O sentido da política

Imagem: Mar Abril
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Por LUIZ MARQUES*

Na crise da democracia, o desejo secreto é dar cabo da política cuja essência, na atualidade, sugere uma ausência de sentido

Na Antiguidade, a política identifica-se com a liberdade para participar na arena pública da pólis, debater nas ágoras e deliberar sobre rumos da cidade-Estado (Atenas, século V a.C.). Mas o tempo reinventa costumes. Após a Revolução Industrial (1760-1840), a evolução do capitalismo dissocia a política da economia para barrar os procedimentos republicanos de antanho. A desconfiança mina a reputação da atividade política com escândalos para reforçar preconceitos. A arma da democracia – a participação – é criminalizada e, as decisões, confinadas aos interesses privatizantes das “elites”.

Nos anos 1930, a coisa degringola. A ascensão do nazifascismo e os Processos de Moscou separam a prática política do conceito de liberdade, com o que a primeira se torna uma não política ou uma antipolítica. Sem a liberdade, a figura da política se esvazia e todas as dimensões da vida social são devoradas pela máquina de moer do totalitarismo. Um sistema que não distingue entre as instâncias do público e do privado, ou as manifestações de protesto nas ruas e a sala de jantar da classe média.

Neste contexto, surge a dúvida sobre se a liberdade não começaria com o fim da política. Estados sob Benito Mussolini (Itália), Adolf Hitler (Alemanha), Josef Stalin (URSS) mostram que a política ao transbordar para a subjetividade canibaliza o discernimento com o medo nas interações sociais, na literatura e nas artes. A partir de então o tema ganha contornos de horror. Contudo, a resiliência sobrevive na mensagem de muitos profetas nos Campos de Extermínio e no Arquipélago Gulag.

Amigo vs inimigo

Na crise da democracia, o desejo secreto é dar cabo da política cuja essência, na atualidade, sugere uma ausência de sentido. L’absence de sens chega pelos noticiários da mídia sobre as complicações e os arranjos estranhos para assegurar a governabilidade. A prerrogativa dos cidadãos antigos de traçar o destino é trocada pelo despotismo da mercadoria e das conveniências para a acumulação do capital, graças à exploração dos trabalhadores com a mais valia. A mítica liberdade individual (dos proprietários) louva e converte o livre mercado em um valor mais alto, até, do que a democracia.

Os ressentimentos reatualizam a doutrina do jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt: a política como relação amigo-inimigo. Associa e defende uns; desagrega e mata outros, a exemplo do assassino de Foz do Iguaçu e dos terroristas em Brasília. “A oposição política é a mais intensa e extrema de todas e qualquer outra oposição concreta será mais política, quanto mais se aproximar do ponto extremo”. A fórmula é: ódio+lealdade ao líder=zumbis. Multidões vão ao inferno, achando que é o paraíso.

A polarização espelha a moral (bom-mau) e a estética (belo-feio). O discurso elimina a alteridade. Tolera-se conflitos agonísticos, não antagonísticos. Os últimos travam uma luta pelo poder, com as categorias que apagam a noção de adversário. Proíbem a civilidade na política. A violência exprime a extrema ratio do neoliberalismo, no apoio de Wall Street e das Big Techs a Donald Trump. Sinal de que o neofascismo mobiliza o status quo e a ciberesfera para salvar a unipolaridade, em erosão.

Política é paixão

Em Antonio Gramsci, a “política” é um vértice do triângulo que conta ainda com os “intelectuais” e a “hegemonia”. Sob esse prisma, a política não é a ciência do conflito, senão a dialética que engloba o pensamento e a ação. O cruzamento sintetiza as ideologias para tecer a combinação hegemônica; a unidade intelectual e moral sobre os grupos subordinados. Assim, a política transcende a si própria e constrói uma visão universal; ao revés da economia amarrada e presa ao “reino da necessidade”.

