O que herdaremos do coronavírus?

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Por Antônio Sales Rios Neto*

Para inaugurarmos efetivamente o início de um outro modelo de civilização será necessário que os líderes de todos os países se conscientizem de que as relações internacionais devem se estabelecer em novos e melhores patamares de cooperação.

Crises globais como a que estamos experimentando agora são fontes geradoras de profundas mudanças no nosso modo de viver. O mundo não será o mesmo após passarmos a tormenta causada pela pandemia da Covid-19. A cada grande epidemia enfrentada pela humanidade, a história tem nos mostrado que ocorrem mudanças essenciais nas relações políticas das nações, forçando a reorganização dos sistemas produtivo, econômico, financeiro e institucional e, consequentemente, influenciando a cultura subjacente a essas transformações. Foi assim, por exemplo, na peste bubônica do século XIV (conhecida como peste negra), uma doença causada pelo bacilo Yersinia pestis, tão avassaladora que se estima que tenha reduzido a população da Europa em um terço e de um a dois terços a população chinesa (presume-se a morte de 75 a 200 milhões de pessoas na Eurásia). Os historiadores sugerem que sua origem foi asiática, especificamente chinesa, assim como ocorreu com o coronavírus. Sua chegada à Europa estaria associada às trocas comerciais oriundas da Ásia por meio do mar mediterrâneo e da Turquia.

Como principal herança, a peste negra contribuiu para questionar radicalmente o espaço político da religião na Europa, o principal centro irradiador do modo de viver da humanidade naqueles tempos, acelerando assim o final da Idade Média (séculos V ao XV), que vivia sob a égide do teocentrismo. Na época, o porto de Bruges (cidade que ainda conserva sua história medieval e fica à noroeste da Bélgica) constituía o primeiro centro comercial do mundo à margem do feudalismo, vigorando durante o período de 1200 a 1350, nos primórdios do que viria a ser, no futuro, o capitalismo. A peste negra foi tão avassaladora que, quando chegou à Europa em 1348, o comércio de Bruges sucumbiu (associado também a outros fatores), cedendo o status de centro comercial mundial para Veneza (1350-1500), que soube se reinventar diante das crises da época. Porém, a maior consequência da peste talvez tenha sido o fato de ter contribuído para o estabelecimento da polícia como a única trincheira efetiva de defesa da vida das pessoas no velho continente. Em boa medida, o Estado Moderno, as ciências e o capitalismo mercantil nasceram como consequências da onda de choque provocada por essa imensa tragédia sanitária. Questionou-se a capacidade da autoridade religiosa e política da Igreja salvar vidas ou dar algum sentido à morte. Foi assim, como diz o historiador Jacques Attali, que, nessa época, “o policial substituiu o padre” como “da mesma forma, no final do século XVIII, o médico substituiu a polícia como o baluarte mais eficaz contra a morte”. Daquela época aos dias atuais, passamos de uma autoridade amparada na fé para uma autoridade baseada no respeito ao uso da força e, mais adiante, a uma autoridade mais eficaz, a da obediência ao Estado de direito. Temos, agora, que afastar a perigosa tendência de passarmos à submissão da autoridade do mercado, mudança que vem se delineando nas últimas décadas.

O fato é que hoje vivenciamos uma crise sanitária mundial com potencial de produzir impactos civilizacionais similares aos da peste negra, porém com o sério agravante de que temos hoje uma outra crise mundial também em curso, a crise climática, cuja gravidade é, de longe, muito superior à da pandemia do coronavírus, e as atenções (pelo menos por parte daqueles que não têm dúvidas quanto à sua existência) em seu entorno ficaram momentaneamente suspensas diante da urgência do cenário atual. Como no passado, o mundo sairá dessa pandemia (a vacina deve ficar pronta em 18 meses, conforme afirmação do diretor-geral da OMS, em 11/2/2020) com muitos aprendizados e inevitáveis transformações. Nesses poucos meses convivendo com o vírus (identificado em Wuhan, na China, em 31/12/2019, e considerado pandemia global pela OMS em 11/3/2020), já é possível observar alguns sinais dos prováveis efeitos nas duas principais forças que determinam nosso modo de viver: o Estado e o Capital. Ao que tudo indica o coronavírus irá nos mostrar que, mais do que nunca, a liberdade da política e do mercado é o motor da história.

