mesmo ocorreu em governos estaduais e prefeituras. Por outro lado, todos os partidos no governo adotaram uma postura de baixar a bola das mobilizações sociais, apenas conduzindo suas reivindicações para o espaço dos inúmeros (dizem que seiscentos!) conselhos criados durante o período. Tirando A Via Campesina e o MTST, praticamente todos os movimentos sindicais e associativos caíram em uma postura de esperar que suas demandas fossem incorporadas pelo governo, fazendo no máximo uma pressão de bastidores e desmobilizando suas bases.

Ficaram fora deste quadro os chamados movimentos identitários e os ambientalistas. Não por acaso, foram os movimentos que cresceram neste período, enquanto os outros definhavam. Justamente quando este governo precisa de movimentos que o secundem na pressão sobre o Congresso, os que têm poder de convocatória são aqueles cujas pautas mais afastam Lula de seus aliados à direita.

Lula nunca se propôs a assumir (estando no governo) o papel de liderança social, conclamando as bases para apoiar suas bandeiras. Isto fica muito evidente na questão da reforma tributária, reduzida a um debate parlamentar, sem participação da sociedade. Já foi cobrado de Lula que ele tenha uma postura semelhante à de Gustavo Petros da Colômbia, conclamando as massas para manifestações. Mas é preciso lembrar que Petros tem um apoio parlamentar muito mais sólido do que Lula e que adotar esta postura o colocaria em choque direto com seus aliados no Congresso e com a mídia convencional, com direito a ameaças concretas de impeachment. E pronto, armadilha fechada, e nada de mobilização de massas.

Uma vez no governo, a esquerda foi adotando uma prática de concessões crescentes, apostando em uma reviravolta eleitoral que lhe desse mais fôlego para ousar mais nas suas políticas. A estratégia dos partidos no poder sempre foi a de promover um desenvolvimento inclusivo que fosse ampliando a sua base eleitoral. Mas a realidade da evolução da economia foi diferente do previsto. E os ganhos econômicos da nova classe C não geraram a fidelidade eleitoral esperada.

Como explicar esta postura? Por um lado, como dizem o frei Beto e o Gilberto Carvalho, sem educação política não há avanço político ideológico nas massas. E eu acrescentaria, sem movimento participativo, sem lutas reivindicativas e políticas, não há avanço na consciência de classe. Os benefícios auferidos pelos pobres, resultado de políticas econômicas e sociais dos governos populares, foram benesses entregues de mão beijada, com as raras exceções já muito citadas dos movimentos rurais, em particular da Via Campesina, que mantiveram, embora de forma mais moderada, as suas ocupações de terras e outras formas de pressão.

Mesmo neste caso, me pergunto qual o efeito da ênfase no uso de recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário para a minoria do chamado agronegocinho. Pelo que se pode deduzir, sem dados mais precisos até agora, as bases rurais votaram, na sua grande maioria, pelos candidatos da direita.

Por outro lado, os ganhos econômicos dos setores populares nos governos Lula e Dilma, foram muito efêmeros, e desabaram pesadamente no segundo mandato de Dilma, trazendo estes beneficiários de volta para as classes D e E ao longo dos anos que se seguiram, com Temer e Bolsonaro.

A frustração da esperança tende a ser mais corrosiva do que a própria situação de desigualdade em que viviam antes. Em particular, não se pode deixar de constatar que um elemento chave, quotidiano, desta queda de status, foi o aumento dos custos da alimentação. Também é bom lembrar que estas perdas econômicas se deram em paralelo com a intensa campanha de denúncia da corrupção dos governos progressistas. A leitura do povo não poderia deixar de ser que os políticos estavam se locupletando enquanto os “novos remediados” sendo levados de volta para a pobreza. Tudo se soma para que uma parte significativa do eleitorado mais pobre, ao invés de votar pelo retorno da esquerda ao governo, deixou de votar ou votou em outros políticos, à direita.

Não estou falando somente destas eleições, mas de todas desde 2016, quando começou a deliquescência dos partidos de esquerda.

Há outro tipo de percepção política do eleitorado popular: a esquerda no poder foi ficando mais parecida com o centro e a direita, frustrando o eleitorado e gerando a sensação de que “todos são iguais”. A esquerda perdeu a sua aura de força transformadora para virar, na percepção popular, parte do establishment. E quem apareceu com um discurso “contra tudo isso que está aí”, foi Bolsonaro e a extrema direita.

As concessões da esquerda no governo foram justificadas, em todos os governos, mas agora mais do que nunca, pela correlação de forças no Congresso, resultado da hegemonia política do Centrão e da “nova” direita bolsonarista nas eleições. Isto é o reflexo da herança maldita do regime militar, que deixou para nós uma legislação eleitoral perversa.

Lembremos que a nova Constituição não conseguiu alterar o sistema eleitoral onde o peso dos estados mais populosos, em particular o de São Paulo, é proporcionalmente menor do que o dos estados menores. Um indicativo (com dados aproximados) é o coeficiente eleitoral de Roraima, com 10 mil votos por deputado, e o de São Paulo, com 200 mil.

Estes desequilíbrios deram um peso enorme para o voto dos “rincões”, as áreas mais atrasadas econômica e politicamente do país. Isto permitiu que nas eleições pós-constituinte houvesse um forte descolamento entre o voto progressista para presidente e o voto conservador predominante no Congresso. Soma-se a isso a história de domínio político da Arena e dos seus filhotes pós-fim da ditadura nos ditos rincões.

O curioso é que o perfil do eleitorado petista foi se modificando. Até chegar ao governo as forças progressistas estavam centradas nas regiões metropolitanas, em particular no Sudeste e no Sul, enquanto PMDB e PFL dominavam os municípios menores, as áreas rurais e as regiões norte, nordeste e centro oeste. Hoje em dia o eleitorado lulista foi para os rincões, enquanto o voto progressista foi perdendo força nos centros urbanos mais importantes, em particular no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Brasília. São Paulo ainda mostra alguma vitalidade para o voto progressista, mas como visto nas últimas eleições, também em queda.

O assistencialismo dos governos de esquerda mostrou as suas limitações em matéria de fidelização do eleitorado. E o esvaziamento eleitoral no coração da maior área industrial do país, o ABCD, Mauá e Campinas, berço da militância operária que deu origem ao PT, apenas confirma a tendência.

6.

A pergunta subjacente a toda esta análise é: ganhar o governo em 2002 foi uma alternativa correta para um projeto estratégico de mudanças? Ao subir a rampa sem uma hegemonia política no país Lula e a esquerda deram um passo além das pernas. Com um Congresso muito fortalecido pela Constituinte e acumulando cada vez mais poderes na medida em que enfrentava um executivo que foi se enfraquecendo, o que o Lula ou Dilma poderiam ter feito de diferente?

Participei da elaboração dos programas eleitorais das frentes progressistas que tiveram Lula como candidato de 1989 a 1998, representando o PSB na comissão de política agrária e agrícola. Foram formulações interessantes e avançadas, mas tiveram pouco espaço nas campanhas. Na última delas o programa, escrito por mim, pelo PSB e pelo Plinio Sampaio, pelo PT, e aprovado pelos representantes do PCdoB, PDT e PCB, foi simplesmente descartado e sumariamente substituído por outro, elaborado pelo Graziano e lançado pelo Lula.

Um velho amigo e companheiro de exílio no Chile e na França, importante quadro do PT e próximo do Lula, justificou o atropelo e me disse que com um programa radical como o que propúnhamos o Lula nunca ganharia as eleições. A minha resposta é que sem aquele programa não valia a pena ganhar as eleições. “Estamos ficando velhos”, me disse ele. “Do jeito que vocês querem nunca chegaremos ao poder”. “Chegar ao governo não é o mesmo que chegar no poder”, disse eu, fechando o debate.

