Por JOÃO RODRIGO V. MARTINS*
A submissão do trabalho artístico aos editais reproduz a lógica da gig economy: uma autonomia ilusória que mascara a precarização, a autodisciplina e a erosão dos laços solidários
1.
Hoje para viver, sobreviver e criar como artista é preciso se inscrever em editais. Disso ninguém tem dúvidas. O edital é forma majoritária, se não exclusiva, pela qual a política pública de cultura é organizada. Diante dessa realidade, proliferam-se por todos os lados cursos e serviços especializados em escrita de projetos e gestão cultural, como se fosse a bala de prata para solução de problemas.
Mas o que esse fenômeno dos editais pode revelar do trabalho artístico? Ainda, como ele se conecta com as condições mais amplas do mundo do trabalho atual, plataformizado, uberizado e da gig economy?
É sabido que o trabalho no capitalismo neoliberal é caracterizado pela precariedade, informalidade, intermitência e flexibilidade, muitos pensadores/as como Ricardo Antunes, Virginia Fontes e Alfredo Saad-Filho apontam isso.
Além dessa dimensão fundamental, há uma outra em que neoliberalismo também advoga um discurso de maior espaço de “participação” dos trabalhadores, pedindo seu envolvimento com a produção, buscando se apresentar como menos hierárquico, mais colaborativo, com um trabalho com maior “autonomia”, “flexibilidade” e “liberdade”, expressas em ideias de que o próprio trabalhador faz seus horários, de que escolhe quando trabalhar e que pode ganhar mais se trabalhar mais.
Nesse processo, muito presente no trabalho plataformizado, o patrão se torna impessoal, despersonalizado e o trabalhador se autodisciplina, exerce um poder de controle sobre si mesmo e seu autoresponsabiliza cada vez mais.
O trabalho artístico via editais não foge a essa regra, pois é profundamente precário, flexível e intermitente. Os artistas precisam apostar em um jogo concorrencial para ser contemplado, já que é comum um projeto artístico se encerrar por falta de meios para manutenção e execução. Nessa lógica, a incerteza, insegurança e intensificação do trabalho estão presentes.
2.
A gestão por metas é uma das características comuns que se assenta tanto do trabalho artístico quanto do plataformizado, funcionando no estabelecimento de metas pelo próprio trabalhador. Seja em cima de uma moto, num call center ou na elaboração de um projeto cultural, o profissional é convidado a participar ativamente da definição de suas próprias metas, dentro de algumas já determinadas pela relação de trabalho.
Ao estabelecer essa dinâmica o trabalhador não o faz por vontade própria, mas por um cálculo de sua remuneração e do trabalho que precisa ser entregue. Isso confere aparência de “liberdade” e “autonomia”, embora o que se veja é intensificação do trabalho, extensão da jornada, competição, forte disciplinamento para aumento de produtividade, imposição de metas inalcançáveis, polivalência, fim do tempo de descanso, entre outras.
E tudo isso ocorre sem qualquer contrapartida ou compromisso por parte dos contratantes ou corporações para melhorar as condições de trabalho, como a limitação da jornada ou o controle do ritmo de produção.
Cria-se um mecanismo de sujeição nos quais os trabalhadores se tornam autocontroladores de sua produção, gestores de si mesmos, mensuradas por instrumentos sofisticados, de técnicas de avaliação objetivas e subjetivas, em uma espécie de governo a distância. Além disso os artistas se tornam responsáveis por todos problemas encontrados no cotidiano do trabalho: prazos, dificuldade na criação, dialogo com público, custos materiais adicionais, entre outros.
Dessa forma, a autodisciplina torna-se um pilar fundamental para o capital, seja na produção de valor econômico ou simbólico. Na transição do modelo fordista, com sua vigilância hierárquica direta, para a lógica de autonomia controlada, vigia-se pelos resultados, por meio do controle rígido de metas. Esse poder gerencial mobiliza a subjetividade do trabalhador, canalizando-a exclusivamente para objetivos, resultados e critérios que privilegiam o calculável e o rentável.
Neste contexto, o próprio indivíduo é levado a gerir a si mesmo como se fosse uma empresa, internalizando a lógica do mercado como princípio de sua própria existência.
A consequência mais perversa desse modelo é a erosão sistemática dos laços de solidariedade, a desagregação da ação coletiva e o profundo adoecimento. A lógica da competição individualizada se infiltra em todas as esferas possíveis, jogando o trabalhador a navegar sozinho em um mar de incertezas.
*João Rodrigo V. Martins é doutorando em antropologia social na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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