Os Deuses Malditos

George Grosz, The Eclipse of the Sun, 1926, Oil on canvas, 207.3 x 182.6 cm
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Por GILDA DE MELLO E SOUZA & ANTONIO CANDIDO*

Comentário sobre o filme de Luchino Visconti

“From forth the kennel of thy womb hath crept A hell-hound that doth hunt us all to death.” (Shakespeare, King Richard III)

Na entrevista que deu a Stefano Roncoroni sobre a gênese de Os Deuses Malditos, Luchino Visconti confessou algumas de suas fontes de inspiração, como Os Buddenbrook, cuja influência na cena inicial do jantar de aniversário do velho Essenbeck é logo identificada pelos leitores de Thomas Mann. Confessou também outras leituras de informação sobre o período histórico, minuciosas, pacientes, conforme exigia o seu temperamento de arqueólogo, que só sabe alçar voo quando já travejou a estrutura da obra e a fincou solidamente no chão. Para criar a atmosfera ideológica da época, diz ter pensado em Hegel, autor que Aschenbach cita em dado momento; mas silencia a influência da teoria do ressentimento, de Nietzsche, de que o filme é, até certo ponto, uma exposição romanceada.

Também não se referiu a Shakespeare, que no entanto lhe forneceu o tom dramático da narrativa, como a tragédia grega havia fornecido o de Rocco e seus Irmãos. impunha-se, de fato, a referência a Macbeth, onde foi buscar a relação tensa e apaixonada dos dois amantes unidos pelo crime, a análise admirável da ambição e de seu correlato, a consciência infeliz. É desses empréstimos que a criação artística se nutre, e o mistério da obra de arte consiste em oferecer, magicamente, através de um corpo velho, retalhado, cosido, a sua face sempre nova.

No início o filme de Visconti parece apreender o Nazismo de esguelha, atento somente às repercussões. Não vemos a História pronta e ordenada, porque estamos inseridos nos acontecimentos, olhando-os do lado de dentro. A semiologia oficial dos filmes do gênero nos habituou a uma Alemanha de parada, passo de ganso e oficiais estúpidos que falam aos berros. Em Os Deuses Malditos Luchino Visconti evita meticulosamente esses lugares comuns. Evita mesmo caracterizar o Nazismo como fenômeno antijudaico e faz apenas algumas alusões a isto, de maneira ocasional, no episódio da menina que se mata e na cerimônia de casamento, quando Sofia e Friedrich declaram a “limpeza de sangue”.

A primeira impressão é que prefere contar a história da família Essenbeck, demorando-se nos detalhes realistas, na caracterização do ambiente, na vestimenta, nas maneiras, demonstrando pela nobreza aquele fascínio perverso que só encontra paralelo em outro grande criador do cinema: Stroheim. Mas Os Deuses Malditos não é um filme realista, e sim uma mitologia, na acepção que Roland Banhes dá a esta palavra; não têm apenas um sentido aparente de linguagem, são uma fala, e esta só pode ser entendida se o ponto de referência constante for o Nazismo.

A sua leitura exige, pois, um deciframento, onde “cada objeto pode passar de uma exis­tência fechada, muda, a um estado oral”, a uma mensagem. As imagens existem com significação autônoma, mas podem cobrir uma outra significação, latente, bem mais profunda. Por exemplo: no jantar de aniversário o S. S. Hauptsturmfuehrer Aschenbach traz à lapela de seu smoking uma pequena cruz gamada de ouro; todavia, esta não é um mero distintivo, mas o goldenen Partei abzeichens, a que só tinham direito militantes de destaque.

Outro caso: a gordura e a própria fisionomia de Konstantin von Essenbeck já sugerem certa semelhança; mas é um determinado sintagma – a capa impermeável combinada ao chapéu de feltro quebrado na testa – que nos faz aproximá-lo de Goering, que aparece vestido assim em várias fotografias da época. Do mesmo modo, aqueles que reconhecem no episódio do hotel de Wiessee a chacina dos S. A. leem a Mercedes escura, que chega lentamente de madrugada, entre guardas silenciosos, como a presença de Hitler no local.

O processo de insuflar nos elementos do entrecho um sem número de significações suplementares, que desafiam constantemente a atenção de quem as decifra, prolonga-se de maneira curiosa na escolha dos nomes, onde assume a forma lúdica de um quebra-cabeça. Assim, o nome da família protagonista do drama, Essenbeck, não foi escolhido a esmo: o radical Essen evoca a cidade da Renânia, berço da célebre família de armeiros Krupp e grande centro da indústria siderúrgica.

Quanto a Aschenbach, é o nome da personagem principal d’A Morte em Veneza, de Thomas Mann, novela querida de Visconti, que acaba de transpô-la para o celuloide. Na novela, Aschenbach representa a decadência e é, de certo modo, portador da morte; o seu homônimo desempenha (sob este único aspecto), papel parecido no filme podendo além disso, pela importância que assume, ser aproximado de Satã. Bruckmann, sobrenome de Friedrich, o gerente da fábrica, é também o de uma família importante de Munique, ligada ao Nazismo; em suas Memórias, Speer fala de uma senhora Bruckmann, como mentora do gosto artístico de Hitler.

Finalmente, é preciso não esquecer a personagem antinazista Herbert Thalmann, homônimo quase perfeito de Ernest Thaelmann, que liderava o Partido Comunista Alemão quando Hitler chegou ao poder. A associação é aliás sugerida na contenda que se estabelece durante o jantar, logo após a notícia do incêndio do Reischstag, quando Konstantin responde ao primo, que denunciava Goering por ter prometido enforcar os inimigos do Terceiro Reich: “Você está perdendo a cabeça, Herbert. Goering referia-se aos comunistas… Ou talvez você também seja comunista?”

Poderíamos dizer, resumindo, que ao lado de um primeiro estrato de ressonância, como a pequena cruz gamada na lapela de Aschenbach, temos um segundo, mais sutil, como o sintagma das roupas e do físico de Konstantin (a esta camada, como veremos, pertence o travesti de Martin); e, por último, um terceiro, como o dos nomes – flutuante, remoto, sem sentido preciso, mas crivando o texto com o fogo fátuo de suas significações possíveis.

O conhecimento do Nazismo reveste-se pois, em Visconti, de uma extraordinária precisão documentária, mas em seguida esta é afastada parcialmente, em proveito de um jogo hábil de sinais e significados. Daí a importância que adquire a correlação entre a roupa civil, o uniforme, a insígnia, a bandeira, a música, a decoração, os gestos, os nomes, os lugares. Estes elementos, que permitem uma espécie de condensação da história – pois se articulam como um sistema simbólico geral, presente em todo o filme – organizam-se ainda em três sistemas particulares, formando os três blocos narrativos principais, que descreveremos a seguir.

Cada um constitui um momento significativo na evolução do Nazismo: o pacto com o grande capital, que o subvencionou e possibilitou a sua chegada ao poder; a liquidação das S. A., que eliminou os seus aspectos populistas e garantiu o apoio dos militares, facultando a Hitler a sucessão de Hindenburg; o predomínio absoluto das S. S., caracterizando uma espécie de “Nazismo puro”, que efetuou a destruição dos judeus e desencadeou a guerra. Além disso, no plano da narrativa há uma articulação de elementos recorrentes que asseguram ao longo dos três blocos a continuidade do sistema simbólico geral — como o fato dos três serem festas, terminadas de modo trágico e marcadas ritmicamente pela chegada sinistra dos S. S. ; ou a constância do travesti, cuja análise diferencial será feita mais adiante.

Os primeiros intérpretes do Nazismo de um ponto de vista econômico, como Daniel Guérin e Juergen Kuczinsky, já mostravam que ele se fez acompanhar de espantosa concentração industrial, permitindo ao grande capitalismo alemão um predomínio nunca visto na economia do país. Visconti parece aderir a este ponto de vista, dando uma interpretação que poderíamos chamar de radical no sentido etimológico da palavra, isto é, que vai à raiz, aos fundamentos econômicos.

A família Essenbeck funciona como estrutura-padrão, refletindo as diferentes etapas das relações entre o Nazismo e o capitalismo. Luchino Visconti mostra, na própria estruturação semiológica do filme, que o Nazismo foi de fato uma “guarda plebeia do grande capital” , como dizia Konrad Heiden; mas guarda que não parou de o envolver e determinar, desde o contrato simbolizado na cena do jantar inicial até à absorção dos últimos membros da família pelas organizações do partido.