A estratégia implícita deste tipo de pensamento é a de uma vez no governo, ir conduzindo as políticas de forma aplicar programas mais radicais do que os expostos nas campanhas e ir ampliando apoios no povo pelas políticas possíveis de serem aprovadas. A realidade de governar com a direita em maioria no Congresso e na sociedade foi levando a concessões cada vez maiores para fazer o mínimo, provocando a descaracterização da identidade política da esquerda. O que é pior é que este processo foi levando ao abandono de qualquer estratégia e reordenando o jogo com um objetivo muito menor: a permanência no governo.

É onde estamos agora. Para ficar no governo vamos nos aproximando do centro e da direita não bolsonarista e nos misturando com esta mixórdia fisiológica que domina o Congresso. Querem exemplo melhor do que a negociação para a presidência da Câmara? O PT e a esquerda parlamentar apoiam o candidato do nefando Artur Lira na Câmara e o oportunista mór Alcolumbre no Senado, somando forças com o PL e outros partidos da direita. Em troca de que? Um cargo na mesa diretora? Uma indicação para o TCU? A condição do PL para apoiar o Motta é votar a anistia para Bolsonaro. A do PT é pautar os projetos do governo.

Quem vocês acham que sai ganhando nesta eleição para a mesa da Câmara? O argumento em defesa desta postura é que não há força para propor outra coisa. Parece que se esqueceram que em política, perder com uma posição justa e defensável é melhor do que aderir ao bloco dominante e afundar no pântano, confundindo o eleitorado. Cada vez mais os partidos de esquerda são percebidos como parte do establishment, da elite distante do povo.

Outro fator que modifica o cenário político eleitoral é a radical mudança no perfil do emprego e das fontes de renda dos que dependem exclusivamente do trabalho para sobreviver. A desindustrialização, combinada com a ampliação do setor de serviços conduziu a metade da força de trabalho para a economia informal em situação de precariedade e instabilidade na renda, com os mais pobres dependendo das políticas sociais, que se expandiram enormemente com a pandemia, para complementar os ingressos.

A chamada uberização leva à dispersão destes trabalhadores e à anulação de espaços organizativos. Não existe mais, pelo menos nas dimensões a que estávamos habituados no passado, o chamado “chão de fábrica”, lugar onde se formaram as lideranças operárias do PT, Lula incluído. Isto, combinado com o fluxo de dirigentes e militantes para os espaços dos serviços públicos e cargos políticos, deixou um vácuo e criou a percepção de que a esquerda “não fala para a periferia”.

Quem fala com a periferia hoje são as igrejas evangélicas, com a sua orientação conservadora. E os cantores de RAP, que a esquerda não conhece ou não entende. E não se pode esquecer que o movimento de urbanização continua estimulado pelas migrações rural-urbanas que vem engrossar as favelas, o grande espaço de concentração populacional em forte crescimento entre os últimos censos.

Completando esta avaliação das mudanças sociais não se pode deixar de registrar que uma parte cada vez mais significativa da juventude mais pobre está sendo atraída para o crime organizado. Isto ocorre há tempos nas áreas urbanas, mas uma série de atividades econômicas na região norte e nos rincões em geral estão sendo capturadas pelas organizações do tráfico de drogas. A mineração ilegal na Amazônia conta com (estima-se) 300 mil trabalhadores, assim como a grilagem de terras, a pesca e a extração de madeira de lei, todas ilegais.

O território amazônico é hoje um espaço sem lei e os tentáculos do PCC, do CV e do ADA contam com suporte de governadores, polícias militares, delegados, juízes, promotores, prefeitos e vereadores. Para piorar este quadro, o período Bolsonaro facilitou o acesso de muitos destes trabalhadores a armas e eles veem as instituições federais (IBAMA, ICMBio e PF) como inimigos a combater para garantir seu pé de meia.

7.

Por fim, mas não por último, temos que registrar a disseminação da comunicação por internet, hoje penetrando até os mais remotos rincões. As mídias sociais têm hoje um papel fundamental na formação da opinião pública e na construção da ruptura da população (e do eleitorado) em bolhas fechadas onde as ideias são forjadas em fake news que ativam o sentimento de ódio na sociedade. Tornou-se muito difícil discutir, dialogar, argumentar e até conversar com quem não partilha das mesmas crenças e isto (discutir, …) é a base da política.