Até agora três principais respostas estão sendo dadas pelos países afetados para conter a expansão do vírus enquanto a vacina não for produzida. Descrevo, a seguir, cada uma dessas respostas em ordem crescente de eficácia e decrescente de interesse do mercado, a partir do ponto de vista das diversas análises que tenho acompanhado.

1) o “herd immunity” (imunização de rebanho): como o próprio nome já diz, essa resposta entende que se toda a humanidade deixar se contaminar pelo vírus, o mais breve possível, criaremos rapidamente uma imunidade global. Porém, ninguém faz a conta de que os 4,9% de letalidade do vírus (Fonte: John Hopkins University – https://coronavirus.jhu.edu/map.html. Acesso em 31/03/2020.), nesse caso, causaria um efeito colateral devastador para tornar a humanidade “mais forte”, ao adquirir a imunidade. Considerando que a população estimada, agora em 2020, é de 7,79 bilhões de pessoas, teríamos um holocausto que poderia ultrapassar as 380 milhões de vidas humanas sacrificadas para alcançar essa imunização darwiniana, um flagelo humanitário inaceitável que aparenta ter a simpatia de uma parcela dos capitalistas mais insensíveis, que devem estar extremamente incomodados com o derretimento dos seus ativos causado pela crise econômica decorrente da pandemia. Ou seja, para os que têm uma visão econômica de mundo mais radical, tais efeitos catastróficos sobre a humanidade seriam mais uma inevitável externalidade (quando uma tomada de decisão não considera as consequências para terceiros afetados por esta decisão) para justificar a não interrupção do movimento do Capital, hoje com sua mobilidade bruscamente afetada pela pandemia. A medida é totalmente rechaçada pelos agentes sanitários, desde o diretor-geral da OMS até aquele assistente de enfermaria que está na linha de frente tentando salvar vidas.

2) o “social distancing” (isolamento social): trata-se da resposta já vivenciada por todos nós aqui no Brasil e em todo o Ocidente. Recomendada insistentemente pela OMS e pela grande maioria dos líderes dos países, a estratégia de estabelecer a restrição social tenta achatar a curva de contaminação do coronavírus, que vem se alastrando de forma exponencial. O fechamento de fronteiras, com todas as consequências econômicas implicadas, também faz parte desse pacote. A medida tem se mostrado a mais eficaz no atual contexto do mundo ocidental. Certamente, o grau de eficácia deve variar em razão das realidades cultural, econômica, política e tecnológica de cada país. Apesar desse esforço de isolamento, a Europa tornou-se o epicentro da pandemia. A Itália, país mais afetado, em razão do contágio ter chegado cerca de dez dias antes de países como a Alemanha, Estados Unidos e Canadá, parece ter sido pega de surpresa e não teve tempo de se preparar e iniciar o isolamento social mais cedo.

3) o “big data” (vigilância digital): estratégia utilizada pelos países asiáticos como a China, Japão, Coreia, Taiwan, Singapura e Hong Kong. A vigilância digital já faz parte do cotidiano e da cultura dessas nações. As pessoas parecem sentir-se seguras estando entorpecidas pela virtualização. Empresas chinesas de comunicação e internet compartilham os dados sensíveis de seus clientes com os serviços estatais de segurança e saúde. Assim, o Estado, que tem uma tradição autoritária culturalmente bem aceita, controla ativamente as pessoas sem que estas se sintam invadidas em sua privacidade. Algo que não ocorreria no mundo ocidental, que é bem mais refratário ao controle de suas vidas. Foi com esses recursos da vigilância digital, como análises de macrodados e comunicação massiva por apps, que eles obtiveram até agora a melhor eficiência no combate à pandemia. Aliado a isso, os asiáticos recorreram também à utilização de máscaras de alta eficiência e à preparação em tempo recorde de infraestruturas sanitárias para enfrentar a situação. Logo no início do contágio, a China conseguiu construir, em Wuhan, em apenas 10 dias, mobilizando quatro mil trabalhadores, o hospital Huoshenshan, com 1.000 leitos, que entrou em operação no dia 3/2/2020. O fato é que chineses e coreanos residentes na Europa estão retornando aos seus países em busca de mais segurança.