No jantar, assistimos com efeito, simbolicamente, ao pacto entre os nacional-socialistas e a indústria pesada. O Barão Joachirn von Essenbeck representa a tradição aristocrática e predatória dos grandes magnatas do aço e das armas, e embora desprezando o arrivismo de Hitler – a quem se refere como “esse senhor” – capitula por motivos de interesse. A pressão política é representada por dois indivíduos: o sobrinho Konstantin, truculento e grosseiro membro das S. A., que ambicionava suceder ao tio, e o parente afastado Aschenbach, impecável oficial das S. S. A luta de morte que se trava desde então entre ambos, no interior da família, e que se manifesta na diversidade das fardas que vestem, é a luta entre dois grupos rivais dos asseclas de Hitler.

Konstantin adere ao ativismo plebeu do movimento em sua fase de conquista do poder, representando uma etapa a ser eliminada. Aschenbach, porta-voz da doutrina na fase de controle do Estado, é a linha de força que promove os acontecimentos: o assassínio do velho Essenbeck; o afastamento do sobrinho liberal e antinazista Herbert Thalmann; a preponderância do gerente ambicioso Friedrich Bruckmann por meio de sua amante Sofia, nora viúva do Barão; o assassínio de Konstantin por Friedrich, em Wiessee; a destruição de Friedrich e Sofia, já agora desnecessários e incômodos; finalmente, o advento do perfeito instrumento nazista, o jovem Barão Martin von Essenbeck, homossexual, pedófilo, toxicômano, incestuoso, sádico, absorvido e transformado em autômato pelos S. S. , que provavelmente absorveram também seu primo Guenther.

Martin é definido com exagero intencional, porque não se visa à verossimilhança psicológica e sim a acentuar através da caracterização da personagem a desagregação da família e a monstruosidade da nova ordem que está emergindo. O pacto entre o Nazismo e o grande capital se efetua quando a resistência do velho patriarca cede em proveito do interesse do grupo – a indústria de que é chefe. Mas a família Essenbeck já está minada de todos os lados pelas divergências políticas e pelas lutas internas de interesses; o jantar de aniversário é o seu último momento de equilíbrio.

A festa é antecipada por um longo preparativo iniciado nos quartos, como o espetáculo começa no camarim dos atores. Antes de entrar em cena, cada figurante repassa o número que dali a pouco vai executar no palco e na vida: as duas meninas repetem versos, assistidas pela governanta; Guenther (filho de Konstantin), ensaia a sua peça de Bach no violoncelo; Herbert Thalmann acusa a transigência de sua classe com o Nazismo enquanto sua mulher Elizabeth lhe arranja a gravata e pede calma; Konstantin toma banho e pensa em como atrair Guenther para a sua causa; o velho Barão lembra-se do filho morto na guerra – enquanto no automóvel que roda em direção ao castelo, Aschenbach e Friedrich traçam os planos da batalha.

O castelo exibe o seu esplendor intacto. É um mecanismo em perfeito funcionamento, com o serviço impecável da criadagem, as relações cordiais entre patrão e empregado, os gestos de carinho que cercam a vida de família. Neste ambiente tranquilo a forma de expressão estética que surge é a representação teatral em homenagem ao velho Barão. Vista isoladamente ela pode ter um ar sentimental e mesmo kitsch; mas é uma forma perfeitamente adequada ao ambiente onde se realiza, um espetáculo comemorativo concebido nos moldes tradicionais, com palco, recitativo de crianças, audição musical de autores consagrados, a que se assiste com roupa de cerimônia. Esta atmosfera harmoniosa é quebrada bruscamente por dois elementos de choque: a imitação de Marlene Dietrich feita por Martin e a notícia do incêndio do Reichstag.

A alusão a Marlene no papel de Lola, em O Anjo Azul, é um signo extremamente ambíguo. A sua significação aparente é erótica e aponta para a mulher equívoca de cabaré, de pose desenvolta, meias pretas, cabelos louros e cartola, mas que o meio já incorporou como símbolo de uma liberdade permitida. Encoberto por este, no entanto, há na imagem um outro sentido de tara e anormalidade – pois a mulher que vemos no palco não é Marlene Dietrich, e sim o travesti de Martin von Essenbeck, herdeiro da poderosa dinastia. A sua inclusão na ordem tranquila do castelo é uma afronta e o velho Barão manifesta o seu desagrado.

