Por GABRIEL COHN
As atuais necessidades e exigências intelectuais de nosso campo de estudos
1.
A Sociologia como “afirmação”, ou como “interrogação”. Esses foram os motes das falas presidenciais de 1962 e 1987 em congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia, separadas por um quarto de século de inatividade da Sociedade Brasileira de Sociologia durante o período ditatorial. A questão que se põe agora é se essa alternativa responde às atuais necessidades e exigências intelectuais de nosso campo de estudos.
Quando Florestan Fernandes fez a sua exposição em 1962, ele estava realmente preocupado com a questão da sociologia como ciência, ou seja, da sociologia como capaz de dizer à sociedade coisas importantes e, sobretudo, bem fundadas a seu respeito, que ela não percebe espontaneamente e que vão além do senso comum. Desde logo ele estava preocupado com os fundamentos daquilo que a sociologia tinha para dizer. E nesse ponto básico sua posição era inequívoca. A sociologia tem voz própria e relevante na exata medida em que se firme e por extensão se afirme como ciência, capaz de oferecer à sociedade algo que só ela seria capaz de fazer: conhecimento metodicamente construído.
Tendo em vista o quadro muito amplo em que se movia, ele mostrou que já pressentia que os problemas que cercavam a atividade científica rigorosa iriam se acentuar mais à frente. E fazia isso movido por embates diretos nos quais se envolveu. Florestan Fernandes participou fortemente na campanha em defesa da escola pública, e com isso enfrentou muito do que era o pensamento não só conservador como reacionário em meados do século passado. E, no plano propriamente das Ciências Sociais, entrou em polêmica com as posições em outro quadrante do espectro político, de teor nacional-desenvolvimentista sustentadas pelo ISEB, em especial com o sociólogo Guerreiro Ramos, um grande interlocutor que defendia uma posição que Florestan Fernandes não podia aceitar.
Para Guerreiro Ramos, seria necessário amenizar um pouco as exigências rigorosas do método em nome dos limites que o nível de desenvolvimento da sociedade podia impor ao uso de instrumentos e de organização da pesquisa dispendiosos e com exigências elevadas na formação. Florestan não aceitava isso, e se empenhou numa defesa da ciência em seus termos mais avançados, numa posição intransigente em nome do conhecimento rigoroso, em aberto combate a qualquer concessão nessa área.
De certo modo, ele invertia a concepção de Guerreiro Ramos, que nas condições que via à sua volta se preocupava mais com tornar o tratamento científico dos problemas sociais capaz de produzir resultados de aplicação mais imediata na sociedade do que com os padrões de método alcançados em centros de pesquisa mais avançados. Para ele era o contrário. Quanto mais dificuldades as condições da sociedade impunham à produção de conhecimento científico, maior teria que ser a prática rigorosa das exigências do método, pois do contrário somente se abriria espaço para as mais variadas formas de desqualificação da ciência em nome de modalidades irracionalistas de explicação do mundo.
Para Florestan Fernandes a resposta era clara: a sociologia como afirmação, como firme posição favorável à ciência mais avançada em contraste às tendências opostas que ele conhecera de perto. Havia um sentido de urgência em sua fala, uma advertência da necessidade de mobilizar a ciência na tarefa de consolidação e avanço na sociedade de perfil democrático que, em 1962, parecia receptiva. A despeito disso, ele percebia os sinais de vulnerabilidade e ameaças na sociedade, como aquelas que se materializariam em 1964.
2.
Entretanto, há uma nítida inversão nas circunstâncias que exigiam atenção em 1962 e 1987. Em 1962 o Brasil, no auge do processo desenvolvimentista na presidência Juscelino Kubitschek, vivia o ponto alto do período democrático pós-Vargas, para em seguida entrar na contracorrente que levaria ao golpe de 1964 e ao fechamento autoritário em 1968. Em contraste, 25 anos depois entrava-se em novo período de abertura política pós-ditatorial e caminhava-se rumo à Constituinte de 1988, sem as nuvens no horizonte anteriormente perceptíveis para Florestan Fernandes. Parecia possível, de certo modo, considerar cumprida a tarefa da afirmação da sociologia, que soube aproveitar os traços paradoxais do regime, quando ele associava a repressão política e cultural ao apoio a mecanismos de fomento.
