O preço dos alimentos

Imagem: Alexey Demidov
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Por LUIZ SÉRGIO CANÁRIO*

As estatísticas podem mostrar o que for, mas as pessoas em seu dia a dia montam suas percepções da realidade a partir de vários fatores e muita subjetividade

Há uma espécie de lenda que fala que dois homens ficaram presos em um desabamento com somente um frango para comer. Um dos homens era forte e violento e o outro uma pessoa comum. Pelos cálculos, um frango seria suficiente para alimentar dois homens por uma semana. Após uma semana de trabalho a equipe de salvamento chega até eles e encontra um deles, o homem comum, morto de fome. Se conclui que o mais forte comeu o frango sozinho, sobrevivendo, mas deixando o outro morrer. Moral da história, estatisticamente se há duas pessoas e um frango, cada uma comeu meio frango. Na prática a estatística foi outra: o mais forte comeu o frango todo.

Isso não é nenhuma espécie de desqualificação da ciência estatística. Ela é fundamental para o desenvolvimento do conhecimento em vários setores. Mas nas ciências sociais, como a economia, ela não deve ser tomada com rigidez. Afinal sempre haverá um frango para duas pessoas em posições de força diferentes.

Maria da Conceição Tavares usava uma frase bastante esclarecedora sobre esse ponto: “o povo não come PIB”. Sempre se pode estender para: o povo não come estatísticas. Nem boas estatísticas econômicas significam vida boa para o povo. O paradoxo de bons indicadores econômicos, em contraste de como isso afeta o povo, pode ser encontrado na declaração do nefasto ditador General Garrastazu Médici, quando, em pleno “milagre econômico”, disse que “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Vivemos nesse momento uma situação aparentemente paradoxal. Há inúmeras estatísticas e indicadores muito favoráveis e que a princípio deveriam ser vistos pelo povo como relevantes e que todo os esforços necessários estão sendo feitos pelo governo para melhorar as suas vidas. Afinal, quem pode negar que o desemprego está em níveis baixos? Ou que o PIB cresceu acima do esperado no ano passado e que esse ano a primeira prévia é muito animadora para projetar o desse ano? Ou que o índice de crescimento da indústria é o maior em anos, inclusive com vários de anos redução? Ou ainda que foi feito um esforço colossal para recuperar parte do desastre causado por Bolsonaro na área da saúde pública, especialmente na vacinação? A extensão da gratuidade na Farmácia Popular. Mas os índices, lá vem a estatística entrando no assunto, de aprovação do governo e de Lula estão baixos e caindo. E que a vantagem que Lula tinha sobre os adversários na eleição de 2026 tem caído junto.

Há quem atribua esse paradoxo a uma questão de comunicação. O governo não consegue fazer o povo ver como há avanços e resultados em vários aspectos da vida. E há de fato, ninguém pode negar isso. Em uma tentativa de sair dessa situação, o governo trocou o comando da comunicação, trazendo Sidônio Palmeira, um experiente marqueteiro de várias campanhas eleitorais, para comandar a área. Sidônio, que é também um empresário em alguns setores da economia, fez várias exigências para assumir. Ao que tudo indica todas foram aceitas.

É aí que está a questão, na falta de eficiência e eficácia da comunicação? Sidônio Palmeira começou a participar de reuniões importantes para a tomada de decisões no governo. É correto incluir um especialista em marketing nas decisões? Se diz que ele, até pela sua origem como militante do PC do B, tem uma grande visão e capacidade de análise política. Se diz que ele interferiu em algumas questões diretamente, aconselhado Lula a tomar essa ou aquela decisão. Esse é o papel de um homem de comunicação? Não que a comunicação do governo estivesse boa.

Com várias disputas de quem ficaria com o que na área, até Janja, a onipresente primeira-dama, tocava algum pedaço da comunicação, não podia dar certo. De onde menos se espera é que nada sai mesmo. Enfim, como se diz, cachorro com vários donos morre de fome. Agora pelo menos tem um dono só ou ao menos acreditamos nisso.