Mas, sobrepondo-se a este elemento de perturbação, explode como uma bomba a notícia do falso complô. A proximidade em que se dão os dois sinais de ruptura não é ocasional e o diretor marca por seu intermédio o paralelismo com que, dali em diante, vão se desenvolver as duas linhas do entrecho: a anomalia de Martin e a anomalia do regime. É o momento mais importante da trama, porque é o da queda das máscaras, quando a família começa a desintegrar-se e a ação descamba para a brutalidade. Visconti não se preocupa em preparar realisticamente a virada dos acontecimentos; faz com que eles se precipitem de repente, num tempo mais breve que o romanesco, usando uma condensação que diríamos ser antes a da duração teatral.

Durante o jantar todas as cartas já estão lançadas: o velho Barão anuncia os entendimentos de sua indústria com o Nazismo, Herbert Thalmann se demite da vice-presidência retirando-se da sala com a mulher, Konstantin toma o seu lugar na mesa e no Conselho de Administração. Já está esboçada a luta entre este último e Sofia-Friedrich. Logo mais presenciaremos a chegada dos S. S., a fuga de Herbert, o assassínio do velho patriarca, a violação da pequena Thilde. Ë muito para uma noite apenas, mas não é demais para um primeiro ato shakespeariano.

O segundo episódio fundamental na estrutura do filme – inspirado na liquidação das tropas de assalto, as S. A., comandadas por Roehm – é o massacre na aldeia bávara de Wiessee, perto de Munique, onde Konstantin perde a vida. O assassínio do velho Joachim, na sequência do início, logo após Hitler ter recebido o apoio do capitalismo, é a primeira trapaça depois do pacto. A morte do nazista Konstantin, em Wiessee, simboliza o início da destruição dos títeres que controlavam a alta indústria. O episódio, construído de acordo com o mesmo ritmo do jantar de aniversário, começa de maneira festiva e descuidada, na alegria ruidosa das regatas, para ir desandando progressivamente, enquanto a madrugada avança, em sentimento profundo de tristeza e, finalmente, em tragédia.

Aqui também existe uma manifestação estética, uma representação, que significa um passo a mais na caminhada nazista. Mas agora a emoção artística é despertada pelos cantos partidários e culmina na cena em que os S. A. entoam, bêbados, o Horst Wessel Lied — pendant degradado da cena inicial do castelo, quando, em trajes de cerimônia, Guenther tocava Bach e as primas recitavam versos. A equivalência entre as duas sequências prossegue ainda na profanação das mulheres, pois à menina brutalizada por Martin, embaixo da mesa, correspondem as garçonettes despidas e atiradas para o ar pelos milicianos.

Neste esquema simétrico, o próprio travesti reaparece. Mas não é mais o travesti de um indivíduo, atuando como elemento de choque e ruptura num meio que não é o seu; é o de todo um grupo, acolhido com aplausos. Em vez de exceção temos normalidade, adequação perfeita dessa manifestação estética baixa e grosseira à brutalidade militar do meio, marcado pela ambígua camaradagem masculina.

Caberia talvez uma nota marginal para esclarecer como se acham fundidas, na técnica da composição, a fidelidade aos acontecimentos e a liberdade da interpretação criadora. Na terrível “noite das facas longas”, madrugada de 30 de junho de 1934, quando Hitler decidiu liquidar Roehm para captar o apoio definitivo do Exército e dos conservadores, o que ocorreu na pequena cidade balneária de Wiessee foi a prisão (dirigida pelo Führer em pessoa) de Roehm, de seus ajudantes Uhl e von Spretti e do motorista que dormia com o S. A. Obergruppen-fuehrer Heines, este último, executado no local. Ao que parece, foi a única morte, pois há dúvida quanto ao motorista, que teria sido levado com os demais para Munique, onde foram liquidados com dezenas de outros, enquanto se massacrava mais gente noutras partes, sobretudo em Berlim e na Silésia, num total que Hitler declarou ser de 76 em seu discurso apologético no Reichstag, mas que os entendidos avaliam, uns em cerca de 400, outros em mais de 1.000.