Tal política se voltava para as pesquisas em todas as áreas mediante a expansão da pós-graduação e a consolidação de áreas da pesquisa em ciência e tecnologia, sem, no entanto, fechar o terreno das ciências sociais. E estas revelaram insuspeitada capacidade de organização e de atuação em suas entidades representativas, culminando na criação da ANPOCS em 1977. Isso permitia chegar a 1987 com a atenção voltada para a definição das exigências e condições para o avanço da pesquisa numa ciência social que se via como digna desse nome.
Quando essa nova situação se apresentou, uma questão parecia muito forte. Foi ela que se apresentou como lema do Congresso Brasileiro de Sociologia naquele momento. A questão era a seguinte: admitamos que a sociologia demonstra, sim, capacidade de afirmar-se como ciência. Dados os desafios que ela enfrenta no momento presente, como definir seu perfil? Uma sociologia ou muitas? São várias ou é uma só? Naquela oportunidade, um discípulo de Florestan Fernandes torceu o lema da “Sociologia como afirmação” para convertê-lo em “Sociologia como interrogação” nos novos tempos que se abriam, com todas as suas incógnitas. Este último termo, por sinal, permite caracterizar bem a diferença de visões envolvida, quando lança incerteza na posição apaixonadamente (iluminista, nos termos da fala de 1987) comprometida com a razão e o método.
Agora, passados mais 35 anos, a referência aos novos tempos que se abriam adquire um certo travo amargo. Contudo, a correta mescla de intransigência afirmativa e cautela interrogativa permite ir além disso, que, bem feitas as contas, é mais propriamente um problema sociológico. Nenhuma ironia nisso: trata-se de assinalar que a referência é uma situação que exige interpretação e acompanhamento em seu percurso.
Naquela ocasião, havia um forte impulso no sentido de mostrar que caberia à sociologia fazer frente a uma multiplicidade de questões que exigia uma certa diversificação. E por isso mesmo caberia a ela especializar-se internamente e tratar de maneira apropriada questões relativas a dimensões diferentes da sociedade. Foi mesmo oportuno propor dessa maneira a questão, pois, como foi bem lembrado por Élide Rugai Bastos em sua fala, isso ajudou um pouco a esclarecer aspectos da sociedade que seriam relevantes para os debates constituintes um ano depois. Importante era que se estava entrando em um período iluminado por algo como uma euforia democrática, uma grande energia dirigida para tarefas de reconstrução nacional que se desenhavam à frente.
A palavra de ordem não era, como anteriormente, assegurar o rigor científico para bem executar tarefas de índole democrática, mas de dar diretamente primazia ao conteúdo democrático. Novamente temos uma inversão. Se em 1962 o conteúdo democrático do trabalho científico era pressuposto e o que importava era assegurar qualidade de ciência rigorosa na pesquisa, no ocaso do regime autoritário desenhava-se uma tendência no sentido de sobrepor as exigências do momento, definidas como democráticas, ao cuidado com os fundamentos da pesquisa. Na sua formulação extrema, embora frequente, a questão dominante era a de “ir ao concreto”. Vamos dar a voz ao povo, aos de alguma maneira sufocados pelas formas de dominação. Esse “dar a voz” soava como suficiente para caracterizar um problema a partir do senso comum, como que dispensando a ciência de usar seus recursos próprios para melhor formulá-lo.
3.
Esse movimento acabou perdendo fôlego e outras questões viriam a instalar-se no debate, diretamente centradas no problema do melhor enfoque teórico na sociologia. E nesse período o que acabou prevalecendo não foi tanto a questão de se se tratava de uma Sociologia em bloco ou de várias, mas sim os modos diferentes pelos quais se podia equacionar a sua questão fundamental. Havia no ar uma espécie de busca de diferenciação de perspectivas e um pouco também de luta pela hegemonia teórica no campo sociológico.
