Os fundamentalistas estão chegando

Imagem: Luis Quintero
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

Falta pouco para a teocracia pautar os discursos de candidatos a conselhos tutelares, vereanças, assembleias legislativas, câmara de deputados e senado

“Avareza. Pecado capital nos leigos, que devem sempre se mostrar generosos para com a igreja”
(Barão de Holbach, Teologia Portátil, 1768).
“Jesus não tem dentes no país dos banguelas”
(Titãs, 1987)

Um espectro que nada tem a ver com solidariedade ronda a República dos Bananas. Nos últimas dias, as redes sociais entraram em pé de guerra virtual e física, por conta das eleições para o Conselho Tutelar, realizadas em todo o país no domingo passado, 1º de outubro. De um lado, candidatos a representar interesses oriundos das suas bases de apoio; de outro, pseudocristãos com o pernicioso hábito de contaminar as pautas de campanha com o pendão fundamentalista.

A julgar pelas ideias pré-concebidas pautadas em dogmas; pelo elevado grau de invencionice de numerosos políticos ou religiosos de fachada; pelo teor das fake news que circularam livremente na internet nos últimos tempos; pela vitória do senso comum sobre o espírito crítico, a chaga teocrática veio para ficar. Assim como direitos e deveres previstos na Constituição viraram letra morta, pode-se dizer quase o mesmo sobre a separação entre Estado e Igreja, sem efeito desde a primeira Carta Magna republicana, homologada em 1891: nunca houve.

Num país que permite a propagação e funcionamento de seitas e templos que não pagam impostos, nada mais obsceno que o desfile de preconceitos, proclamados dentro e fora do parlamento. Ao lado de sujeitos, tidos por religiosos, com extensa carreira política, também há seus líderes midiáticos a desafiar o bom senso com promessas irrealizáveis, mercantilizando a boa-fé alheia em emissoras de rádio e televisão.

Robert Muchembled mostrou que a “materialização” da figura do diabo nas artes, entre os séculos XII e XIII, permitiu à igreja cristã construir um inimigo comum capaz de unificar seus adeptos, a despeito de tantas diferenças. Em contrapartida, desde então, também se multiplicaram os escritores e artistas que questionavam os preconceitos milenares que embalam a igreja e a cega adesão dos fiéis – especialmente aqueles incapazes de perceber os efeitos devastadores provocados pelo fundamentalismo religioso.

No Brasil, como sabemos, Lúcifer ganhou novas cores desde as primeiras décadas da República: primeiro, ele foi identificado ao sindicalismo; depois, à permanente “ameaça comunista”, combatida com afinco pelos capatazes do Tio Sam. Em seguida, Satã passou a ser confundido com qualquer política de inclusão social, para, finalmente, “naturalizar” o argumento de que não basta demolir a laicidade do Estado: é necessário resgatar o monoteísmo fundamental, respaldado por um deus punitivo que não admite crendices cuja mitologia não corresponda à das sagradas escrituras.

Falta muito pouco para a teocracia pautar os discursos de candidatos a conselhos tutelares, vereanças, assembleias legislativas estaduais, câmara de deputados federais e senado. O que nunca está em falta é a santa hipocrisia de cada dia: essa fábrica de ofensas vociferadas pela legião de “homens de bem” com que o reino dos pseudorreligiosos se engrandece e multiplica, à custa da miséria dos milhões de seguidores.

Eis aqui a terra prometida, em que oportunistas e mentirosos contumazes continuam a oferecer objetos “abençoados”, sem qualquer restrição do Estado laico. Graças à Deus, à internet e às radiodifusões não recobriram as áreas mais afastadas e carentes desta neocolônia: talvez haja tempo de escaparmos à reedição dos dez mandamentos, à neo-inquisição e aos autos-de-fé, transmitidos, ao vivo, por canais de streaming.

*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Sete falas: ensaios sobre tipologias discursivas (Editora Cancioneiro). [https://amzn.to/3sW93sX]

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES