Por SERAPHIM PIETROFORTE*
O proselitismo disfarçado de diálogo não busca conversão religiosa, mas adesão política. Sua arma é uma semiótica grosseira que reduz o sagrado à cartilha de ódio
Quem acompanha os conflitos envolvendo a Faixa de Gaza, da diplomacia aos embates propriamente bélicos, certamente pertence, em redes sociais, a, pelo menos, um grupo de discussão sobre o tema. Nesses grupos, circulam as costumeiras informações sobre reuniões, debates, manifestações públicas, as últimas notícias, palavras de ordem… algumas contendas, acusações, disputas partidárias… tudo isso, afinal, espera-se em coletivos organizados para fins políticos.
No entanto, em alguns deles surgem, paulatinamente, anúncios sobre datas importantes para o Islã, discursos sobre as vantagens do casamento segundo os muçulmanos, passagens do Alcorão e tabelas comparando judeus, católicos e muçulmanos, semelhantes ao seguinte quadro:

Religião e política
Religião e política sempre se articularam; ambas, enquanto instituições sociais, nunca ocorrem separadamente. Não se trata, portanto, de encontros fortuitos entre o poder espiritual, exercido pelos sacerdotes – ocupados, supostamente, com a manutenção do culto – e o poder temporal, característico dos políticos – sejam eles reis, tiranos ou presidentes –; verificam-se, isto sim, liames indissolúveis entre os dois domínios.
Na cultura indo-europeia, por exemplo, responsável por boa parte dos costumes dispersos pelo planeta em variadas nações, toma-se por base a tríplice aliança formada pelos poderes sacerdotais, reais e pelos produtores, ou melhor, os agricultores e os comerciantes; segundo linguistas e historiadores, tal estrutura organiza o trabalho, os modos de vida, a mitologia, o vocabulário, a literatura e demais artes desses povos, independentemente de suas dispersões no tempo, no espaço e de suas miscigenações com outras culturas.
Nossas intenções, portanto, não se detém em desfazer esses vínculos, algo indissolúveis, mas em criticar determinados laços entre religião e política traçados um tanto insidiosamente, tais quais o quadro citado antes, cabendo indagar pelos objetivos de comparações assim.
Vale lembrar, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são religiões abraâmicas, pois, apesar de diferenças significativas entre as doutrinas, seus fundadores procedem diretamente de Abraão: (i) os judeus descendem de Isaque e os muçulmanos, de Ismael, ambos filhos da Abraão; (ii) Jesus, como todo judeu, descenderia de Isaque, logo, de Abraão. As três doutrinas, todavia, distanciam-se, tornando-se inconciliáveis; em verdade, a filiação a Abraão parece mais motivo de discórdias que de alianças, entre elas: afinal, quem foi abandonado para morrer no deserto, Isaque ou Ismael? Não sendo Jesus um rabino cismático, por que os cristãos se separaram dos judeus?
Nessas circunstâncias, sem pesar informações alheias à tabela, tudo indica que ela mesma, facilmente, converte-se em fruto de conflitos insuperáveis, entre eles: (a) qual Cristão renunciaria à divindade de Jesus para se conciliar com os muçulmanos? (b) Considerando a importância da crucificação enquanto imolação do cordeiro de Deus – quem tiraria, assim, os pecados do mundo –, como abdicar da paixão de Cristo? (c) Ora, se no Islã não se admite a crucificação, talvez não seja simples se aproximar, em termos religiosos, de um culto cujo símbolo é, exatamente, a cruz. Enfim, estando cada um satisfeito, em termos de ritual e doutrina, com sua própria religião, por que procurar por outras, além do interesse por história, antropologia, ciências das religiões etc.?
A religião entre a superestrutura e a semiosfera
O conceito de superestrutura, segundo o marxismo e pensamentos derivados dele, parece mais familiar que a definição de semiosfera, oriundo, por sua vez, da semiótica. Em linhas gerais, para o materialismo histórico, as relações econômicas, logo, a distribuição do trabalho e da riqueza – a infraestrutura –, embasam os sistemas políticos e judiciários – a superestrutura –, de modo que os demais discursos sociais, tais quais os discursos científicos, religiosos, artísticos etc., embora admitam certo nível de autonomia, dialogam com a política.