Quem produziu o melhor modelo? E é por isso que durante alguns anos se buscou constantemente novas “viradas” sociológicas, ou seja, novos enfoques metodológicos e teóricos que concentrassem a atenção naqueles aspectos que se revelassem relevantes, como ocorrera na “virada linguística”. Não é o caso de discutir agora essa variedade de enfoques; a ideia não era tanto de várias sociologias, mas sim de várias formas de adesão da Sociologia como um todo a determinados modos de compreender o mundo.
De certo modo, essa busca de novas âncoras conceituais e temáticas evoca ao seu modo as questões propostas pela alternativa entre uma posição decididamente afirmativa da capacidade da Sociologia para produzir com bases sólidas conhecimento relevante e a posição que se pergunta sobre a capacidade da sociologia de se manter íntegra diante de novos desafios.
Tratava-se da combinação entre a crescente complexidade do mundo e o desenvolvimento das outras áreas das ciências sociais, que não se limitam a serem parceiras, mas tendem a se expandir vigorosamente e, no limite, colocar a sociologia na condição de mero participante na tarefa de prover a sociedade de conhecimento. A interrogação tinha, portanto, um alvo preciso. Estava em jogo a especificidade do conhecimento que cabia a ela produzir por seus meios.
Nem a atenção às exigências do método científico, que podia produzir rigor enquanto reduzia a capacidade de resposta a questões emergentes, nem a multiplicação de sociologias com contornos diferenciados sujeita ao risco de fragmentação tinham como fazer frente aos novos desafios. Ciência unitária e compacta ou ciência múltipla, uma Sociologia ou várias, como interrogava o tema do congresso de 1987. As duas coisas se combinam e demandam novas formulações do problema central.
A Sociologia não enfrentou adequadamente essa questão até o momento. Mas o que ela tem que enfrentar? Para início de conversa, o que quero dizer é que a Sociologia se encontra agora diante de uma ordem de desafios que ela não tem como enfrentar pensando em si própria, pensando na sua organização interna em busca de alguma forma de aperfeiçoamento intrínseco. Claro que ela tem que se aperfeiçoar o tempo todo, mas não é esse o grande tema. É que o desafio da nova situação do mundo é forte demais para a sociologia sozinha conseguir dar alguma resposta.
Ela tem que urgentemente conformar e realizar algo que ela não tem feito de maneira satisfatória, que é a interlocução. E não estou falando somente da interlocução com a própria sociedade, com as questões que ela oferece (isso, na realidade, sempre se tentou fazer); mas interlocução com outras áreas de conhecimento. Sozinha, a sociologia não dará conta disso. Ela tem que se articular no interior das ciências sociais e para além delas, nas diversas modalidades de busca de conhecimento nas Humanidades e, por que não, fora delas.
Sem se converter em interlocutora capaz de outras áreas de conhecimento, ela ficará inerme, se não for simplesmente naufragar. A palavra de ordem, então, é impor-se com interlocutor qualificado no cenário científico. E interlocução significa mais do que buscar respostas em outro campo. É ser capaz de criar uma situação que mova o parceiro a ir além das meras respostas previsíveis e leve ele mesmo a formular novas questões em busca do essencial, que é conceber novos problemas.
Em suma: interlocução não é mera conversa ou consulta, é um confronto no qual os dois lados devem revelar-se capazes de promover mutuamente avanços no conhecimento. Nessas circunstâncias, ela tem que fazer uma coisa fundamental: ser ela própria – quer dizer, reforçar-se internamente – e ao mesmo tempo ser mais do que ela, abrir-se para fora, não de modo subalterno e também não como tentativa de hegemonia, mas como parceiro qualificado.
4.
