Por WENDY BROWN*
A coisa mais brilhante que os Republicanos e seus auxiliares na mídia fizeram para deixar de lado a performance de fato de Trump foi identificar os Democratas com o socialismo e Trump com a liberdade
Escrevo este texto enquanto esperamos para saber o resultado das eleições presidenciais americanas. Cinco estados – Arizona, Nevada, Carolina do Norte, Geórgia e Pensilvânia – ainda precisam terminar a contagem dos seus votos, podendo levar dias para completá-la e certificá-la. Alguns estados não requerem que as cédulas de eleitores ausentes cheguem às urnas antes de 12 de novembro. Essas cédulas, ou “absent ballots“, são coletadas de quem não pôde estar presente aos locais de votação, mas registrou seu voto.
Enquanto Biden tem um caminho estreito para a vitória, embora não tão estreito quanto o de Trump, nós também não sabemos o que vai acontecer com as ações judiciais apresentadas pela campanha de Trump. Essas ações pretendem, entre outras coisas, deslegitimar as cédulas enviadas pelo correio, um meio de votação aceito e estabelecido há muito tempo, usado neste ano por milhões de pessoas para evitar aglomerações durante a pandemia de Covid-19.
Assim, ainda não sabemos de muita coisa. Mas já sabemos de algumas, com as quais podemos contar, independentemente do resultado.
De aproximadamente 155 milhões de eleitores, o que equivale a cerca de três quartos da população americana adulta, entre 72-75 milhões votaram para reeleger Donald Trump. É um aumento substancial em relação aos 63 milhões que o levaram ao poder em 2016. Portanto, não é apenas que Trump perdeu poucos apoios nesse período, ele recrutou novos apoiadores, inclusive entre as comunidades negras, latinas e jovens brancos. Cerca de um terço dos eleitores americanos respaldam sua presidência, e querem mais do que viram. Ou, ao menos, desejam ardentemente evitar uma presidência de Biden.
Esses eleitores gostam ou não se importam que esse presidente não faça esforços para liderar ou unir a nação, mas, ao contrário, que lata, se gabe, xingue e ataque como se fosse um valentão indisciplinado de playground.
Eles gostam ou não se importam que ele pague impostos mais baixos do que aqueles pagos pelos trabalhadores e deva quase meio bilhão de dólares a credores desconhecidos.
Eles gostam ou não se importam que ele tenha falhado, descumprindo suas promessas de campanha de 2016 – de um novo plano de saúde, passando pela reindustrialização do Centro-Oeste e por um muro pago pelo México, até uma resposta para a crise de opióides que assola o país.
Eles gostam ou não se importam que ele incite grupos de ódio de supremacistas brancos, milícias armadas de direita, e teorias da conspiração perigosas, ligadas a ameaças de violência civil extrema.
Eles gostam ou não se importam que ele tenha sido acusado, com credibilidade, de assédio ou agressão sexual por mais de duas dúzias de mulheres e que rotineiramente ataque suas interlocutoras ou oponentes mulheres com calúnias misóginas.
Eles gostam ou não se importam que ele tenha lidado com a Covid 19 de maneira quase indiferente, sem atenção à saúde pública e a protocolos médicos, de forma que as taxas de infecção e de morte estejam subindo nas regiões em que ele tem mais suporte e ultrapassem aquelas de qualquer nação industrializada, colaborando para enfraquecer a economia e, possivelmente, levando ao esgotamento o já sobrecarregado sistema de saúde do país.
Eles gostam ou não se importam que o único pacote fiscal emergencial durante a pandemia, o CARES Act [Ato de ajuda, socorro e segurança econômica do Coronavírus], longe de aliviar as dificuldades assustadoras da classe média e trabalhadora deslocada economicamente pela pandemia, constituiu a maior redistribuição de riqueza para cima, em um único ato, da história do capitalismo, feita por meio de corte de impostos aos mais ricos e de empréstimos baratos e sem restrições a corporações.
Eles gostam ou não se importam com sua rejeição à emergência climática e a outras crises ecológicas relacionadas, que ameaçam nosso futuro.
Talvez o mais significante, eles gostam ou não se importam com o desprezo do presidente por instituições, normas e práticas democráticas. Eles respaldam ou são indiferentes ao fato de que seu regime tem todas as sinalizações de um novo fascismo, o que deve se intensificar em um segundo mandato. Além da sua personalidade ditatorial, que ficou evidente quando ele, sem qualquer base para isso, se declarou vencedor das eleições na noite de terça-feira, o novo fascismo inclui tentativas de limitar e controlar as cortes e agências de governo independentes; punir legisladores, governadores e mesmo estados inteiros por falta de lealdade; atacar implacavelmente a mídia, seus profissionais e os intelectuais; disseminar propaganda usando seu mandato; recorrer às forças militares e policiais para intimidar e esmagar a resistência; e, claro, colocar em questão procedimentos estabelecidos e os resultados das eleições.
Mas, à parte daqueles que realmente gostam de tudo o que mencionei acima – e alguns de fato gostam -, como entender aqueles que simplesmente não se importam com tudo isso porque o regime de Trump oferece algo mais, que é vital para eles? A resposta não nos leva a um único problema ou a uma abordagem monolítica. Para alguns, tudo o que importa é sua carteira de investimentos ou quanto pagam de impostos. Para outros, é a santidade do casamento heterossexual ou a inocência sem paralelo do feto. Para alguns poucos, é Jerusalém ou os assentamentos na Cisjordânia. Para outros ainda, é o direito a armas. E, claro, para muitos, é o fato de que seu direito à supremacia branca e masculina esteja em perigo.
Para a maioria, no entanto, um certo tipo de liberdade está em jogo. Em praticamente todas as entrevistas feitas com eleitores de Trump, Biden e o Partido Democrata foram identificados com o socialismo. Já Trump foi identificado com a liberdade. As campanhas dos republicanos para o Congresso bateram nessa tecla: votar contra o Partido Democrata significaria impedir uma tomada socialista da nação, exemplificada pelas primárias democratas, pela “Esquadrão” no Congresso (grupo de parlamentares, reeleitas em 2020, formado por Alexandra Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib), pelos Marxistas que supostamente organizariam o movimento Vidas Negras Importam, e pela mulher negra candidata à vice-presidência que em algum momento apoiou um sistema com cobertura de saúde universal (referência ao apoio de Kamala Harris ao Medicare for All, em um país dominado pela saúde privada)
Seria fácil imaginar isso como uma conversa de Guerra Fria requentada, e certamente é isso que consolidou o voto em Trump em Miami, no estado da Flórida, onde milhões de cubanos ainda cultivam seu ressentimento em relação à revolução de 1959. Mas a Guerra Fria mal esteve em jogo nessa caricatura da candidatura Biden-Harris como socialista. Em vez disso, o perigo levantado é do tipo que Friedrich Hayek traçou em O caminho para a Servidão e Milton Friedman retratou em Capitalismo e Liberdade (os dois fazem parte da corrente neoliberal do pensamento filosófico, político e econômico). É o gigante adormecido do socialismo que a direita vê em qualquer programa de justiça social (que chamam de “engenharia social), isto é, em qualquer tentativa de corrigir o acesso desigual histórico e sistêmico a moradia, recursos, educação, emprego e mesmo ao voto. É também a promessa de substituir impostos regressivos sobre renda e riqueza por impostos progressivos.
O Obamacare é identificado pelo Partido Republicano como socialista. A Fox News se refere rotineiramente ao socialismo do Comitê Nacional do Partido Democrata. E sites de direita como Breitbart identificaram a “Camarada Kamala” com o comunismo depois que ela divulgou um vídeo de campanha explicando que a igualdade é o princípio em que todos começam a competição do mesmo ponto e jogam pelas mesmas regras.
Essas caracterizações não evocam o perigo de repressão política (ainda que possam fazer referências à imposição do “politicamente correto”). Em vez disso, apoiam-se no medo de que políticas sociais e de redistribuição substituam uma economia de mercado crua (e manipulada), que os apoiadores de Trump aprenderam a identificar como espaço de autodeterminação. Eles podem estar vivendo em um precipício financeiro, lidando com o vício em opióides em suas famílias e comunidades, com seus filhos frequentando escolas ruins e a universidade aparecendo como algo financeiramente inatingível. Mas o mantra do socialismo os faz temer que o pouco que têm seja retirado deles por um New Deal Verde, um Obamacare ampliado, um acesso maior às universidades, uma reforma das leis de imigração e uma nação que seja menos dura e má com aqueles percebidos como outsiders ou com os insiders vistos como racial e etnicamente abjetos.
Claro, o que anima os eleitores de Trump pode também ser mais primário. O racismo visceral e a xenofobia; o ódio a feministas, ambientalistas e elites das cidades da costa; o ressentimento furioso com o desdém que eles sabem que os americanos cosmopolitas e mais escolarizados têm por eles; e o amor por um valentão que agarra o que quer e ataca a seu bel-prazer.
A paixão de todos os apoiadores de Trump não pode ser explicada pelo neoliberalismo apenas. A coisa mais brilhante que os Republicanos e seus auxiliares na mídia fizeram para deixar de lado a performance de fato de Trump foi identificar os Democratas com o socialismo e Trump com a liberdade. Foi uma versão da liberdade que ele expressou em sua resistência aos protocolos para a Covid 19, no corte de impostos para os ricos, no aumento do poder e dos direitos das corporações e na destruição do que permaneceu do estado social e regulatório. É uma versão da liberdade que já saturava a cultura neoliberal antigovernamental e antidemocrática, então tudo que o Partido Republicano tinha que fazer era construir sobre essa base.
E podemos apenas imaginar. Se o Partido Democrata seria mesmo carimbado como socialista, não teria sido melhor colocar na disputa um verdadeiro socialista democrático em vez de Biden? Essa poderia ter sido uma oportunidade de educar a América sobre o que é de fato o socialismo democrata (e a liberdade que ele apresenta!), de abertamente rejeitar a cleptocracia Trumpista em vez de apenas a pessoa de Trump, e de galvanizar os dez milhões da geração do Milênio que, em algum momento, viram 2020 como um ano que poderia gerar uma chance de luta para o planeta e para suas próprias perspectivas de prosperar? Biden disputou com foco na decência, mas essa virtude antiquada não está exatamente no topo das preocupações das pessoas no século XXI. Para muitas, um futuro melhor é o que está em questão.
*Wendy Brown é professora de ciência política na Universidade da Califórnia (Berkeley). Publicou, entre outros livros, Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente (Politeia)
Tradução: Flávia Biroli para o Observatório das Eleições de 2020 do INCT .