Por mais que o governo consiga resultados razoáveis na economia, a percepção deste público enquadrado nas bolhas da internet será sempre negativa. Por mais que o governo amplie seus programas sociais, a contrainformação não permite que capitalize os sucessos. E cada erro, tropeço ou vacilo do governo é ampliado pelos detratores.

Tudo isto dito, por onde pode passar um movimento de esquerda para criar uma base social organizada? Por enquanto ele se resume aos chamados movimentos identitários, os únicos que mantiveram uma dinâmica de participação e de mobilização. No entanto, o sucesso relativo destes grupos tem sido freado pelos modismos, pelo sectarismo e pelo irritante “politicamente correto”. Pode haver tiro no pé mais cru do que o hino nacional cantado em linguagem neutra? Guilherme Boulos que o diga.

Tem razão os críticos que apontam para uma dicotomia entre as reivindicações identitárias e a luta de classes. Isto não quer dizer que as reivindicações identitárias não devam ser incorporadas nos programas da esquerda, mas que é preciso colocá-las articuladas com as reivindicações de mudanças mais profundas na sociedade. Os movimentos, talvez como efeito de sua relativa inexperiência, enfatizam suas especificidades e os partidos de esquerda, centrados no modo “terceira internacional” de pensar, não tentam ou não conseguem fazer a ligação entre o geral e o específico.

Acontece que a sociedade não se manifesta nem se organiza apenas nas formas históricas convencionais (sindicatos, etc.). Pululam no Brasil milhares de movimentos de caráter local, empunhando bandeiras as mais variadas, quer no meio urbano quer no meio rural. Elas têm a ver com o quotidiano das pessoas tentando resolver seus problemas.

Um exemplo recente foi a quantidade de grupos que se formaram durante a pandemia para garantir a alimentação dos mais pobres, ou os das favelas reivindicando melhorias na habitação, transporte, iluminação e saneamento. Estes movimentos são a resposta, ainda incipiente, dos mais ferrados na nossa sociedade, e não há expectativa de resposta adequada e abrangente dos poderes públicos, municipais, estaduais ou federais, no contexto atual.

Estes movimentos fragmentados são o novo espaço no lugar da “porta de fábrica”. “Voltar para as bases” significa interagir com estes núcleos e buscar relacioná-los e politizá-los em grupos mais amplos, começando nos territórios mais próximos (bairros, aldeias, comunidades rurais, etc.) e ampliando-se até criar movimentos geograficamente mais amplos. O papel da esquerda teria que ser o de buscar soluções mais adequadas para os problemas e forjar movimentos que expressem politicamente um novo programa.

Nada disso é fácil para uma esquerda que se institucionalizou nos serviços públicos e que envelheceu. Os velhos militantes da minha geração se cobram nos zaps a volta às bases, mas estamos muito velhos para ir organizar grupos de compras coletivas nas favelas, por exemplo. E é frustrante espernear em mensagens na internet, esperando que alguém faça aquilo que já não temos fôlego para fazer. O que eu mesmo tento é me tornar disponível para qualquer grupo de base que queira discutir o passado, o presente e o futuro. Talvez pela minha origem de liderança estudantil acabo falando para estudantes ou, pelo meu trabalho com agricultores familiares nos últimos 40 anos, com comunidades rurais. É pouco mas é o que posso fazer.

Finalmente, temos que olhar para a frente e antever o que vai acontecer nos próximos anos. Já escrevi antes, muitas vezes, que estamos às vésperas de uma série de catástrofes que vão pôr à prova a capacidade da nossa sociedade (aqui e no resto d mundo) de se reinventar. As crises combinadas da energia, do aquecimento global e de outras catástrofes ambientais, vão abalar todos nós, de direita e de esquerda.

Me preocupa saber que a direita nega este futuro que se aproxima a passos largos e que a esquerda prefere ignorar os sinais cada dia mais claros de um fim do nosso mundo, do mundo capitalista globalizado, preferindo engolir os paradigmas vigentes de uma economia cada vez mais desligada das necessidades sociais e voltada para a acumulação rentista.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).


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