A língua, por exemplo, é uma dessas instâncias sociais, pois, independentemente do matiz político, seus sistemas fonológico, morfológico e sintático não se alteram, valendo o mesmo para os teoremas matemáticos, as leis da termodinâmica, preceitos de composição artística e, inclusive, alguns tópicos religiosos.
Dessa forma, o sistema tonal, na música, relaciona-se com a expansão da burguesia, afinal, a uniformização musical reflete uma adaptação do artesanato à indústria dos instrumentos musicais, no entanto, tal sistema não se reduz a relações econômicas, apontando, em grande parte, para a significação musical, ou melhor, para sua semiótica. Isso posto, para prosseguir cabe, oportunamente, diferenciar fenômenos sociais enquanto superestruturas e enquanto sistemas de signos, lembrando de que o sentido se forma, exatamente, na articulação entre a superestrutura política de uma época – logo, decorrente da infraestrutura – e determinada linguagem, gerada, por sua vez, na semiosfera, ou seja, no universo da significação humana.
Quanto à religião, recorrendo logo ao primeiro brahmana da primeira lição do Brhadaranyaka Upanisad, quando se descreve o sacrifício do cavalo, percebem-se as correlações traçadas entre as partes do corpo do animal e as do cosmos – segundo a lição, a cabeça corresponde à aurora, o olho, ao Sol, o alento, ao vento etc. –; nessa semiótica, estruturam-se, ao menos, duas linguagens: (i) uma em que os signos se articulam mediante leias analógicas, fundamentadas na semelhança; (ii) outra, responsável pela sacralização desse processo, quando tais analogias se justificam em discursos religiosos e em cerimoniais específicos – no exemplo dado, trata-se, respectivamente, da lição enquanto explicação e do rito como sua prática.
Dessarte, inseridos no Hinduísmo, os Upanisadas manifestam doutrinas religiosas e concepções metafísicas dotadas de processos semióticos próprios, ou melhor, eles expressam visões de mundo constitutivas de uma esfera de significação; nesse contexto, se o cavalo é um animal valorizado pelos povos indo-europeus devido a razões econômicas, logo, superestruturais, isso explicaria por que ele, e não outra oblação, comparece ao rito, apontando, nesse tópico, para relações entre a semiosfera e a economia.
Isso posto, compensa distinguir os dois pontos de vista, ou melhor, o semiótico e o materialista histórico, para, precisamente, não confundir, no que concerne ao judaísmo, a mística judaica como discurso religioso – por exemplo, a ontologia descrita nas emanações da Árvore Sefirótica –, com o papel desempenhado pelos judeus ao longo da história da Europa, conforme as considerações de Karl Marx, em Sobre a questão judaica.
A religião e seus alcances
Segundo o item anterior, parece clara a ideia de que a religião não se reduz à superestrutura, embora, em sua significação, dialogue com ela. Por conseguinte, para prosseguir, compensa, antes de tecer observações sobre os liames entre religião e história, discutir, mesmo brevemente, o escopo do discurso religioso, iniciando pelo que Lévi-Strauss aponta como sua eficácia simbólica. Sendo assim, precisamente no texto A eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1985: 215-236), o antropólogo menciona o diálogo com um xamã em que o último, confessando-se bastante cético em relação às próprias práticas, permanece nelas, motivado, antes de tudo, pelo prestígio adquirido na comunidade; curiosamente, apesar da descrença do xamã, seus rituais, principalmente os de cura, costumavam funcionar – vale lembrar, o Padre Antonio Vieira, no célebre Sermão da Sexagésima, observava “escutai a pregação e não o pregador.
Não se cuida, portanto, de desmascarar a religião enquanto farsa, mas de verificar o quanto o imaginário humano, incluindo os vínculos psicossomáticos, constitui-se não apenas lógica e ideologicamente, mas por meio de mitos, símbolos e concepções metafísicas.