Eu diria que depois da sociologia como “afirmação” e como “interrogação”, o momento presente é o da sociologia como “interlocução”. Interlocução não só com o mundo, mas com as diversas áreas do conhecimento e da criação, sem exceção e sempre respeitando a exigência básica do rigor. Sem isso, nós falaremos trivialidades. Agora, o que se pode esperar dessa sociologia? E o que lhe é próprio? Para poder ser interlocutora, ela tem que saber muito bem o que lhe é próprio, qual o seu campo de conhecimento. E em que consiste ele? Quero sugerir aqui que existe uma formulação muito precisa daquilo que vem a ser propriamente a Sociologia, da perspectiva do seu objeto e, por extensão, dos seus problemas específicos. Afirma o mestre Octavio Ianni que a sociologia trata das “formas de sociabilidade e do jogo das forças sociais”. Isso é a sociologia. Isso só ela sabe fazer articuladamente. É uma formulação de clareza e concisão inigualáveis.
As formas e o jogo, o cenário e a dinâmica da coisa. Captar isso representa um avanço enorme, que demanda atenção literalmente redobrada. Por um lado, temos as grandes formas de organização, naquilo que fornece a amarração do conjunto. Pelo outro, encontramos o movimento fino, aquilo que ocorre nas entrelinhas da sociedade, o aparentemente insignificante que, no entanto, dá o tom do conjunto. Não se trata de ressuscitar o desgastado tema do macro e do micro.
Não está em causa diretamente o objeto e sim o modo de seu conhecimento, que não se resume nas (indispensáveis) questões de método, e requer a formação e exercício de todo um modo de pensar, atento e ágil, sempre pronto a ver o mundo e reconhecer os possíveis parceiros no esforço de conhecê-lo. Ao lado da visão em escala panorâmica das estruturas comparece a sensibilidade para aquilo que, emprestando termos consagrados em obras clássicas, seriam as “formas elementares da sociabilidade”, sem as quais o grande arcabouço das instituições fica vazio, assim como a efervescência (outra inspiração clássica) criativa no interior da sociedade também não pode dissipar-se sem mais.
Para avançar nesse caminho, temos uma primeira exigência de método: escapar do meramente linear, da ânsia do acesso direto às coisas, que é a contrapartida de buscar resolver tudo por suas próprias forças, ao invés de cultivar suas próprias forças para melhor conectar-se a outras. Entidades incansavelmente movediças como a sociedade exigem antes de mais nada mobilidade intelectual para captar padrões finos e fugidios e, num segundo e decisivo passo, decifrar o modo como essa presença vibrante revela mais do que esconde aquilo que confere sentido ao conjunto maior, ele próprio com contornos fugidios.
Para enfrentar tarefa dessa ordem não há como mover-se sozinho. É preciso ganhar certeza de sua própria integridade e força interna para falar com clareza e fazer o interlocutor responder de modo que sustente o diálogo. Não é a complementaridade na margem própria ao estilo interdisciplinar que está em jogo e nem mesmo a criação de híbridos como já foi o caso da sociobiologia, senão o diálogo em termos iguais entre parceiros situados em campos diferentes. Isso só é possível mediante a formulação de questões de interesse para ambas as partes.
Talvez um modelo atenuado desse intercâmbio, mais tênue porque os parceiros são muito próximos, seja dado pela corrente de forças representada pelo intercâmbio entre conhecimento social e conhecimento político efetuado na constituição, ainda em curso, de uma sociologia política, que, consolidada, representará notável avanço no conhecimento da sociedade.
Conclui-se que está na hora de aproximar a afirmação e a interrogação mediante o esforço para associar as duas na arte da interlocução. Do contrário não se realiza o passo mais importante, que é escolha do interlocutor. Claro que isso envolve uma mudança de enfoque, passa-se da rígida objetividade à plástica intersubjetividade no tratamento dos fatos. Esse intercâmbio pode ser fecundo, mas não facilita em nada o trabalho em cada campo. Pelo contrário, aumenta muito as exigências de método, além de envolver novas demandas na formação e na prática profissional dos pesquisadores. Como se vê, defender a condição de interlocutor científico para a sociologia não é coisa simples, é de alto risco. Mas é coisa a ser seriamente considerada.
*Gabriel Cohn é professor emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de A difícil República (Azougue).
Publicado originalmente no site Outras palavras.
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