O preço da destruição

Imagem: Catherine Sheila
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO ABRAMOVAY*

Água, resíduos sólidos, erosão da biodiversidade, poluição atmosférica e emissões de gases de efeito estufa são alguns dos usos gratuitos e destrutivos que o sistema econômico faz da natureza

A economia global se apoia no uso crescente de serviços oferecidos pela natureza, dos quais as empresas dependem – mas que elas sistematicamente destroem – e pelos quais, ao menos até aqui, não pagam nada ou quase nada. O fanatismo fundamentalista de Brasília e as organizações empresariais que vergonhosamente o apoiam consideram que este é o melhor dos mundos para que o Brasil cresça. É por isso que tanto a Sociedade Rural Brasileira como a Confederação Nacional da Indústria esperneiam diante da proposta europeia de proibir a entrada no continente de produtos vindos de áreas recentemente desmatadas e do “mecanismo de ajuste de carbono na fronteira“, projeto em consulta pública e que pode entrar em vigor a partir de 2023.

O ponto de partida para entender do que se trata está num importante relatório empresarial elaborado com o apoio de gigantes globais como a Standard Poor e a consultoria Trucost. Este relatório mostra que se as 1.200 maiores corporações globais tivessem que pagar pelo uso que fazem da natureza, este custo seria superior a seus ganhos líquidos. Em outras palavras, fechariam as portas.

Apesar de todo o progresso científico e tecnológico, do barateamento das energias renováveis modernas, da expansão da frota de veículos elétricos no mundo e do ritmo alucinante da revolução digital, os custos ocultos (ou seja, que não se incorporam aos preços dos produtos) do uso da natureza aumentaram 48% entre 2015 e 2018. Em 2019, eles eram 77% superiores à renda líquida das 1.200 maiores corporações globais.

Água, resíduos sólidos, erosão da biodiversidade, poluição atmosférica e emissões de gases de efeito estufa são alguns dos usos gratuitos e destrutivos que o sistema econômico faz da natureza. São dados que demonstram que a economia contemporânea é ainda fundamentalmente extrativa, apesar dos inegáveis ganhos de eficiência obtidos desde a revolução industrial.

Em vez de considerar que este mundo econômico ficcional é eterno, nada menos que duas mil empresas já trabalham com um “preço interno” do carbono em seu planejamento, segundo o Carbon Disclosure Project. O raciocínio é que em algum momento este preço interno (fictício) será efetivamente cobrado. Quanto mais esta cobrança demorar, mais os impactos dos eventos climáticos extremos serão devastadores para a sociedade e para as próprias empresas.

A questão que o administrador empresarial sintonizado com o presente (e não agarrado ao atraso e ao fanatismo) tem que responder é: quais são as mudanças no leque de produtos e nas tecnologias adotadas para que a oferta de sua empresa à sociedade deixe de destruir a natureza e contribua a regenerá-la? Cobrar pelo carbono é um estímulo à adoção de produtos e técnicas que prescindam de seu uso.

Esta cobrança pelo uso, até aqui gratuito, da biosfera já começa a ser levada à prática no que o Banco Mundial chama de instrumentos de precificação de carbono (carbon pricing instruments). Em 2021, o levantamento do Banco Mundial revela a existência de 64 regiões ou países que colocam preço no carbono. Em 2020, estes instrumentos chegavam a 15,1% das emissões globais e esta cobertura teve aumento significativo, chegando a 21,5% das emissões em 2021. Na China, esta já é uma política nacional que cobre 30% de suas emissões.

Na maior parte dos casos, os preços ainda estão muito aquém do necessário para estimular as mudanças tecnológicas que conduzirão à descarbonização da economia. O FMI estima que este preço, em média, está em três dólares por tonelada. Terá que subir a US$ 75,00 por tonelada até 2030. Mas o mundo em que emitir gases de efeito estufa não custa nada está acabando. Os instrumentos de precificação do carbono vão-se tornando mais ambiciosos.

O Banco Mundial menciona também o Ajustamento na Fronteira como um mecanismo importante para que se abandone a destruição do sistema climático. Ou seja, o produto cujo preço é competitivo por não incluir o custo da destruição do sistema climático, será taxado e onerado para entrar na Europa. Sem um alto preço pelas emissões de gases de efeito estufa esta destruição não será interrompida, como bem o mostra o fato de nada menos que 80% da energia usada no mundo ter origem em combustíveis fósseis, após quase trinta anos depois da Rio+20.

Tudo isso supõe uma transformação fundamental no funcionamento dos mercados contemporâneos. No centro desta transformação está a necessidade cada vez maior de que os processos produtivos sejam rigorosamente rastreados. Uma vez que os preços de mercado colocam na sombra custos pelos quais a sociedade paga sob a forma de incêndios, secas, enchentes, deslizamentos de terra, elevação do nível do mar, poluição, devastação florestal e derretimento das geleiras, informações precisas sobre a maneira como a economia usa a natureza serão cada vez mais importantes nas transações comerciais. A revolução digital tende a baratear estes instrumentos, mas é óbvio que eles não são gratuitos.

Protestar contra estes custos é reivindicar o direito de promover o crescimento econômico às custas da destruição da natureza. Não é de se estranhar que este direito esteja sendo reivindicado por um governo de extrema-direita, apoiado naquilo que o empresariado brasileiro tem de mais atrasado. Contrapor-se a este atraso e recolocar o Brasil no multilateralismo global, pela promoção de uma economia regenerativa, que faça da valorização da natureza a base de nossa prosperidade é parte decisiva do programa de reconstrução democrática do país.

*Ricardo Abramovay é professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Publicado originalmente no portal UOL.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES