Por BORIS BUDEN*
O que vemos nas ruas das cidades sérvias não é uma massa, mas uma sociedade, só que a mídia, como é, não tem palavras nem imagens para nos dizer e mostrar isso
1.
A famosa gravura de Flammarion, uma representação icônica do mundo no limiar do Renascimento, ilustra uma cena surreal: ao chegar ao fim do mundo – o lugar onde a abóbada celeste toca a placa plana da Terra – um jovem, provavelmente um peregrino, enfiou a cabeça através da membrana do céu e olhou para… não sabemos o quê.
Inúmeros intérpretes do significado simbólico desta ilustração, que provavelmente surgiu apenas no século XIX, não encontraram nenhuma explicação para o que essa figura viu do outro lado do mundo conhecido. Alguns enxergaram nas linhas indistintas a imagem de um deus, outros reconheceram ali os mecanismos do cosmos, e outros ainda, uma representação visual do “motor imóvel” de Aristóteles.
No entanto, o que é evidente nesta ilustração e sobre o qual não há disputa é o seu tema verdadeiro e único: o momento da revelação do ainda não visto, ou seja, o êxtase que acompanha esse ato e que o observador da cena compartilha com seu protagonista, a figura do homem que ousou romper com a cabeça o horizonte do existente. Todo o restante é secundário – o kitsch da realidade banal.
Em seu significado simbólico, esta antiga gravura em madeira de Flammarion nos diz mais sobre os protestos estudantis na Sérvia do que todos as mídias de comunicação atuais juntas, sejam elas as sociais ou as não-sociais. Excitadas pelo espetáculo, como adolescentes no pornhub, elas saturam nossas pupilas com a mesma imagem que se repete em um loop infinito: a massa que penetra o espaço público, a massa que se acumula e se levanta, inchada até o ponto de ruptura, a massa em ação, a massa de cima, a massa de baixo, a massa da esquerda e da direita, em movimento e em pausa, em detalhe e em plano geral, cinicamente reduzida na perspectiva pró-regime, otimistamente ampliada na perspectiva antirregime. E então, de novo a massa, e mais massa… Por mais espetacular que seja, todo esse overkill visual, queira ou não, serve a um propósito – alastrar duas ilusões doces e esconder uma verdade amarga.
A primeira ilusão é que a massa, cem anos após sua primeira entrada na arena política do mundo moderno, ainda é um sujeito político relevante, tanto para o bem quanto para o mal. Nos cérebros calcarizados dos civis-liberais, ela ainda desempenha um papel importante, embora jamais entre em cena sem trajar um disfarce: primeiramente com os trapos sujos e malcheirosos de populismo, e, depois, com o outfit sazonal da sociedade civil organizada. Enquanto o primeiro é xingado e cuspido, o segundo é aplaudido entusiasticamente: é por isso que o público europeu e ocidental nem sequer percebe os protestos estudantis sérvios, apesar de sua massividade.
2.
A massa sem disfarce, por mais espetacular que seja sua apresentação midiática, permanece invisível. Tudo, é claro, seria diferente se os estudantes tivessem saído às ruas sob as bandeiras da Sérvia e da Rússia, invocado Kosovo e gritado por Vladimir Putin. Horrorizada com a selvageria dos balcânicos primitivos, seduzidos por manipulações populistas, a Europa encontraria mais uma razão pela qual a Sérvia não tem e não pode ter lugar em seu “círculo civilizacional”.
Se, por outro lado, tivessem erguido as bandeiras da União Europeia, da OTAN ou as cores do arco-íris e declarado que saíram às ruas em nome da democracia e dos valores europeus, contra autocratas iliberais como Putin, Orbán e Vučić, toda a Europa, liderada por Ursula von der Leyen, teria ficado ao lado da corajosa sociedade civil que está guiando a Sérvia em direção a um futuro europeu. Mas, infelizmente, os estudantes sérvios não são nem uma coisa nem outra. Eles, junto com todos que publicamente os apoiam, nem mesmo são uma massa, algo que até os meios de comunicação favoráveis a eles não conseguem compreender ou retratar.
Portanto, a ideia de que a massa nas ruas ainda é capaz de mudar radicalmente a realidade dada é uma pura ilusão, doce, é verdade, mas ainda assim apenas uma ilusão. Se não antes, isso ficou claramente demonstrado naquele distante sábado, 15 de fevereiro de 2003, quando milhões de pessoas saíram às ruas em seiscentas cidades ao redor do mundo para protestar contra a anunciada invasão do Iraque, uma intervenção militar ilegal e a ocupação de um país soberano, legitimada por seus autores perante o Conselho de Segurança e toda a opinião pública mundial com mentiras ridículas. As pessoas reagiram com o maior protesto em massa da história da humanidade. Somente nas ruas de Roma, a massa contava com três milhões de pessoas. Londres testemunhou o maior comício político de sua história.