Portanto a sequência de Wiessee foi totalmente inventada, salvo a presença de Roehm, a chegada dos S. S. e a caravana de automóveis. Mas Luchino Visconti montou, num escorço concentrado, todos os elementos do grande drama: a atitude dos S. A. contra o Exército (que ambicionavam substituir, como um “exército popular”), a oposição mais ou menos patente a Hitler, os ruidosos costumes de bambochata, o homossexualismo bastante difundido em suas fileiras, a presença de Hitler no local (embora oculta por elipse), a síntese dos massacres que, naquela madrugada e pelo dia afora, ensanguentaram a Alemanha. Na história real, os chefes das S. A. iriam concentrar-se em Wiessee a 30 de junho, para uma visita de Hitler. Visconti antecipou o que poderia ter acontecido, enfeixando o que aconteceu disperso no espaço e sucessivamente no tempo.

No terceiro episódio, a ação torna a situar-se no castelo dos Essenbeck, para que, voltando ao lugar onde a narrativa começou, sinta-se concretamente o tempo escoado. O elemento estético é então expresso pela oposição dramática dos dois ambientes, nítida como a que separa o belo rosto de Sofia, na primeira parte do filme, da máscara de Ensor que exibe na cerimônia do casamento. Do velho castelo não resta mais nada: nem criadagem, nem pompa, nem protocolo. Das paredes nuas pendem, como numa câmara mortuária, os emblemas nazistas.

As personagens requintadas do primeiro ambiente haviam sido substituídas, na cena do massacre, pela vulgaridade barulhenta, pelo sentido de corporação popular das S. A.; agora, uma ralé suja, carreada pelo Nazismo, forma o pano de fundo sobre o qual se destacam os preparativos do ritual sinistro de Martin: o casamento de Friedrich e da mãe que ele profanou, seguido do assassínio de ambos sob forma de suicídio imposto. Do mundo antigo, que começou a desaparecer com a morte do velho Barão, só resta uma ou outra sobrevivência, como a roupa de gala dos noivos, a gentileza e o sorriso mecânico com que a baronesa ensandecida agradece a presença dos convidados.

Do mesmo modo que as duas anteriores, a sequência vai terminar, simetricamente, com um crime. Mas também este evoluiu. Tomou-se cada vez menos individualizado, passou da relação direta entre o criminoso e a vítima, no assassínio do velho patriarca, à matança coletiva onde a morte de Konstantin se dissolve, até o último crime, impessoal, sem armas, sem sangue, sem riscos. Um assassínio à distância, que não exigiu sequer a presença do criminoso no lugar da execução. E que o crime, absorvido pelo sistema, tornou-se rotina.

O que foi feito de um dos elementos constantes da trama, o travesti? Terá desaparecido? Não; permanece, mas como um valor que mudou de sinal. Desde o início Martin foi tratado como um ser ambíguo, meio homem, meio mulher; e essa espécie de neutralidade de sentido, que é a sua essência, já se reflete no rosto delicado de adolescente, máscara vazia da qual Visconti dispõe com perícia, de acordo com a necessidade expressiva do entrecho.

No começo, acentua o aspecto feminino, quando Martin reage medroso diante da mãe e dos parentes, roendo as unhas inseguro, excluído da disputa em que os demais se entrematam, segregado num terreno marginal, onde só pode comunicar-se – mesmo que seja pela tara – com as crianças e os menos favorecidos pela fortuna. Confinado nos espaços vazios, nos cantos escuros, esgueira-se por baixo dos móveis e é simbolicamente aprisionado no sótão pelo tio, como alguém escorraçado, fugidio e solitário. Quando ensaia as três pancadas do mando, imitando a autoridade do avô, está sozinho, na grande mesa da sala deserta. Sozinho, fechado no quarto, é que espera a amante, debatendo-se com as tendências secretas.