Dessa perspectiva, o discurso religioso adquire, mesmo articulado inevitavelmente com a história – conforme os demais discursos –, relevância doutrinária, apta a contemplar, segundo os próprios princípios e valores, questões tais quais unidade transcendental, natureza naturante, instâncias de manifestação do ser, o devir, deidades enquanto forças cósmicas, forças da natureza e demais temas afins.
Ora, esse campo do conhecimento humano se aproxima bastante dos discursos poéticos, haja vista as numerosas articulações entre religião e arte, tão constitutivas quanto os liames entre religião e política; em todo culto, indubitavelmente, encontram-se textos excepcionais e, para confirmar, eis algumas referências: (a) o Rig Veda se compõem por poemas belíssimos, tematizando a Morte, a Aurora, o Soma; (b) os Upanisadas contém reflexões agudas sobre o conceito de “prana” e suas relações com os demais sentidos; (c) Ibn Arabi apresenta notáveis descrições dos estados múltiplos do ser; (d) São João da Cruz, em sua Noite escura, além de compor um dos mais belos poemas da língua espanhola, propõe técnicas eficientes de meditação; (e) as ideias de Martin Buber, expressas na obras Eu e Tu e Do diálogo ao dialógico, influenciaram pedagogos, linguistas e demais cientistas sociais.
Nessas circunstâncias, cabe indagar, diante de tantas ocorrências dignas de atenção, por que insistir em quadros comparativos, semelhantes ao citado logo no início.
Propaganda política e proselitismo
Quadros assim, antes de encadear discussões produtivas em religiões comparadas, análises do discurso ou semiótica das religiões, aproximam-se, no contexto dos conflitos vividos entre o estado de Israel e a Faixa de Gaza – que é, justamente, quando tais comparações se destacam –, de propaganda insidiosa, destinada a gerar confusões com base em sínteses simplistas, logo, superficiais; confirma-se, em suma, antissemitismo bastante grosseiro – por pouco, os judeus não são acusados, no cartaz, de matar Jesus, feito se fazia na Idade Média.
Nessas circunstâncias, se tais contrastes assumem pouca serventia, cabe indagar, a quem os defende, com qual islamismo se buscam diálogos e entendimentos, preterindo, dessa perspectiva obtusa, o judaísmo. Isso posto, eis, pelo menos, algumas questões: (1) propõe-se dialogar com intelectuais sufistas, tais quais Frithjof Schuon, quem sempre cuidou das ideias de Shankara, de Râmânuja, do Sufismo e da tribo Sioux com o mesmo respeito, ou do Salafismo? (2) estariam supremacistas raciais, adeptos da Nação do Islã, a fim de dialogar? (3) como estabelecer entendimento com o Talibã, reconhecido pela intolerância religiosa extremada e pelo desrespeito a cultos alheios? (4) ou ainda: quem se lembra dos Budas destruídos em Bamiyan, no Afeganistão?
Ademais, no mesmo grupo de discussão em que se colheu o cartaz, surgem, constantemente, notícias sobre o matrimônio islâmico, sugerindo a harmonia entre jovens rapazes e moças, invariavelmente, cobertas com véus. Pois bem… nesse tópico, o proselitismo religioso se explicita, compensando, brevemente, algumas dúvidas quanto à relatividade das culturas – um conceito complexo, por meio do qual comportamentos, um tanto estranhos, pretendem se consolidar.
Evidentemente, tópicos assim não se discutem superficialmente; em linhas gerais, se, nos tempos do mercantilismo, surgiram teses sobre a superioridade da cultura norte-ocidental e do homem dito branco – no caso, a cultura europeia –, contrariamente, de meados do século XX em diante, aparecem concepções propondo, então, uma suposta relatividade dos costumes, em que não se trata mais de ser superior, mas diferente.
Dito isso, parece, atualmente, impossível concordar com pontos de vista supremacistas, contudo, a relatividade cultural, examinada com acuidade, também não se sustenta; justificadas, muitas vezes, com ideologias religiosas, determinadas comunidades reificam mulheres e crianças, outras exterminam deficientes físicos, gays, lésbicas, transsexuais… há, ainda, quem persiga artistas, cientistas, professores etc. Nessas situações, como respeitar tais costumes?
