Por OTÁVIO ALMEIDA FILHO*
Diante das ameaças nucleares, crises sociais e do progresso tecnológico desenfreado, o mundo segue em descenso civilizatório, corroído pelo cinismo e pela perda geral do senso de decência
Você não tem senso de decência? (Pergunta feita pelo advogado Joseph Welch ao senadorJoseph McCarth em 1954).
1.
Dias atrás, em artigo exemplar intitulado From Russia, with love, publicado no site A Terra é Redonda, o economista Paulo Nogueira Batista Jr. sintetizou com clareza, em um parágrafo curto e certeiro, estes tempos de perplexidade que o mundo vive.
“O mundo atravessa uma quadra de extraordinária complexidade e elevados riscos. Estamos ameaçados por perigos de guerra nuclear, por problemas sociais e demográficos, pela destruição ambiental e pelos impactos incalculáveis do progresso tecnológico acelerado, em especial da inteligência artificial. Faz-se necessária, mais do que nunca, uma discussão verdadeiramente global, não excludente, da qual possam participar todas as nações.”
Muitos de nós sabemos que o mundo atravessa – e não de agora – ameaças tão obscenas, dramáticas, cruéis. Guerras, extermínios em massa, declínio moral, ético e a destruição metódica de tudo aquilo que, penosamente, a humanidade alcançou com supremo esforço. Os esforços para superação da barbárie continuam sendo realizados com empenho e esperanças. Diagnósticos diversos foram feitos com o propósito de identificar os males e também os prognósticos proliferam em exercícios de estranha futurologia.
No entanto, para nosso espanto e desesperação o trem desgovernado descendo rumo ao precipício – do qual nos falava Norbert Elias ao tratar do Processo Civilizatório –, continua mergulhando no abismo com velocidade cada vez mais vertiginosa.
“Faz-se necessária, mais do que nunca, uma discussão verdadeiramente global…” – mas, apesar das esperanças propostas por Batista Jr., e com todo respeito que tenho pelas ideias e contribuições do ilustre economista – suas palavras carregadas de exemplares boas intenções, parece-me até mesmo ingênuas diante do aterrorizante grau de decadência em que o mundo se encontra.
Em muito poucos de nós ainda resta aquilo que o senador Joseph McCarthy havia há tempos perdido: o senso de decência. E junto com a decência também foi-se deteriorando a capacidade de indignar-se. A sociedade humana encontra-se, como se pode deduzir dos diagnósticos, totalmente anestesiada e em estado de paralisia crônica.
O grau de desesperança transformado em cinismo vem corroendo todas nossas ilusões de que o processo civilizatório ainda tenha possibilidade de vigorar. A expressão de Hannah Arendt a banalidade do mal tornou-se quase um clichê de assustadora vulgaridade. Tanto faz, tanto fez, pouco importa que crianças explodam entre os escombros de Gaza, que guerras surjam em todas a partes, que os gastos e investimentos na indústria da guerra cresçam exponencialmente, que a Europa (este continente cada vez mais vergonhoso) dobre-se diante das exigências dos EUA exigindo 5% do PIB para comprar armas e preparar um arsenal bélico para mais uma destruição em massa.
O bandido Donald Trump, o arrogante criminoso de guerra que deseja um Prêmio Nobel da Paz, exemplifica com a maior crueldade e canalhice esta absoluta falta de senso de decência. E, no rastro do seu exemplo sinistro, milhões de loucos desvairados mundo afora aplaudem seus ímpetos destruidores. Como ainda, diante disto, podemos falar em decência e indignação?
2.
A mim me parece que estas noções se aproximam, cada vez mais, de piadas do mais obscuro humor doentio. O descaso com a morte, a dor, o abandono e destino trágico de milhões de seres humanos é tão só mais um roteiro escrito por alguma inteligência artificial cínica e canhestra.
E tudo está definitivamente contaminado por este cinismo de cruel vulgaridade. A linguagem, isto que define o humano, evidencia os sintomas da nossa triste decadência ética. Basta ver a expressão criada pelo ex-presidente norte-americano Barack Obama ao se referir a “bombardeios humanitários”. O cinismo despudorado, a indigência intelectual, a ausência absoluta de decência estão servidas nos restaurantes da carnificina fétida onde a humanidade alimenta seu trágico desejo de alcançar o fundo do poço da sua aventura destruidora.
No diagnóstico do economista Paulo Nogueira Batista Jr. encontramos alguns dos signos aos quais devemos ficar atentos. Dois deles há muito ocupam minha atenção. São eles: problemas demográficos e progresso tecnológico acelerado. Os problemas demográficos, decorrentes das explosões demográficas na grande maioria dos países, começaram no início do século XX, sobretudo com a revolução da química produzindo os fertilizantes que permitiram alimentar o crescimento desenfreado da humanidade e também por altas taxas de natalidade impulsionadas pelas melhorias da medicina.
Os problemas ambientais decorrem destas anomalias. Transformamos rios, lagos, e montanhas em pessoas. Cidades que são verdadeiros tumores na crosta do planeta. Não encontro outra imagem para definir cidades como São Paulo, Tóquio, Nova York, Lagos, Pequim ou Paris senão com esse grau de dramaticidade. Basta observar que a população de países como a China, Índia e do continente europeu era, no início do séc. XX, respectivamente, 400 milhões, 260 milhões e 400 milhões. Hoje a Europa tem 700 milhões, a China 1 bilhão e 400 milhões e a Índia 1 bilhão e 460 milhões.
Água, energia, recursos minerais se esgotam e alguns estudos indicam que dentro de muito tempo o colapso será irreversível. Ao lado desses números escandalosos outras anomalias tão ou mais espantosas podem ser observadas. O negacionismo das evidências, a recusa em ouvir os alertas da ciência, o furor consumista vão se juntando à fratura da morte da decência e da indignação.
Quanto ao progresso tecnológico acelerado, em especial da inteligência artificial, de que nos fala Paulo Nogueira Batista Jr. tenho, há algum tempo, desde quando abandonei os pincéis renascentista e aderi aos pixels da computação da gráfica, procurado compreender as implicações desenfreadas do casamento entre a ciência e o capitalismo.
Aqui me refiro aos primórdios da ciência contemporânea quando os filósofos eram matemáticos. Penso em René Descartes, Blaise Pascal, G. W. Leibniz e nos que seguiram atentos aos destinos da humanidade. Lembro bem quando o filósofo Martin Heidegger, num ensaio seminal intitulado A questão da técnica, disse que nosso tempo havia transformado o rio num acessório da hidroelétrica.
Foi nisto que a humanidade, para nosso desalento, foi fazendo com nossa casa – planeta Terra –, transformando a essência do homem em acessório. Que nem mais conhecemos como homens mas como simples recursos humanos. Fardos de carne úteis ao desvario daqueles que há muito perderam o senso da decência.
*Otavio Almeida Filho é doutor em Comunicação e semiótica pela PUC-SP.
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