Por ANTONIO SOARES & ALEXANDRE FERNANDEZ VAZ*
A política-espetáculo adotou a lógica do sensacionalismo, onde o absurdo não é um acidente, mas a estratégia. O objetivo já não é debater ideias, mas capturar a atenção e alimentar identidades tribais, mesmo que à custa da racionalidade e do bem comum
1.
Na década de 1980 um jornal sensacionalista dava a seguinte manchete de capa: “Porca morta arrota no velório”. Este foi um dos exemplos utilizados num curso livre direcionado a alunos do ensino médio no extinto Jornal do Brasil, no final da década de 1970. Claro que os jovens participantes rolaram de rir quando o jornalista palestrante explicava os bastidores da redação ao formularem essa manchete.
A história era que um repórter cobria o enterro de um criminoso num cemitério na baixada fluminense, Rio de Janeiro, quando, no silêncio respeitoso de outra capela, um som inesperado e seco, que se assemelhava a um arroto, escapou do defunto, um resultado provável dos gases já acumulados pelo processo de decomposição corporal. Num misto de espanto e pavor, um grupo de pessoas correu porta afora, gritando em desespero, como se o morto tivesse decidido participar novamente da vida.
Entre tropeços e gritos, o velório virou quase uma cena de comédia: “Ele falou! Eu ouvi!”, dizia uma senhora, com o terço que dedilhava. O jornalista narrou que os colegas de redação, para darem essa notícia, discutiram entre gargalhadas até que um disse que arrotar é uma tremenda falta de educação, enquanto outra jornalista lembrava, aos risos, que arroto é coisa de gente porca. Daí surgiu, da boca de um dos participantes, a manchete segundo a qual a porca arrotou no próprio velório.
As manchetes sensacionalistas sempre foram esperadas nos jornais e na televisão, pois cumprem a função de atrair a atenção do leitor ou do telespectador. A ênfase, o caráter mais ou menos belicoso ou ofensivo, corresponde, em parte, ao que cada sociedade tolera – ou prefere – naquele momento. Esse mesmo mecanismo se repete hoje nas redes sociais e nas propagandas veiculadas na internet, em que a lógica do impacto e do exagero é mobilizada para capturar o interesse imediato do público consumidor.
As soluções mágicas estão na rolagem das telas: ganhe 30 mil por semana; tenha um “abdômen tanquinho” aos 60 anos; emagreça 10 quilos em 7 dias etc. O problema é que, sobretudo após a ascensão das redes sociais, tal estratégia invadiu de forma definitiva o campo da política, deslocando ainda mais o debate racional e programático para a busca incessante por visibilidade. O que importa, nesse cenário, não é a consistência do argumento, mas estar no foco das atenções.
2.
Foi nesse ambiente que se consolidou a prática política mais recente de Jair Bolsonaro. Ainda antes da eleição, ele passou a pautar sua atuação a partir da dinâmica midiática, explorando diariamente a exposição em redes sociais, jornais e televisão. No célebre “cercadinho” do Planalto, já presidente, dirigia-se a apoiadores com declarações polêmicas e, muitas vezes, agressivas, convertendo o absurdo em estratégia de comunicação. Durante a campanha chegou a gesticular com as mãos simulando armas e a afirmar que se deveria “metralhar todos os petralhas”, referência pejorativa aos simpatizantes do PT. Uma clara demonstração de seu apreço pela democracia e pelo desejo de “jogar nas quatro linhas da Constituição”.
Na crise sanitária da COVID-19, adotou postura semelhante: promovia aglomerações em frente a padarias em Brasília, incentivava manifestações públicas e patrocinava motociatas pelo país em plena fase de isolamento social. Na primeira delas, em 9 de maio de 2021, mal começara a disponibilização de vacinas no país. Seu ministério não destoava dessa lógica.
Os ministros da Educação que ocuparam o cargo mostraram-se despreparados e, por vezes, apresentavam propostas caricatas e inviáveis. Paulo Guedes, seu “superministro” da Economia, chegou a justificar a alta do dólar alegando que havia “empregada doméstica indo para Disneylândia”. Outros ministros e apoiadores empenharam-se em relativizar a ditadura militar, negando a prática da tortura e Jair Bolsonaro chegou a exaltar figuras como o coronel Brilhante Ustra, torturador conhecido dentro e fora da caserna.
Todas essas ações, longe de serem incidentes isolados, se articulavam a uma estratégia política inspirada no trumpismo, sob a orientação do ideólogo Steve Bannon: a guerra de narrativas, em que o choque, o escândalo, o sensacional, o absurdo e a ruptura do decoro ou bom senso são usados deliberadamente para manter o político em evidência e reforçar a identidade de grupo entre seus seguidores.
Entre os inúmeros personagens que compuseram o governo de Jair Bolsonaro, merece especial destaque Damares Alves, que esteve à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019 e 2022. A própria denominação da pasta já indicava a tentativa de reavivar a gramática do movimento conservador e reacionário Tradição, Família e Propriedade (TFP), grupo que historicamente atuou a favor da ditadura, contra pautas progressistas de igualdade de gênero, liberdade sexual e direitos civis no Brasil.
Damares Alves tornou-se uma das figuras mais midiáticas e caricatas do “reality show político” bolsonarista. Sua ascensão foi marcada tanto por um discurso moralista, fortemente calcado em experiências pessoais, quanto pela habilidade em produzir falas absurdas e inusitadas, que se transformavam em memes e pautavam a imprensa. O episódio em que relatou sua tentativa de suicídio aos 10 anos de idade, dizendo ter encontrado Jesus em cima de um pé de goiabeira, é exemplar: a narrativa dramatizada foi convertida em recurso político, capaz de mobilizar sua imagem como porta-voz de grupos evangélicos. Nessa esteira, ela não está sozinha, basta observar os shows de pastores nos canais abertos para ouvir os testemunhos mais fantásticos que podem existir.
A ministra acumulou polêmicas, como a tentativa de impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos, vítima de estupro, posicionando-se contra direitos garantidos pela Constituição e evidenciando a instrumentalização de mulheres e crianças num mix de plataforma ideológica, política e religiosa. Outras declarações absurdas e falas moralizantes e hilárias marcaram sua gestão, confirmando a tática bolsonarista de transformar o escândalo em visibilidade e a polêmica em capital político.
Apesar disso – ou infelizmente por isso – Damares Alves foi eleita senadora pelo Distrito Federal em 2022, o que revela dois elementos. Primeiro, demonstra como o discurso conservador nos costumes encontra ressonância social nas camadas médias urbanas, não se limitando a regiões ditas “periféricas” ou “atrasadas”. Segundo, aponta para a força de uma política que se ancora menos em propostas racionais e mais na produção de identidades de quaisquer natureza, sejam morais, étnicas ou religiosas, mobilizando, no caso dessa plataforma, sentimentos de pertencimento, medo e ressentimento. De fato, a trajetória de Damares Alves ilustra de forma exemplar a convergência entre política, espetáculo e religião no bolsonarismo.
3.
Como senadora da República, depois de um tempo fora dos holofotes, eis que ela ressurge em grande estilo. Damares Alves reapareceu com sua mais nova missão: inspecionar a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro. Nada de Amazônia, nada de goiabeira, nada de violência contra mulheres, nada de crianças em situação de vulnerabilidade: o grande drama nacional agora é saber se o ex-presidente tem direito a banho de sol, se a piscina não oferece risco de choque com o uso da tornozeleira eletrônica.
Segundo a justificativa oficial, trata-se de “verificar as condições em que se cumpre a medida de prisão domiciliar” e garantir “os direitos assegurados a toda pessoa privada de liberdade”. Na prática, parece mais o roteiro da comédia política nacional, rivalizando com o famoso dito do general João Baptista Figueiredo, último presidente da ditadura, que preferia o “cheiro dos cavalos ao do povo”.
Podemos imaginar Damares Alves e a comissão do senado chegando com um check-list: Michele pode fazer visitas íntimas ao marido? As roupas de cama são trocadas semanalmente? As visitas de Hélio Negão são para bajular o capitão ou ele agora assumiu o papel de torturador a mando de Xandão? Os empregados estão servindo o almoço pontualmente, ou já começaram a praticar terrorismo psicológico atrasando as refeições ou a servindo fria? Ele tem direito de conversar com a filha em casa? Ele tem direito a beber seu whiskey ou abrir a geladeira?
Enfim, a casa de Jair Bolsonaro apresenta dignidade para uma prisão domiciliar? O que estarrece é que a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou a diligência por votação simbólica. Direitos humanos, agora, significam proteger Jair Bolsonaro contra a temível tortura doméstica: a do controle remoto escondido, da geladeira sem leite condensado, da churrasqueira interditada, da piscina sem tratamento, da interdição para ele brincar e conversar com os cachorros.
Damares Alves é um caso exemplar que a política não mais se organiza em função da fala que tenta provocar o “concerto do mundo”. Política assumiu o formato de guerra cultural, arrogância sensacionalista e simples disputa pela hegemonia simbólica, independente dos efeitos que deveria produzir o bem comum.
Damares Alves não está sozinha, ela está em sintonia com os movimentos reacionários globais, que combinam neoliberalismo econômico com fundamentalismos morais e religiosos, transformando o bizarro em espetáculo e erodindo a democracia a partir de dentro. Nessa esteira outro dia vimos Donald Trump com um boné vermelho que dizia: “Trump was rigth about everything”. Pensando bem, perto disso tudo, “Porca morta arrota no velório” nem fica tão ruim.
*Antonio Soares é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
*Alexandre Fernandez Vaz é professor titular aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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