Acreditar que o centro da questão está na comunicação é tapar o sol com a peneira e deixar de fazer análise concreta da situação concreta. E a situação concreta é que mesmo com, em tese, a economia indo bem, de fato o povo se vê não tão bem assim. E óbvio não é por pura má vontade. Até porque, apesar dessa visão, Lula segue em primeiro lugar para as eleições de 2026. Óbvio que não tão mal e desassistido quanto esteve nos anos entre e Dilma e Lula III, os anos negros de Temer-Bolsonaro. E estaria pior se o PT não estivesse no governo. Os indicadores demonstram isso claramente.

Há pistas no campo subjetivo. Alguns alimentos, como café e ovo, subiram bastante nesse último período. Outros produtos de consumo diário, que formam a ideia de preço nos mercados, como o tomate, subiram de preço nos últimos 12 meses como mostrado na tabela abaixo.

Os três gráficos a seguir dão um panorama de algumas estatísticas, que podem dar pistas da causa da aparente má vontade do povo com o governo. O primeiro mostra o IPCA aberto em seus componentes e com o peso de cada um deles na formação do índice geral. Os alimentos, e aqui estão misturados alimentação fora e dentro de casa e bebidas, seguem subindo acima da inflação.

E se o item que mais pesa na composição do IPCA é esse, podemos imaginar o peso dele no índice de preços dos mais pobres. O segundo maior peso é o transporte, outro item pesado no orçamento que sobe mais que o índice geral. Esses dois itens representam 42,7% do IPCA. Somado a habitação chega-se a 57,3% do índice. Não é difícil supor que o somatório desses três itens chegue a 80-90% do orçamento dos mais pobres.

Se olharmos para o salário médio, vemos um exemplo de como as estatísticas precisam ser analisadas com mais cuidado. O salário médio divulgado de R$3.225 mensais, esconda a realidade de que no Maranhão é R$2.049, R$1.176 abaixo da média, e de que em São Paulo é R$3.907, R$1.858 acima do Maranhão. Brasília, terra dos altíssimos salários da nata da burocracia pública, nem dá para considerar com seus R$5.043, R$1.818 acima da média nacional e R$2.994 acima do Maranhão.

E ainda se pode considerar, que por estar mais longe dos centros produtores, o tomate custe ao redor de R$7,85 em São Luiz e de R$6,00 em São Paulo em fevereiro. No Maranhão ganha-se menos e paga-se mais caro pelo tomate. Mas isso não fica explícito quando são divulgadas estatísticas nacionais.

Por fim, abaixo está uma tabela com a variação do PIB por estado. Para uma variação do PIB nacional de 3,4% temos variações desde -0,6% no Mato Grosso do Sul a 6,9% na Paraíba. Não só a renda dos trabalhadores e os preços têm uma distribuição com variações entre os estados. O próprio crescimento, que no caso do MS foi um decrescimento, é igualmente distribuído.

Essa minúscula amostra demonstra que a sensibilidade das pessoas na vida real a estatísticas e índices apresentados pelo governo têm em si elementos para se perceber que elas podem ser sentidas de forma diferentes em estados e regiões diferentes e em estratos de renda diferentes. Vivemos um país de grandes desigualdades. Tanto as naturais, quanto aquelas resultado de um modelo cruel. Some-se a isso o fato de que as estatísticas podem mostrar o que for, mas as pessoas em seu dia a dia montam suas percepções da realidade a partir de vários fatores e muita subjetividade. Não são índices divulgados a exaustão que mudam essas percepções.

Logo o marketing e a comunicação, apesar de serem importantes para o governo apresentar seus programas e resultados, não são suficientes. É preciso ter políticas públicas que tragam melhorias aonde de fato o povo tenha percepção de que sua vida melhorou ou ao menos aponte que está ou vai melhorar. Nesse momento o preço dos alimentos é central. Não o preço da tão sonhada e prometida picanha, mas os preços do tomate, do arroz, da carne do dia a dia e da batata. Como diziam os Titãs, “a gente não quer só comida”, mas sem comida o cérebro desce para o estômago. E a percepção geral fica orientada por aí. No fim, voltamos a saudosa Maria da Conceição Tavares: o povo não come PIB, nem estatísticas.

*Luís Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.


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