Por RAFAEL R. IORIS*
De alguma forma, o que vivemos nos últimos tempos poderia ser entendido como a Arenização da sociedade brasileira
Assistimos estarrecidos no dia 8 de janeiro passado a última, e certamente mais transloucada, tentativa de golpe no Brasil. E ainda que os golpistas de todos naipes (civis, militares e milicianos) não tenha sido bem-sucedidos em sua intentona neofascista, o maior risco de corremos hoje não é o de não punir os diretamente envolvidos – uma vez que ações nesse sentido estão em curso; mas sim, o risco de tomarmos a parte pelo todo e, assim, perdermos a noção de quão profundo a lógica golpista e os ideais bolsonaristas foram enraizadas em nossa sociedade.
Cabe lembrar que a lógica golpista recente começou já no final de 2014, quando Aécio Neves se recusou a reconhecer o resultado da eleição presidencial, o que foi seguido pela vergonhosa campanha pelo impeachment ilegal (pois sem base jurídica) de uma presidente reeleita democraticamente que tomou as ruas do país por meio de um insuflamento midiático-empresarial somente visto anteriormente quando dos meses precedentes ao golpe civil-militar de 1964.
Quando da farsística ascenção ao poder de Michel Temer, a lógica golpista se aprofundou já que buscava implementar, de forma termidoriana, a agenda política derrotada nas urnas. Para tanto, deu-se início algo que seria aprofundado no (des)governo Bolsonaro: a tomada de várias áreas de poder pela velha-guarda, reacionária e anacrônica do generalato. Isso se deu de maneira especial com a influência crescente que assumiu no governo o general Etchegoyen que, junto, como Augusto Heleno e Villas Boas fizeram da cruzada anti-esquerda, e portanto antidemocrática, o objetivo dos seus anos finais de vida pública.
A lógica antipopular, privatista e antinação, do algo comando militar se refletiu de maneira mais explícita impossível quando do lançamento do seu, ironicamente chamado, Projeto de Nação, em maio do ano passado. Alinhado tanto com o neoliberalismo de Paulo Guedes, quanto com o autoritarismo de Jair Bolsonaro, o documento foi lançado pelo Instituto Villas Boas, novo centro da inteligência reacionária brasileira, defendendo o fim do parco sistema de bem-estar social existente no que cada vez mais se tornou um dos países mais desiguais do mundo.
Ecoando de maneira rançosa a lógica da Guerra Fria, o documento afirma ainda existirem agentes de um complô comunista global infiltrado na esquerda e movimentos sociais locais que deveriam assim, como nos anos 1960, ser monitorados, tutelados, quando não mesmo eliminados – daí a forma criminosa como trataram dos cidadãos da Amazônia, em especial dos Yanomamis, nos últimos anos.
A existência, pois, de uma responsabilidade coletiva (civil e militar) de tais crimes e o fato de que tal lógica e eventos, a cada dia mais conhecidos, parece, tragicamente, ainda ter uma significativa aprovação em diversas camadas sociais reflete pois que, por pior e mais criminoso que seja, Jair Bolsonaro não é o problema, mas sim a face mais bizzara de um problema muitíssimo mais amplo. De fato, de alguma forma, o que vivemos nos últimos tempos poderia ser entendido como a Arenização da sociedade brasileira. Ou não foi exatamente quando do mais truculento período da ditadura, no início dos anos 70, quando a Arena era um partido de base social tão grande que se gabava de ser o maior partido do ocidente?
Nesse sentido, o que Jair Bolsonaro fez foi popularizar e, talvez mesmo, legitimar a faceta mais hipócrita e violenta da lógica institucional e mesmo das nossas próprias bases sociais mais profundas, mas claramente presentes e em funcionamento. Não fosse assim, os também bizarros, truculentos e medíocres Mourão, Pazzuelo, Damares, Moro e Dallagnol, entre outros tantos, não teriam sido tão facilmente eleitos a fim de dar continuidade ‘a promoção da agenda autoritária e neoliberal que Jair Bolsonaro ajudou a institucionalizar.
Sim, a maioria da sociedade brasileira decidiu livremente começar a tentar dar um fim a esse processo. Mas se não entendermos que não se trata de extirpar um homem – por mais que isso seja essencial e necessário –, mas sim de reestruturarmos as instituições, civis e especialmente militares, a fim de eliminar, de uma vez por todas, os ranços autoritários do passado que atavistica e inaceitavelmente ainda insistem em nos assombrar, correremos o risco de perder a (talvez última) oportunidade de reconstruirmos nossa sociedade ao longo de formas mais democráticas e inclusivas.
Nosso maior risco é, portanto, o de não enfrentarmos o golpismo institucional ainda muito presente em nossa política, em nossos aparatos de segurança e, em especial nas Forças Armadas, e que, graças a Jair Bolsonaro, foram tão tragicamente reavivados e expandidos em nossa sociedade como um todo.
*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).
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