Por SERGIO SCHARGEL*
Definições simples e simplistas abundam nas redes sociais, mas só nelas o fascismo pode ser reduzido a algo tão patético como apenas um “Estado forte”
“tudo o que escrevem / não é nada comparado com a realidade / a realidade é tão perversa / que não pode ser descrita / nenhum escritor descreveu ainda a realidade / como ela realmente é / e isso que é terrível” (Thomas Bernhard, Praça dos heróis).
Como qualquer pesquisador de teoria política sabe, é difícil definir o que é fascismo. Definições simples e simplistas abundam nas redes sociais, mas só nelas o fascismo pode ser reduzido a algo tão patético como apenas um “Estado forte”. Recentemente, ao divulgar meu novo livro, Bolsonarismo, integralismo e fascismo, recebi como resposta uma tentativa de meme com um checklist de opções para saber o que é fascismo, tudo reduzido a: “O Estado deve comandar a economia”, “O Estado deve controlar a imprensa”, “O Estado deve decidir as relações trabalhistas”, “O Estado deve priorizar as pessoas por etnia”, entre outros. Dispostos em três colunas, aparecem: “Fascista”, “Brasil Direito” e “Universitária que te chama de fascista”, o primeiro e último, naturalmente, preenchem todo o questionário.
Um interessado pode, então, tentar olhar para o próprio Benito Mussolini. Afinal, como o pai do Fascismo o definia? Mas tal tarefa também se revelará frustrante. Estamos falando de qual Benito Mussolini? O de 1919, ainda com resquícios de progressismo? O de 1922, forçado a uma coligação com os conservadores e liberais? O de 1932, que parecia o todo-poderoso Duce? Ou o de 1944, fantoche de Hitler? São muitos Mussolinis dentro de um só. E são muitos fascismos dentro de um fascismo.
Como o fascismo se autodefinia? Pergunta mais complexa do que parece, pois sua resposta é mutável. Assim como as ações, os discursos nem sempre são coerentes, podendo inclusive se contradizer. O tempo, inevitavelmente, transforma qualquer narrativa. No caso do fascismo, essa transformação é evidente à medida que o movimento atravessa diferentes estágios e ciclos.
O fascismo, ao longo de sua história, se revelou um movimento repleto de contradições, não apenas entre seu discurso e prática, mas também dentro de suas próprias declarações. A “doutrina do fascismo”, por exemplo, promovia um antiliberalismo fervoroso, mas isso não impediu Benito Mussolini de adotar medidas liberais nos primeiros anos de seu governo. Em suma, compreender o Fascismo exige reconhecer essas contradições internas e a complexa relação entre teoria e prática.
Benito Mussolini sequer sabia muito bem sobre o que seu movimento se tratava quando começou a tomar forma. Era mais uma junção de diversas correntes anticomunistas do que um grupo ideológico coeso – algo que aconteceria somente mais tarde. Prova disso, sua doutrina só foi publicada em 1932, quase 15 anos depois do início do movimento, quando o fascismo já estava estável no poder há anos. A decisão de Benito Mussolini de formalizar a doutrina fascista visava legitimar o regime tanto nacional quanto internacionalmente, afastando as críticas de que o fascismo não tinha uma base ideológica sólida e era apenas um movimento de massas sem direção.
O fascismo foi legião. Benito Mussolini começa sua carreira no Partido Socialista, pertinente lembrar, mas não tarda a ser expulso por sua posição bélica. Inicialmente contrário à participação italiana na Primeira Guerra Mundial, rapidamente mudou de posição, passando a defender a entrada do país no conflito. Essa virada abrupta pode ser atribuída, em parte, ao financiamento que recebeu da embaixada francesa. Dois anos depois do fim da Primeira Guerra, fundou o Fasci di Combattimento, fecundando o embrião que se tornaria o Partido Nacional Fascista em mais alguns anos.
A Guerra, aliás, desempenhou um papel crucial na ascensão de Benito Mussolini. A Itália enfrentou enormes desafios para reverter sua economia do esforço de guerra para a produção e consumo civis, resultando em uma crise que devastou as camadas médias da sociedade – grupo que se tornaria a principal base de apoio do fascismo. Nos anos seguintes, a recessão econômica agravou ainda mais a situação, enfraquecendo o establishment liberal-conservador, que não hesitou em explorar o surgimento do movimento fascista como uma oportunidade para capitalizar sobre um apoio de massa sem precedentes.
À medida que a economia italiana começou a se recuperar, Benito Mussolini consolidou seu poder. Essa estabilização foi acompanhada por uma guinada gradual em direção a políticas autoritárias, à medida que ele consolidava seu controle sobre o Estado italiano. A conjuntura econômica e política pós-guerra não apenas pavimentou o caminho para a ascensão de Benito Mussolini, mas também proporcionou o ambiente propício para a transição do fascismo de um movimento para um regime autoritário.
Assim, as pessoas, mesmo pesquisadores que estudam a extrema direita, esquecem um ponto fundamental: Hitler e Mussolini chegaram ao poder por meio da democracia. Só depois de alguns anos instauraram, de fato, uma ditadura. Nada há de novo na utilização da democracia como método para destruir a própria democracia.
Os dois líderes nazifascistas, mas principalmente Mussolini, afirmavam que seus autoritarismos eram um mecanismo de defesa da “verdadeira democracia”. Como diz Benito Mussolini, a democracia é um governo sem rei, mas com vários reis. O fascismo instrumentaliza a democracia como um meio de, sorrateiramente, miná-la por dentro, assemelhando-se a um parasita que retira as penas de uma galinha uma a uma, conforme ilustrou Mussolini. No final, ele cospe uma versão deturpada, muitas vezes com uma fachada que pode até se assemelhar a um sistema democrático, como aconteceu na Alemanha, que preservou a Constituição de Weimar.
A verdade é que o fascismo não foi pensado, mas surgiu como sinal de seu tempo. Embora Mussolini possa ter formalizado o Fascismo, ele não inventou o fascismo. Robert Paxton ressalta esse ponto: “Devemos ter uma palavra e, na falta de outra melhor, devemos empregar a palavra que Mussolini pegou emprestado do vocabulário da esquerda italiana em 1919”. Movimentos fascistas estavam destinados a surgir como manifestações das democracias de massa. A criação de uma doutrina oficial, mais de uma década depois, apenas reforça essa ideia: o movimento veio primeiro, o conceito foi formulado depois. Ao estudar o fascismo, é crucial entender que a prática precedeu a teoria, e que a construção ideológica veio como uma tentativa de dar sentido a um movimento já consolidado.
Qualquer semelhança com o contemporâneo não é coincidência. Se o fascismo foi múltiplo em si, se é difícil até falarmos em um fascismo, como podemos afirmar que o fascismo morreu em 1945, com Hitler? Desde o início ele muta, se transforma, se altera, se adapta às necessidades e particularidades de seu tempo e nação. Nada mais confortável aos extremistas brasileiros do que classificá-los de “populistas”, negando, no processo, que o bacilo do fascismo está mais vivo do que nunca.
*Sergio Schargel é doutor em comunicação pela UERJ e doutorando em ciência política pela UFF. É autor, entre outros livros, de Bolsonarismo, integralismo e fascismo (Folhas de Relva). [https://amzn.to/42poObH]
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