Por GUILHERME RODRIGUES*
Considerações sobre o livro de Heinrich Mann
O romance O súdito de Heinrich Mann é um texto que segue a vida de Diederich Hessling durante o tempo da Alemanha guilhermina, quer dizer, o tempo que antecedeu imediatamente o início da Guerra de 1914. Como o súdito ideal do Kaiser Guilherme II, o protagonista até mesmo corta seu bigode à imitação do monarca, e, seguindo os passos do pai como chefe de uma fábrica, exerce a tirania sobre os funcionários de modo também a mimetizar o último imperador alemão: “Sou por completo um homem liberal”,[i] afirma a certa altura o rapaz no romance.
Diederich é um protótipo de uma atitude pequeno-burguesa, como foi também entendido historicamente o imperador de então. Neste sentido, o rapaz tem uma vida característica de um alemão endinheirado daquela época: frequentou os clubes de formação de rapazes, era absorvido por um patriotismo ufanista e antissemita, e, enfim, possui uma personalidade autoritária.[ii]
Ao emprestar de um tipo de linguagem oriunda dos grandes debates políticos da Europa no fim do século XIX, Heinrich Mann publica seu livro (com certa dificuldade devido à censura) somente após a derrota alemã na Guerra; contudo, não deixa de chamar a atenção que seu romance não deixou de ser visto com horror durante os anos 1920 e 1930: ele seria novamente censurado e jogado ao fogo, e seu autor teria a cidadania cassada pelos nazistas.
Essa narrativa percebe como havia na Alemanha de então um sistema político em que liberais indecisos assistem a ascensão deste nacionalismo violento e de um monopolismo capitalista; enquanto isso, social-democratas têm pouco interesse em reformas sociais, ao mesmo tempo que anseiam por posições no governo – o proletariado, por outro lado, não consegue coesão e é brutalmente perseguido pela violência da exploração do trabalho e das tropas do Kaiser, abrindo-se, desta maneira, à coerção e corrupção.
É desta maneira que o romance apresenta este protagonista que se amedronta e se diminui perante seus iguais e superiores à medida que exerce um poder autoritário e violento contra os que estão abaixo de si na hierarquia social – os funcionários de sua fábrica, sua irmã e sua mãe, por exemplo. Heinrich Mann antecipa, assim, em muito na obra algumas tendências da burguesia que participou ativa e passivamente na ascensão dos nazistas durante a República de Weimar, observando de modo perspicaz como no tempo do imperador se combinavam uma economia capitalista moderna e industrial com uma moral restritiva.
Deste modo, a figura de Diederich aparece neste drama cômico como um sujeito com traços caricatos, performáticos e afetados – nada muito estranho para um momento em que se viu alguém fantasiado de terno verde amarelo deixando a própria mãe morrer para defender um remédio ineficaz contra a mais terrível pandemia da história da humanidade. Guilherme II é de fato o modelo do burguês ali, se apresentando de maneira histriônica, espalhafatosa, tudo isso enquanto reprime trabalhadores revoltados montado em seu cavalo; algo que poderíamos ler numa passagem ao final do primeiro capítulo do romance: “Os senhores que seguiam o imperador seguiam-no com extrema determinação, mas os cavalos impeliam-nos por entre o povo, como se todas as pessoas fossem incumbidas de um papel coadjuvante na performance suprema; e, às vezes, perscrutavam o que se dava ao lado, a impressão que causavam no público. O Imperador, por sua vez, via apenas a si mesmo e seu desempenho. Sua feições estavam petrificadas pela profunda seriedade, fazia o olhar reluzir para os milhares que ele fascinava. Comparava-se com eles: o senhor escolhido por Deus com os serviçais revoltados!”.[iii]
A formação de Hessling passa por todos os processos de uma internalização constante dos processos de coerção e naturalização da hierarquia de classe, gênero e raça. Desde cedo, o rapaz sabe que herdará a fábrica de papel do pai, a quem admira com amor e de quem sente um medo terrível; por outro lado, a mãe e a irmã são objetos de desejo e menosprezo, como aponta o próprio narrador: “tirava proveito dos momentos de carinho, mas de modo algum sentia qualquer estima por sua mãe. Sua semelhança com ele não o permitia. Afinal, não tinha estima nem por si mesmo (…)”.[iv]
Nada destes apontamentos são estranhos para um bom leitor de Freud, que conhece o ensaio contemporâneo ao romance de Heinrich Mann: a Psicologia das massas e análise do Eu (1920); ali, o pensador austríaco irá apontar para fenômenos de identificação no interior da estrutura patriarcal tão própria às nossas sociedades.
Este modelo que mescla um processo de identificação narcísica, bem como movimentos de internalização de estruturas de repressão não é, contudo, exclusivo dos núcleos familiares. Argumenta-se neste ensaio de Freud que instituições como o exército e a Igreja produzem fenômenos similares. Mais adiante no tempo, poderíamos nos recordar como Michel Foucault vai desenvolver em seu projeto filosófico – em um diálogo intenso com a psicanálise, se apropriando dela e a transformando radicalmente – que estruturas de controle e disciplina se generalizam nas sociedades modernas; algo que não é estranho à escola, ao que poderia acrescentar que, nas últimas décadas, se tornou ela mesma uma espécie de vanguarda nos modelos disciplinares que engendram sofrimento e o individualizam enquanto formam estes sujeitos “flexíveis” para o mercado de trabalho.
Não é de se assustar, então, que a experiência de Diederich Hessling com a escola é descrita com terror: “Depois de todas essas forças opressoras às quais era subjugado; depois de sapos encantados, do pai, do Deus amado, do fantasma do burgo e da polícia; (…) Diederich viu-se ainda sob outra mais aterrorizadora, que devorava o homem por inteiro de uma vez: a escola”.[v]
A escola é, enfim, um lugar especial no que diz respeito à produção de sofrimento, ao aparelho de controle, às forças disciplinares no pior sentido. A estrutura hierárquica, os modos de vigilância e o empuxo de internalização das formas de exploração do liberalismo (e do neoliberalismo mais recentemente) conhecem um lugar privilegiado na escola moderna; cujo modelo mudou muito pouco nos últimos 200 anos – recorra-se, como exemplo, ao notório romance O Ateneu de Raul Pompéia.
O jovem Diederich “mantinha-se sempre resignado e submisso aos professores severos. Aos benevolentes pregava peças (…)” e “de baixo, discreta, mas invisivelmente, era permitido observar os cadáveres e tirar disso um aprendizado que atenuava a própria condição”[vi]. Desta experiência, o rapaz retira uma parte considerável de sua atitude diante das irmãs, exercendo força opressora similar daqueles “detentores do poder”, como chama o narrador.
Esta escola cuja forma é estruturalmente a mesma, nos últimos cinquenta anos, pelo menos, assumiu esta posição de destaque na implementação da ideologia neoliberal – em especial naquelas particulares – desde pedagogias do “aprender a aprender” (numa apropriação das experiências de Vygotski através do discurso do capitalismo tardio) até a última imposição vertical e tecnocrata do “novo ensino médio”.
Não é necessário muito tempo em uma escola, portanto, para perceber que aquele espaço é de fato um lugar de uma doutrina. Apesar disso, ela está longe do “pânico comunista” que muitos têm de implementação de qualquer coisa vinculada à teoria de Paulo Freire, à busca da emancipação socialista, ao autogoverno das comunidades, à igualdade radical dos sujeitos – trata-se sim da doutrina da guerra de todos contra todos, da competição do mercado, da precarização do conhecimento e exclusão da crítica; ela é em suma uma mistura sinistra de hobbesianismo, darwinismo social e psicologia moral de Friedrich Hayek.
As provas, as câmeras, os diários, os relatórios, os horários exatos para usar o banheiro, o modo estrito de se sentar e fixar cadeiras no chão, os rankings de notas nos simulados – o vestibular como horizonte final. Esta é a doutrina que busca internalizar estruturas de individualização do sofrimento, de disputa entre os iguais, de hierarquias de dominação e exploração; Quincas Borba ficaria orgulhoso dos discípulos do Humanitismo: Ao vencedor, as batatas!
Com pouco tempo em uma escola (e talvez uma escola privada seja ainda mais sintomático neste sentido) se pode perceber que nenhuma revolução pode passar sem uma mudança radical deste lugar.
*Guilherme Rodrigues é doutor em teoria literária pelo IEL da Unicamp.
Referência
Heinrich Mann. O súdito. Tradução: Sibele Paulino. São Paulo, Mundaréu, 2014, 448 págs.
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Notas
[i] MANN, Heinrich. O súdito, p. 125.
[ii] A formação social, educação e descrição do cotidiano destes rapazes da Alemanha guilhermina foram bem estudadas por Norbert Elias em seu livro Os alemães: A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX (https://amzn.to/3snQxtd).
[iii] MANN, ibid. p. 68.
[iv] id. ibid. p. 21.
[v] id. ibid. p. 22.
[vi] id. ibid. p. 23.
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