Visconti sublinha de vários modos a existência isolada e subterrânea de Martin, fazendo o elemento significativo depender, ora da função da personagem no enredo, ora apenas da retórica da imagem. Na cena que se passa no escritório da fábrica, é a situação que define a marginalidade de Martin, mostrando-o impaciente e desatento, enquanto Friedrich e os membros do Estado Maior do Exército brindam a um novo modelo de metralhadora. Dali a pouco, a caminho da casa da amante, age como um criminoso, olhando para os lados furtivamente, trocando de carros para despistar o rumo que segue.

Às vezes, no entanto, desejando exprimir a sua constante vocação para o crime, o diretor se limita a apoiar-se na plástica da imagem. O ritmo fluido da sequência é então cortado por uma tomada particular: por exemplo, o close-up de seus olhos. Duas vezes utiliza a imagem dos olhos: como elipse na profanação da prima e como prólogo na profanação da mãe. No primeiro momento, a utilização é, aliás, mais complexa, pois se inscreve na montagem admirável com que sugere a violação de Thilde: ouvimos o grito lancinante no meio da noite, sincronizado à imagem do velho Barão erguendo-se indagador na cama; e a frase termina com a tomada dos olhos de Martin, fosforescentes como os de uma pantera.

Martin e o crime são coextensivos. Mas no início o crime é desvio, infelicidade, tara, anormalidade. Martin surge como um degenerado marginal, que não cabe nos quadros éticos dominantes; um homem disfarçado de mulher, travestido de Lola-Marlene.

O Nazismo, no entanto, criou um estado de coisas onde os degenerados, longe de destoar, encaixam-se normalmente. A personalidade disponível de Martin, a sua humanidade ausente, será de agora em diante preenchida num sentido inverso: o seu último travesti será a farda de S. S. Daí a importância simbólica do gesto com que põe o boné na cabeça, acorde final onde encerra a evolução coerente que o transformou de mulherzinha assustada em oficial duro e implacável.

É fardado de S. S., da cabeça aos pés, que, integrado na ordem nova, preside à destruição definitiva da antiga ordem, à qual pertencia mas que nunca o acolheu integralmente. O crime final de Martin esclarece com luz retrospectiva os crimes anteriores que cometeu: eles deixam então de ser faltas, para se tornarem as provas sucessivas de um longo ritual iniciatório, equivalente macabro da seleção que Himmler achava necessária para essa espécie de ordem de cavalaria, quintessência do Nazismo – os S. S. treinados nos Ordensburgen.

A intenção flagrante do diretor, criando a personagem, foi mostrar, paralelamente à formação do Nazismo, à sua constituição definitiva como força única do Estado, esmagando antagonismos, divergências e adesões insuficientes, a emergência de um indivíduo monstruoso, como os que ele gerou. O filme é, concomitantemente, a anatomia do Nazismo e a história de um nazista padrão, isto é, Martin von Essenbeck.

Os Deuses Malditos manifestam, portanto, um agudo conhecimento político, tornado singularmente eficaz pela força da sua estrutura oculta, que a análise desvenda. Mas se não conhecêssemos os fatos e não pudéssemos avaliar o rigor com que Luchino Visconti os transfigura, efetuando uma habilíssima redução estrutural, o filme guardaria ainda assim o seu impacto de obra de arte, pela coerência do primeiro nível de significação, isto é, a história da disputa pelo poder econômico dentro de uma família.

Post-scriptum

Lucros líquidos da firma Krupp à medida que se acelerava o rearmamento promovido pelo Nazismo (em milhões de marcos):

1935……………………………………………..57.216.392,00

1938……………………………………………..97.071.632,00

1941…………………………………………….111.555.216,00

*Gilda de Mello e Souza (1919- 2005) foi professora de estética do Departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Exercícios de leitura (Editora 34).

*Antonio Candido (1918-2017) foi Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor, entre outros livros, de O Albatroz e o Chinês (Ouro sobre Azul).

Artigo publicado originalmente na revista Discurso nº 2, [https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37723/40450]

Referência


Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei)

Itália, 1969, 156 min.

Direção: Luchino Visconti

Elenco: Dirk Bogarde, Ingrid Thulin, Helmut Griem, Helmut Berger, Renaua Verley, Umberto Orsini, René Koldehoff, Albrecht Schönhals, Charlotte Rampling, Florinda Bolkan.

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6cpk5cllszI

 

 

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