Vale lembrar, embora com numerosas mazelas, o Brasil se revela um país notável em variados aspectos, em especial, quanto à moral e à religião; nada, no planeta, compara-se ao nosso carnaval enquanto celebração religiosa, à umbanda e suas concepções inclusivas quanto aos guias e divindades, à exposição despudorada do corpo nas cidades litorâneas, à parada gay da cidade de São Paulo… as brasileiras ocupam cargos decisivos, tais quais a presidência da república, a presidência do banco internacional dos BRICS… há transsexuais em todas as instâncias políticas, da vereança ao Congresso Nacional.
Merece atenção, portanto, ao cotejar nossos costumes com esposas de burca e com maridos que se recusam a se aproximar das mulheres, os custos desse diálogo para a cultura brasileira.
Semiótica para principiantes
Por fim, cabem algumas observações sobre as cores utilizadas nas letras do cartaz. Nesse contexto, as cores das fontes utilizadas assumem significados além do mero destaque gráfico; no caso – de um modo bastante primário –, com uma semiótica rudimentar, utilizou-se o verde para representar as supostas confluências entre o cristianismo e o islamismo e o vermelho para as divergências com judaísmo.
Isso parece um tanto ridículo, pois segue-se o padrão do código simplíssimo dos faróis de trânsito, em que o verde significa “siga adiante” e o vermelho, “pare”, “perigo”, “cuidado com a vida”; nessa rede pueril de significação, nem para disfarçar utilizou-se o azul claro para o judaísmo, o que justificaria o verde para o islã. A retórica proselitista do cartaz, porém, buscando identificar cristãos e muçulmanos, parece mais dedica a forçar liames inexistentes do que a respeitar as especificidades de cada culto.
Essa semiótica infantil, entretanto, esconde conteúdos insidiosos; para confirmar, basta especular, brevemente, de quais cristãos esses muçulmanos pretendem se aproximar por meio de Jesus e da Virgem Maria. Em conluios religiosos, os católicos apostólicos romanos, fiéis ao Papa e a tudo representado por ele, dificilmente se interessariam pelas concepções de muçulmanos, judeus ou demais religiosos a despeito de quaisquer questões, por confiarem, inabalavelmente, nas palavras de Jesus, logo, no Novo Testamento.
Em vista disso, o cristão visado talvez seja, justamente, aquele habituado a dialogar frequentemente com o Velho Testamento, isto é, com a visão cristã a respeito dos patriarcas, juízes, reis ou profetas do Judaísmo; desse ponto de vista, o neopentecostalismo parece mais indicado, em especial, aquele de extrema direita.
Tais religiosos ostentam, em manifestações e comícios, equivocadamente, bandeiras de Israel; eles se trajam, nos cultos, com paramentos característicos dos rabinos, apropriando-se de símbolos antes judeus que cristãos, como a Arca da Aliança ou o Selo de Salomão. Assim, mantendo o viés especulativo, cabe indagar que aproximação seria essa, com extremistas, simpatizantes do fascismo, acostumados a eleger golpistas, admiradores de ditaduras militares e de torturadores.
*Seraphim Pietroforte é professor titular de semiótica na Universidade de São Paulo (USP). Autor, entre outros livros, de Semiótica visual: os percursos do olhar (Contexto). [https://amzn.to/4g05uWM]
Referências
BUBER, Martin (s.d.). Eu e Tu. São Paulo: Moraes.
BUBER, Martin (2014). Do diálogo ao dialógico. São Paulo: Perspectiva.
CRUZ, São João da (1991). Obras completas (1). Madri: Alianza.
IBN ARABI (1986). El nucleo del nucleo. Málaga: Sirio.
LÉVI-STRAUSS, Claude (1985). Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
MARX, Karl (2010). Sobre questão judaica. São Paulo: Boitempo.
SAUSSURE, Ferdinand de (2012). Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix.
SCHUON, Frithjof (1993). O esoterismo como princípio e como caminho. São Paulo: Pensamento.
SCHUON, Frithjof (1992). El sol emplumado. Palma de Mallorca: José J. de Olañeta.
Upanisadas (2020). Trad. de Adriano Aprigliano, São Paulo: Mantra.
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