Por SÉRGIO E. FERRAZ*
O recado do domingo da Ustrapalooza é na prática, endereçado, principalmente, a Tarcísio de Freitas, Romeu Zema, Ronaldo Caiado e a Michele Bolsonaro
Qual o saldo líquido para Jair Bolsonaro do ato de domingo? Basicamente, mostrar, para os que disputam seu espólio, que ele continua sendo, de longe, a principal liderança do campo da direita e que, se quiserem contar com seu apoio, em eleições futuras, deverão inserir em suas plataformas uma proposta de anistia, que o inclua, naturalmente.
O recado do domingo da Ustrapalooza é, portanto, na prática, endereçado, principalmente, a Tarcísio de Freitas, Romeu Zema, Ronaldo Caiado e a Michele Bolsonaro.
Não é por certo o que Jair Bolsonaro desejaria, mas é o que está ao seu alcance no presente momento: mostrar capacidade de mobilização e “fidelizar” eventuais herdeiros, evitando perda precoce de controle do campo da direita. Em especial, exigir a cláusula da anistia como condição de apoio. Pela enésima vez em sua carreira, o ex-capitão busca, quando acuado, em primeiro lugar, salvar a própria pele e se isentar de responsabilidades. Desde Gandu, nenhuma surpresa.
Outros objetivos, mais ambiciosos, como intimidar o STF e evitar sua prisão, ou criar uma situação em que, no Congresso, se produzisse uma maioria capaz de aprovar, desde já, medidas, que garantissem sua impunidade e a do seu círculo mais próximo, dependeriam da capacidade da extrema direita de mostrar força para subverter a ordem pública e virar a mesa. Ou no mínimo para desestabilizar fortemente o processo político. A manifestação de domingo, embora de grande porte, com quase 200 mil participantes, claramente está longe de representar ameaça dessa natureza.
Na verdade, essa força, no limite capaz de levar a uma ruptura de regime, foi exatamente o que Jair Bolsonaro e seu grupo demonstraram não possuir durante todo o mandato presidencial e, em especial, nos meses finais que desembocaram no fracassado putsch de 08 de janeiro de 2023, a despeito de todos os esforços realizados e que agora estão vindo à luz com as investigações.
Não tiveram essa força quando estavam no poder. Por óbvio, agora possuem muito menos capacidade de desestabilização. E é por isso que a intimidação ao Judiciário e a capacidade de pautar o Congresso para obter anistia imediata são metas fora do horizonte concreto hoje do bolsonarismo.
Para o infortúnio de Jair Bolsonaro, entre outros fatores, seus propósitos pessoais continuam divorciados dos objetivos de curto e médio prazo das Forças Armadas. Antes da troca de guarda no Planalto, a maior parte do Alto Comando do Exército provavelmente entendeu que tinha mais a perder do que a ganhar com um golpe bolsonarista, evitando assim sua consumação, em que pese as pressões existentes. Não toparam trocar uma posição orçamentária e salarial privilegiada pela subordinação a um extremista que atuaria, a partir da ruptura, livre das amarras do Estado de Direito.
Depois da ascensão de Lula, ou seja, no cenário atual, com as investigações em curso acumulando evidências da trama golpista, faz parte das intenções dos chefes militares usar a prisão de Jair Bolsonaro e seus generais como prova (duvidosa, decerto) de que a corporação se pautou pela legalidade. De novo, os propósitos de Jair Bolsonaro e caterva se chocam com o cálculo das Forças Armadas, tirando credibilidade de eventuais ameaças que possa ensaiar fazer.
Em suma, o domingo da terceira-idade reacionária na avenida Paulista terminou sem alterar em nada as chances de Jair Bolsonaro e sua turma sofrerem a devida responsabilização penal. A crer no que dizem alguns juristas e a Polícia Federal, sua fala contribuiu na verdade para piorar sua situação, evidenciando seu pleno conhecimento das minutas que buscavam dar tintas legais ao golpe em curso. A perspectiva de uma anistia em um futuro distante, com muitos “ses” e “senões” no meio do caminho, é tudo com que Jair Bolsonaro pode contar hoje.
PS: Muitos analistas destacam o caráter religioso do evento. Estão corretos. Esse crescimento da dimensão religiosa parece decorrer do recuo, na coalizão que sustentou Jair Bolsonaro nos últimos anos, dos setores militares e empresariais, que buscam, por vias diversas, e por motivos distintos, se adaptar às novas circunstâncias. Por isso, o bolsonarismo e a extrema direita tendem a se vestir com roupagens ainda mais fortemente religiosas no futuro próximo. Isso deveria estimular no Planalto e na esquerda as buscas – até aqui pouco frutíferas – de pontes com os evangélicos. Mas isso já é outra estória.
*Sérgio Eduardo Ferraz é doutor em ciência política pela USP.
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