Por ANTONIO BENTO*
Cada estrangeiro tem o seu cônsul que reclama por qualquer injustiça que possa sofrer, e o brasileiro, especialmente, o liberto, não encontra aqui o apoio e a justiça quando pedem

Depois da Lei de 13 de Maio de 1888, tem-se notado que a raça preta vai desaparecendo aos poucos deste estado.[i]
Afirmam alguns pessimistas e antigos escravocratas que a raça preta desaparece deste estado porque abusando da liberdade e entregando-se ao vício da embriaguez tem morrido.
Mentira e calúnia, contra essa infeliz raça que foi a causa de todas essas riquezas que põe este Estado acima de todos os outros.
O excesso de barbaridade que usavam os antigos senhores de escravos; o horror que essa pobre gente tinha ao café, que, sendo a base de toda a riqueza dos seus senhores, era contudo a origem de todos os castigos contra os infelizes escravos; a prepotência das autoridades policiais que entendiam perseguir os libertos, impossibilitando-os de formar família; o desaforo com que os Juízes de Órfãos arrancavam os filhos dos libertos, mesmo casados, para pô-los como escravos em casa dos antigos senhores, obrigavam os libertos a escolherem outros Estados aonde naturalmente encontravam melhores autoridades, melhores patrões e meios mais fáceis para viverem.[ii]
Acresce ainda que a maior parte dos escravos vinha das antigas províncias do norte para serem vendidos aqui e nas províncias do sul.
A barbaridade do comércio fazia com que se separassem os filhos das mães, maridos das mulheres, irmãs dos irmãos, e a facilidade de conseguirem a falsificação das matrículas fazia com que tudo isso se tornasse um fato normal, apesar das leis em contrário.
Dada a Lei Áurea que confraternizou todos os brasileiros, entenderam os libertos nortistas partir para os estados donde tinham vindo à procura não só de seus parentes, como de uma vida superior à que passavam neste estado.
A uberdade e fertilidade dos terrenos do norte para os gêneros de primeira necessidade, o pouco trabalho que precisam para tirar da terra o necessário para viver, vai fazendo que os libertos do norte procurem suas antigas pátrias para serem mais felizes do que têm sido aqui.
Acresce ainda que neste estado é mais feliz o estrangeiro do que o nacional.
Cada estrangeiro tem o seu cônsul que reclama por qualquer injustiça que possa sofrer, e o brasileiro, especialmente, o liberto, não encontra aqui o apoio e a justiça quando pedem.
Está explicada, portanto, a razão pela qual os libertos vão pouco a pouco desaparecendo deste estado.
* Antonio Bento (1843-1898) foi promotor público, juiz, jornalista e abolicionista.[iii]
Referências
BENTO, Antonio (1897a). Os pretos desaparecem d’este Estado, A Redempção: folha abolicionista, 27 de junho de 1897, p. 1-2. Disponível em: https://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/periodicos/jornais/BR_APESP_IHGSP_003JOR50953.pdf
BENTO, Antonio (1897b). Órphãos escravizados, A Redempção: folha abolicionista, 17 de julho de 1897, p. 2. Disponível em: https://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/periodicos/jornais/BR_APESP_IHGSP_003JOR50954.pdf
BENTO, Antonio (1897c). O abolicionismo reduzido a chapa, A Redempção: folha abolicionista, 22 de agosto de 1897, p. 1. Disponível em: https://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/periodicos/jornais/BR_APESP_IHGSP_003JOR50955.pdf
FERNANDES, Florestan (1955). Cor e estrutura social em mudança. In. BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, p. 67-122. SILVA, Hipólito (1899). Dr. Antonio Bento, A Redempção: folha abolicionista, 13 de maio de 1899, p. 3-4. Disponível em: https://www.arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/periodicos/jornais/BR_APESP_IHGSP_003JOR50958.pdf
Notas
[i] Pesquisa, edição e notas de Paulo Fernandes Silveira.
[ii] Na edição posterior, A Redenção retomou essa denúncia sobre a escravização dos filhos dos libertos: “Continuamos a receber de todos os pontos do Estado queixas de que os Juízes de Órfãos entregam os filhos dos libertos como escravos aos antigos fazendeiros. Esses infelizes trabalham de sol a sol sem receber outra recompensa senão a pouca comida e uns trapos para vestir” (BENTO, 1897b, p. 2).
[iii] Nos textos elaborados para a Pesquisa Unesco, Florestan Fernandes analisou as ações de Antonio Bento e do grupo dos caifazes na captura e fuga das pessoas escravizadas no Estado de São Paulo: “O movimento chefiado pelo Dr. Antonio Bento possuía ampla base popular e tinha meios de atingir as senzalas, dentro do seu raio de agitação, como o conseguiu fazer. Possuía uma folha abolicionista, A Redenção, e contava com o apoio da Irmandade Nossa Senhora dos Remédios, de que se tornara um dos mentores. Depois da Abolição, muitos membros das camadas dominantes se inculcaram como antigos colaboradores de Antonio Bento, este afirma, porém, que não recebera auxílio de ricos. As contribuições eram obtidas dos abolicionistas mais ativos, quase todos pobres” (1955, p. 84, nota. 70). Num artigo de 1897, Antonio Bento informa: “Os ricos e poderosos fugiam de ter contato com os abolicionistas. (…) A abolição foi feita pela pobreza, com o maior sacrifício que é possível imaginar-se” (1897c, p. 1).
Na última edição do A Redenção, quando Antonio Bento já havia falecido, aos 55 anos de idade, seu companheiro abolicionista Hipólito da Silva faz o seguinte relato:
“Não houve mais chefes, a exceção de Antonio Bento. Todos os outros éramos caifazes. (…) Trabalhávamos todos secretamente, com este único fim: subtrair escravizados ao poder dos senhores. (…) O cocheiro da praça, o carregador, o caixeiro, o negociante, o operário, o acadêmico, o jornalista, o advogado, o médico, todos, todos, que não tinham escravos, queriam fazer jus ao título de caifaz, subtraindo um escravo – ao irmão, ao pai, à sogra, a quem quer que fosse, contanto que o dono perdesse a cabeça a procurá-lo, sem saber como se deu a fuga e indo queixar-se à polícia, para pedir providências!
A polícia, indignada, fazia cercar a casa de Antonio Bento, que cautelosamente já havia feito fugir pelos quintais vizinhos, pelos fundos, pelos telhados ou alçapões imaginários os que tinham em casa, isso quando não os fazia sair muito naturalmente, pela porta da rua, disfarçados!
Foi então que a cabeça do chefe correu risco.
Choviam as cartas anônimas, as ameaças, as tentativas de agressão, e caifazes dedicados, temendo as arremetidas covardes do escravismo, não abandonavam mais o chefe” (1899, p. 4).
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