Conforme Antonio Gramsci, no verbete de “Política” do Dizionario gramsciano (1926-1937), publicado no Brasil pela Boitempo: “O grande político só pode ser ‘cultíssimo’, isto é, deve conhecer o máximo de elementos da vida atual; não ‘livrescamente’ como erudição, mas de modo vivo como substância concreta de ‘intuição’ política. No entanto, para que nele se tornem substância viva de ‘intuição’ é preciso aprendê-los também ‘livrescamente’”. O dirigente une pensar e agir, política e história.

“No marxismo puro, os homens tomados em massa não obedecem às paixões, mas às necessidades econômicas. A política é uma paixão. A pátria é uma paixão. Essas duas ideias exigentes não gozam na história mais que de uma função de aparência, porque, na realidade, a vida dos povos no curso dos séculos se explica com o jogo cambiante e sempre renovado de causas de ordem material. A economia é tudo”. Com a política no leme, se supera a imediaticidade das trocas e o economicismo.

Estes, submissos

A limitação dos poderes é desfeita pelo absolutismo da economia capitalista. A cena em que um representante do Supremo Tribunal Federal argumenta em favor das Terceirizações, às expensas dos direitos trabalhistas sob a alegação de modernizar as relações de labor, revela a colonização do STF e da espiritualidade dos magistrados, pelas megacorporações. Thomas Hobbes, em De Cive (Do Cidadão), elenca três tópicos: potestas (Estado), religio (espaço da vida espiritual) e libertas (rede econômica de disputas por posses materiais) para transpor o estágio pré-político da sociedade. No estágio pós-político, a liberdade de mercado se impõe na órbita social e subsume as instituições.

Avaliações do governo Lula 3.0, ora acentuam as frustrações em face do preço dos alimentos nas gôndolas dos supermercados; ora atacam o mandatário por críticas políticas em assuntos “técnicos”. Como se fosse Brutus com maviosas intenções, manipulado por aliados de ocasião para violar as normas da República e da natureza, no conservacionismo confundido com preservação ambiental. Abstrai-se a incontornável “ética da responsabilidade” ao analisar as condutas do governante apenas com a “ética da convicção”. O objetivo é desgastar o projeto político de um Estado de bem-estar.

Mas apesar das orações para um regime de exceção substituir o Estado de direito democrático, a política não desaparece. A aceitação de que é impossível erradicá-la desperta o niilismo destrutivo, regado por um doloroso desencanto do qual se aproveitam os supostos outsiders. Estes, submissos às finanças e ao rentismo, contentam-se com achincalhar as formalidades legislativas e a arrogância de terno e gravata como se vingasse humilhações seculares da ralé invisível socialmente. Por tédio ou desespero, o séquito de confusos releva a corrupção e as fake news dos palhaços sociopatas.

Olhos no amanhã

A fragilidade da governança em curso está em não construir a narrativa do futuro e mobilizar afetos do povo para respaldar o “projeto de união e reconstrução”. A população suporta sacrifícios, se tiver conhecimento do percurso para alcançar Canaã. Uma condição para se apaixonar por um programa político e lutar com os olhos no amanhã. A esperança restabelece a indignação, a camaradagem, a organização, a militância, a vontade de mudanças. “Cada manhã que nasce / me nasce”, diz o poeta.

A política deve satisfazer as carências vitais da sociedade, através da intervenção dos movimentos sociais, de gênero, antirracistas, trabalhistas, ecológicos. Implica lutar pelos direitos humanos lato sensu e Gaia (nossa morada). Mesmo que o agronegócio prefira ser o pai dos irmãos Karamázov.

Em suma, a política depende da práxis na perspectiva paidêutica em que, à exigência cognitiva, se junta o significado moral da ação. Quando a liberdade negativa “de” se liga à liberdade positiva “para”, a porta da utopia se abre. O desafio está em restaurar e socializar o sentido original da política. Não se trata de retroagir a roda da história, mas de usar a imaginação para rimar política e emancipação.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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