Por GERALDO OLIVEIRA*
É mais que urgente respeitar as múltiplas crenças, sobretudo as de origem africana, e não compactuar e disseminar informações falsas
É inadmissível refletir sobre a formação social, cultural e política do Brasil sem levar em conta as inúmeras contribuições dos negros que aqui chegaram e foram submetidos à escravidão, no intento de produzir riqueza para a coroa portuguesa. Apesar do trabalho compulsório, que perdurou por mais de trezentos anos – cujo início se deu por volta do século XVI, em que foram trazidos mais de cinco milhões de negros para o trabalho nas atividades agrícolas, de mineração e domésticas –, ainda assim, sua herança cultural é indelével e variada, desde as artes, danças, crenças, reverência a natureza, modos de comportar e demais valores trazidos da mãe África.
No entanto, ainda que o negro se tornou objeto de produção de riqueza e óleo para mover a máquina capitalista, seus valores culturais e seus traços físicos e biológicos foram negados e rejeitados pela elite branca, que os considerou desprovido de valores e imprestável para o progresso civilizatório das terras dos trópicos. Conforme a pretensa antropologia da população negra elaborada no final do século XIX por Raimundo Nina Rodrigues, o negro constituía um atraso para o progresso civilizatório, e a sua miscigenação produziria a criação de raças inferiores, degeneradas, propensas ao crime e com desvios psíquicos. (RODRIGUES apud MUNANGA, 2009),
A imputação da cultura como elemento arcaico e primitivo, resvalou -se nas suas crenças religiosas, produzindo com isso a sua rejeição ou desconsideração, como produtora de sentido. Ora, conforme adverte o antropólogo americano Geertz(1989) no início do século XX, as crenças não são elementos externos, aleatórios ou ritualísticos, ao contrário, são fundamentos que propiciam ao sujeito que crer, razão e parâmetros para a vida.
Além da fictícia antropologia negra, outro fator que resultou na negação e intolerância a crença, foi a catequese de cunho cristão imposta pelos jesuítas, que numa perspectiva racional e distante da percepção de mundo dos negros escravizados, os obrigavam a aderir a fé cristã. A catequese consistia em questões pré-elaboradas que não tocavam no âmago da percepção negra, uma vez que sua cosmovisão e formas de relacionar com o mundo, era marcado muito mais pelo sentimento de pertença e harmonia com a natureza, do que em atitudes ou compreensões racionais própria do colonizador europeu, que necessitava fundamentar a suas crenças em ideias e postulados lógicos e coerentes.
Para sobreviver perante a imposição da crença cristã na sua versão católica, os negros não tiveram outra saída senão o sincretismo, que consistia entre outras coisas, na adoção de orações, e mudança dos nomes de suas entidades por santos católicos, como Ogum denominado por São Jorge, Oxóssi São Sebastiao ou Santo Antônio, Iansã Santa Barbara etc.
Ademais, outras forças que não hesitaram em conter ou proibir as manifestações públicas e culturais negras, foi o braço pesado do Estado, que no uso de suas forças policiais e sustentado pelo código penal de 1890, passaram a perseguire punir sobretudo as crenças, vistas como curandeirismo ou espiritismo, conforme descrevia os artigos 158 e 157 vigente até 1942, segundo destaca a pesquisadora Giumbelli, (2003).
Com referência às igrejas evangélicas, tanto as de tradição histórica como as que vieram no início do século XX, pôde se notar que pouco fizeram ou então, permaneceram neutras com relação à escravidão e à discriminação negra no Brasil. A cumplicidade com a discriminação e a negação dos elementos culturais negros em algumas denominações religiosas advém de múltiplos fatores, que vão desde a demonização da crença africana, a educação de cunho racista e a pregação do mito da democracia religiosa. Esses fatores ainda se fazem presentes em certos grupos que se recusam a discutir temas tão relevantes aos negros, como o racismo e as políticas de ações afirmativas e de promoção social (ALMEIDA; SANTOS, 2017).
Apesar das questões citadas acima, há de se notar que, atualmente, no mundo evangélico certas lideranças buscam a promoção de um maior diálogo e respeito às diversas crenças, principalmente as africanas. Mas não podemos cometer o erro de não citar que infelizmente, alguns programas de televisão aberta apresentam cenas de expulsão de demônios, supostas curas de enfermidades, problemas de separações de casais e crises financeiras interpretadas pelos líderes religiosos como provenientes das crenças africanas. Sabemos que tais atitudes constroem não somente uma espécie de distinção ou separação, “certos ou errados”, como também eleva a hostilidade entre as crenças, não contribuindo em nada para a convivência na diferença.
Em contrapartida, a Igreja Católica no Concílio Vaticano II, datado do final do século XX, adotou uma postura de abertura e diálogo com as religiões, inclusive com os cultos de origem africana, visando explicar que todos os homens têm a mesma origem e que as crenças, nos seus diferentes matizes, buscam responder à questão fundamental que inquieta o homem, como sua origem e fim de sua existência. (IGREJA CATOLICA,1965).
Com relação ao Estado Brasileiro, ainda que tenha combatido as manifestações culturais africanas, sobretudo as suas crenças, sustentado pelo Código Penal de 1890, conforme ressalta Giumbelli (2003), atualmente busca acolher e respeitar todas as religiões. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, parágrafo VI, consagra “a liberdade de crença e consciência, como também a liberdade de cultos religiosos” (BRASIL, 1988). Do mesmo modo, A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 estabelece no artigo 26 a obrigatoriedade do estudo da “cultura afro-brasileira”, que abrange as criações e recriações culturais, inclusive a religião. (BRASIL, [2019b]).
Conforme exposto, entendemos que a paz entre as pessoas, não se constroem unicamente pensando na deposição ou na não produção e proliferação de armas, mas na mudança de nossas concepções, preconceito do outro, e ainda, na eliminação de estereótipos que tanto mal faz a nós mesmo, como na construção de uma sociedade de paz e harmonia.
Se nosso objetivo de fato é a paz social, é mais que urgente respeitar as múltiplas crenças, sobretudo as de origem africana, e não compactuar e disseminar informações falsas. Entendemos que a rejeição e a discriminação das crenças africanas têm origem histórica, na classificação da cor, na condição social, e na errônea leitura e interpretação bíblica.
Ademais, lutar pelo outro e pelas suas crenças invisibilizadas, significa dar vez e voz, para que expressem suas identidades e pluralidade de seus costumes, modos de vida, ritos e crenças, negadas e seduzidas.
*Geraldo Oliveira é mestre em ciências sociais pela PUC-Minas.
Referências
ALMEIDA, Jurandir de Araújo; SANTOS, Deyse Luciano de Jesus. Religião e Educação: o posicionamento das igrejas cristãs protestantes em relação às questões dos negros no Brasil. Revista Internacional interdisciplinar Interthesis, Florianópolis, v. 14, n. 3, set./dez. 2017.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, […]. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, [2019b]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos, 1989.
GIUMBELLI, Emerson. O “baixo espiritismo” e a história dos cultos mediúnicos. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 9, n. 9, jul. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832003000100011.
IGREJA CATÓLICA. (PAPA PAULO VI). Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não-cristãs. Roma: Vatican, 8 out. 1965. Disponível em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html.
MUNANGA, Kabengele. Negros e mestiços na obra de Nina Rodrigues. In: ALMEIDA, Adroaldo José Silva; SANTOS, Lyndon de Araújo; FERRETTI, Sergio (org.). Religião, raça e identidade: colóquio do centenário da morte de Nina Rodrigues. São Paulo: Paulinas, 2009. (Coleções estudos da ABHR ; 6)