E o que aconteceu? Nada! A “coalizão dos dispostos” fez o seu trabalho, enviou mais de 150.000 pessoas para a morte, das quais dois terços eram civis, e expulsou milhões de iraquianos para o exílio. As democracias liberais ocidentais, tão orgulhosas de seus valores democráticos, ignoraram completamente a vontade das massas. Violaram leis, cometeram crimes e tudo isso não apenas sem punição, mas também sem quaisquer consequências políticas.
Hoje, enquanto uma nova “coalizão dos dispostos” se forma na Europa para o armamento e a guerra, protestos ocorrem apenas em Niš. Contra o quê, ou a favor do quê, a Europa não sabe, nem se importa. Mas há também outra ilusão, igualmente doce, mas não menos ilusória, que vê nos estudantes e nas pessoas que os seguem o povo, ou seja, interpreta todo o protesto como um conflito entre o bom povo e o mau Estado. Assim, de um lado está o povo honesto, incorrupto, desejoso de verdade e justiça, que, liderado por estudantes, saiu às ruas para consertar as instituições disfuncionais de seu Estado “falido”, ou, na linguagem de comando da dominação ocidental, honest & brave people vs. failed state.
Do outro lado está, naturalmente, a elite política corrupta que usurpou e arruinou o Estado e é alienada do povo. Nesse sentido, o objetivo final dos protestos é claro e inequívoco: limpar o Estado dos elementos comprometidos e, assim, realizar uma espécie de reforma geral, após a qual ele funcionará como novo. A Sérvia finalmente se tornará um Estado normal e organizado, onde as instituições cumprirão seu papel, as leis serão respeitadas, e a mídia livre e independente, aliada a uma sociedade civil sempre vigilante, corrigirá quaisquer possíveis desvios.
Assim, o capitalismo finalmente terá seu quadro jurídico-político ideal, dentro do qual promoverá um crescimento contínuo, sem crises ou conflitos, elevando, como uma maré, o padrão de vida e o bem-estar geral de todos os membros da sociedade sérvia. O longo pesadelo sérvio do ‘Estado inacabado’ finalmente chegará ao fim. O povo sérvio acordará na realidade de seu Estado renovado, que, como um relógio suíço, marcará o tempo da felicidade e do bem-estar, se não pela eternidade, pelo menos até que a morte os separe, o que, é claro, nunca acontecerá.
3.
E quanto aos partidos políticos, ou seja, aos políticos da oposição, não há lugar para eles nesta história sobre o futuro feliz da Sérvia? A verdade é que eles não estão entre os principais atores dos protestos estudantis sérvios, o que, no entanto, não significa que estejam ausentes. Como corvos famintos, eles se empoleiraram em pontos de observação nas proximidades e esperam que o regime, sob pressão das massas, se quebre, caia de costas e revele suas fraquezas, para que possam se infiltrar em suas entranhas e começar o banquete. Se não, tudo bem.
Eles não arriscaram nada, então não perderão nada. E esperar, isso eles sabem fazer melhor do que ninguém, podem esperar para sempre, se necessário. Na verdade, toda a esfera política, ou seja, o sistema partidário e parlamentar, supostamente a espinha dorsal da sociedade democrática moderna, está quase completamente ausente do próprio evento. Talvez porque tenha se tornado irrelevante. Para que não haja confusão, tudo nos diz que os partidos políticos e o próprio sistema parlamentar se tornaram supérfluos na vida política da sociedade (sérvia). Além disso, não sentimos falta deles. Pelo contrário, a verdadeira experiência de liberdade, esperança e dignidade humana só surgiu quando os empurramos para o lado.
Isso nos levou à questão daquela verdade amarga escondida por trás das ilusões doces. Nada a revela melhor do que o paradoxo fundamental dos protestos estudantis sérvios – a evidente disparidade entre a enorme energia gerada pelo protesto, a mobilização massiva das mais amplas camadas da sociedade, sua criatividade coletiva espontânea, a auto-organização e autodisciplina socialmente formativas, a superior articulação midiática, sua persistência e resistência, tudo isso sem precedentes, não apenas na história moderna sérvia, mas também na europeia – e, por outro lado, o extremo minimalismo de suas demandas políticas. Afinal, tudo o que eles pedem é que a lei existente seja respeitada e que isso seja feito publicamente. Isso e nada mais. Mas, vejam só, até isso é demais. Eles são irreais porque pedem o possível.
Os estudantes, e depois todos que os seguiram, fizeram o que não deveriam – levaram a democracia liberal ao pé da letra, algo que ela não perdoará. O cinismo sempre foi e continua sendo seu modus operandi intrínseco, a premissa implícita de qualquer fé em seus ideais: no povo como soberano em seu Estado nacional democrático e na ordem internacional baseada em regras e leis; na figura do indivíduo livre como centro de todo o universo, que, em igualdade com os outros, por meio de seus representantes democraticamente eleitos, organiza a vida da comunidade para o benefício de todos; na instituição da mídia, independente e objetiva, que, na livre troca de diferentes ideias, produz racionalidade e justiça com facilidade; no Estado de direito, na sociedade civil forte e ativa e, finalmente, na propriedade privada inviolável e no livre mercado baseado nela, cuja mão invisível, mais cedo ou mais tarde, alimentará todas as bocas e garantirá a todos um teto decente sobre suas cabeças…
Mas, será que esquecemos que, antes que esse teto desabasse sobre sua cabeça, a Sérvia acreditou cegamente duas vezes nesse kitsch ideológico? Primeiro, nos anos 1990, junto com as massas da Europa Oriental, na virada histórica épica conhecida como a queda do comunismo. Seguiu-se a realidade do ódio nacionalista, da pilhagem da privatização, das guerras, da limpeza étnica, dos crimes, da mutilação territorial, da humilhação moral e do colapso econômico.