Depois que a pandemia passar, a vigilância digital promete ser a menina dos olhos no mundo ocidental, tanto para o Estado quanto para o mercado. A questão é como esse novo Estado policial digital será apropriado pela cultura ocidental: para reforçar ainda mais a noção de que desenvolvimento é algo reduzido ao crescimento econômico e ao desenvolvimento tecnológico, onde a existência é reduzida à luta pela sobrevivência e a chave do sucesso está atrelada à lógica da competição (mais egoísmo e menos altruísmo); ou para superarmos o atual modelo civilizacional, onde o desenvolvimento, segundo o pesquisador José de Souza Silva, “é concebido como um espaço para o encontro entre sociedade, natureza e cultura, uma espécie de Ágora grega – um espaço público onde diferentes atores com diferentes valores, interesses e compromissos debatem e negociam critérios/regras para a gestão democrática das transformações necessárias para o seu desenvolvimento e dos conflitos próprios deste tipo de processo”. Necessitamos, com urgência, de um mundo em que a economia retorne ao seu sentido original (o termo vem do grego “oikos” que significa casa e “nomos” que significa costume ou lei, ou seja, satisfazer as necessidades da casa). Inclusive, alguns estudiosos sugerem que o termo economia teria sido usado nessa acepção desde a antiga Grécia até o século XVIII, tendo a expressão capitalismo nem sido usada por Marx, mas introduzida pelo sociólogo e economista alemão Werner Sombart em 1902, o que teria direcionado o sentido da economia para a simples criação de riqueza com fim em si mesma, desvinculada do cuidado da casa.

Para inaugurarmos efetivamente o início de um outro modelo de civilização, algumas posturas já postas em prática no enfrentamento da pandemia devem, logo após a superação da crise, ser instituídas. Nesse sentido, será necessário, de um lado, que os líderes de todos os países, em especial os membros do G7 (economias mais avançadas) e do G20 (ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 economias do mundo mais a União Européia) se conscientizem de que as relações internacionais devem se estabelecer em novos e melhores patamares de cooperação e compartilhamento de poderes e de responsabilidades. E, do outro, a viabilização da conquista de novos espaços políticos por parte de organismos intergovernamentais como a ONU, alcançando os diversos órgãos que compõem o seu sistema (OMS, OPAS, UNESCO, UNICEF, OIT, PNUD, OMC, PNUMA, IPCC, FAO, dentre outros). Para isso, uma nova governança global com novos parâmetros de atuação será imprescindível, já que somos todos cidadãos da Casa comum, a mãe Terra que nos acolhe. Essas duas abordagens serão fundamentais nesse momento para podermos assegurar uma intervenção positiva nas mudanças que virão e assim criarmos uma política de civilização como defende o sociólogo francês Edgar Morin. Inclusive porque a atenção em torno da crise climática deverá ser retomada imediatamente após a pandemia, a qual já está demandando, faz um bom tempo, essa nova governança global.

Encerro esta breve reflexão compartilhando as palavras do filósofo e ensaísta sul-coreano Byung-Chul Han, extraídas do artigo “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”, publicado por El País, em 22/3/2020. Trata-se de uma das melhores análises que li sobre a conjuntura provocada pela pandemia e as possibilidades que ela enseja, cuja leitura recomendo. Han é professor na Universidade de Artes de Berlim e ganhou notoriedade com seu livro “A Sociedade do Cansaço” (2017), em que nos apresenta ideias-chaves para compreender o tempo presente e atuar para um futuro melhor.    

“O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta.”

*Antônio Sales Rios Neto é Engenheiro Civil e Consultor Organizacional

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