Cerca de dez anos depois, na chamada Revolução de 5 de Outubro, a Sérvia mergulhou de cabeça mais uma vez nas promessas liberal-democráticas, apenas para acabar imediatamente no espinheiro de uma distopia transitória infinita, na periferia suja do capitalismo europeu e global, em um provisório constitucional-territorial, com elites e instituições corruptas, um país e um povo em um estado de permanente incompletude e à espera por um milagre – a democracia como ela deveria ser, ou como já é, mas em outro lugar, na Europa, no Ocidente…
Será que hoje, depois de tudo isso, alguém realmente acredita que a Sérvia está tentando a mesma coisa de novo, que toda essa energia libertária, a vontade de mudança radical, a união e a solidariedade sem precedentes foram motivadas por um bando de repetentes, preguiçosos, incapazes e meio burros, que estão, pela terceira vez, saindo para uma recuperação em democracia?
4.
A gravura de Flammarion não colocou seu personagem principal no centro do mundo, na paisagem idílica da Terra como uma placa plana, claramente limitada pelo horizonte do conhecido e do possível. Pelo contrário, ele o trouxe até a borda desse mundo, onde a abóbada celeste o pressionou contra o chão, forçando-o a se curvar e ajoelhar, para que exatamente nesse lugar ele atravessasse com a cabeça para o outro lado, para o mundo além do horizonte. Ele o vê. Nós, que estamos no centro, não vemos.
Como na Sérvia hoje. Vemos a massa, mas não vemos o que ela vê, porque sua cabeça já está do outro lado do horizonte. Os contornos são indistintos e impossíveis de nomear. Mas está profundamente enganado quem espera que do outro lado nos aguarde uma receita bem conhecida: mudança de governo; novas eleições; uma assembleia composta por representantes autênticos do povo; um executivo não corrupto e eficiente que aplica as leis sem hesitação; uma nova sociedade civil autóctone, mídia verdadeiramente independente e fantasias semelhantes de um mundo plano, próprias da ordem liberal-democrática em decadência.
Além disso, o próprio ato de rebelião e protesto, em sua enorme energia e dimensões, é motivado, antes de tudo, pela experiência existencial do fim de uma era, de um mundo cujas verdades e ideais sublimes foram revelados como mentiras e ilusões vazias. Nada teria acontecido se, em Novi Sad, um telhado mal construído tivesse caído sobre alguns desafortunados. Mas não, foi toda a abóbada celeste da ideologia dominante que desabou sobre a sociedade, ou mais precisamente, sobre o que restou dela após décadas de desintegração neoliberal. E o que se levantou em rebelião hoje são os restos dos restos dessa sociedade, expulsa das instituições do Estado, falida por meio de parágrafos legais, enojada pela ideologia, ridicularizada e cuspida na cultura de massa, silenciada no parlamento e vendida, a preço de banana, no mercado de trabalho. Por isso, o que vemos nas ruas das cidades sérvias não é uma massa, mas uma sociedade, só que a mídia, como é, não tem palavras nem imagens para nos dizer e mostrar isso.
Porque essa sociedade, que ficou sem um teto sobre suas cabeças, é o único teto que pode protegê-los da abóbada celeste que ameaça esmagá-los. O mundo, como ele é hoje, não é mais um lugar para se viver, mas uma ameaça à própria existência da vida.
É por isso que foram justamente os estudantes que lideraram a revolta. Não porque, como uma vanguarda, conheçam o caminho para um futuro melhor, mas porque não têm futuro. A nação à qual ainda pertencem de forma ingênua e inocente será, até o final do século, apenas uma multidão de idosos impotentes, mais numerosos do que as crianças que poderiam sustentá-los; a língua que falam e na qual aprendem já está digitalmente morta; a tecnologia que ainda os fascina está forjando rapidamente grilhões de escravidão e tecendo laços ao redor de seus pescoços; se não forem queimados por ogivas nucleares, serão queimados pelo sol infernal. Eles não têm escolha. Ou mudarão radicalmente o mundo em que os largamos, ou não existirão mais.
*Boris Buden, filósofo, crítico cultural e tradutor, é doutor em teoria cultural pela Universidade Humboldt de Berlim. Autor, entre outros livros, de Transition to nowhere: art in history after 1989 (Archive Books).
Tradução: Nikola Matevski.
Publicado originalmente no portal Mašina.
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