Parem a carnificina!

image_pdf

Por TARSO GENRO*

Da caminhada da paz e da guerra ao terror no século XXI.

Os caminhos da paz e da guerra passam por disputas territoriais, por decisões políticas, por compreensão de táticas e estratégias militares, pela dogmática religiosa, pela luta interna e externa entre as classes, pelos acúmulos históricos e culturais das classes dirigentes, que exercem sobre os seus respectivos povos uma maior ou menor capacidade de manipulação das emoções. Mas a guerra moderna na atualidade tem uma característica específica, em relação às guerras anteriores: ela é um processo de acumulação importante nas classes empresariais dos países ricos, através da indústria armamentista, que reproduz novas e vastas fortunas no planeta através dos formidáveis mercados legais, ilegais ou subterrâneos, enlaçados no mundo.

No começo dos ataques e revides militares entre o Hamas e Israel, neste novo ciclo que iniciou pelo atentado terrorista do grupo Hamas, as informações sobre as mortes de centenas de pessoas circularam rapidamente, causando estupor e angústia. A seguir, a resposta de Israel transformou todo o povo palestino de Gaza no “inimigo objetivo”, anexando-o aos Hamas, como se a população do território tivesse que “pagar” em décuplo, pelas ações daquela organização. Os ataques indiscriminados das forças militares de Israel contra a população civil são, também, ações terroristas e – quando são feitas pelo Estado que declara uma guerra – também são crimes de guerra.

 Em 22 de julho de 1946 um atentado terrorista contra o Hotel King David em Jerusalém resultou na morte de 91 pessoas, dentre eles 28 britânicos, 41 árabes,17 judeus e 5 pessoas de outras origens nacionais. O atentado foi organizado por Menachem Begin, líder judeu de extrema direita que se tornou mais tarde Primero Ministro de Israel, depois de ser chefe de uma organização terrorista denominada Yrgun. O hotel, situado em Jerusalém na cidade antiga, abrigava a administração da Palestina, atribuída pela Sociedade das Nações ao Reino Unido.

 Se a administração da Sociedade das Nações usasse os mesmos critérios de Benjamin Netanyahu para enfrentar o Hamas, respondendo ao grupo terrorista de Menachem Begin da mesma forma que o atual governo de Israel responde aos palestinos, parte da comunidade judaica instalada na Palestina, naquele ano de 1946, deveria ser assassinada para “pagar” pelo terrorismo do futuro primeiro ministro. Isso seria uma barbárie inadmissível, tanto naquela época, como é uma barbárie nos dias que correm. Hoje fica claro que Benjamin Netanyahu está mais na tradição facínora de Augusto Pinochet, Jair Bolsonaro e Javier Milei e muito distante do espírito humanista de Spinoza e Issac Rabin.

Se quisermos dar uma chance à paz não podemos demonizar em abstrato as comunidades israelita e palestina, o que significa também não aceitar a versão de que terrorismo é propriedade de uma só das comunidades em luta; nem devemos abrir espaço para o antissemitismo, embora sem esquecer que Benjamin Netanyahu, de fato, é um Begin pós-moderno. Penso que devemos separar – na dialética da política – o grupo que governa Israel da maioria da comunidade judaica e, de outro, devemos considerar que as monarquias feudais que sustentam aparatos terroristas como o Hamas nada têm a ver como humanismo moderno.

Também conhecemos tipos como Benjamin Netanyahu, do meio judaico, que lá na Sociedade Hebraica do Rio de Janeiro saudaram aos gritos, como “Mito”, um admirador confesso de Adolf Hitler. A chance à paz só pode ser construída por quem quer promovê-la a partir dos interesses dos que não têm poder de decidi-la. A nossa indignação deve ser voltada para sufocar a guerra, para a cessação dos bombardeios e para a retomada do direito universal humanitário. 

Dada a reiteração da guerra, a sua espetacularização e a sua presença constante na nossa sala, através de imagens ao vivo ou cuidadosamente selecionadas segundo os interesses de cada contendor, as violências vão perdendo – todavia – a sua força e indignação moral. Subjugados que estamos pela estética da barbárie muitos encontram na cultura “da gratificação instantânea descartável” um escape às urgências do dia e das insónias da noite, que debilitam a nossa consciência de humanidade e são capazes de eliminar, em cada um de nós, o “disco rígido” que guarda a nossa autenticidade e nos torna – cada um – únicos como seres humanos.

 O repetitivo se acostuma e – de repente – aquilo que vemos não é mais o real. É uma batalha verdadeira, mas aparente simulada nos jogos virtuais com que as nossas crianças lidam todos os dias. O fantástico é o real, mas o fantástico repetido à exaustão é uma fantasia de cores. Ele não reflete mais a morte, mas simula um jogo farsesco onde as pessoas só existem na frieza das telas: a fumaça não tem cheiro, os cadáveres não sofreram e as casas desabam sob um terremoto de poeira, que esconde da nossa dor a relevância de mais um dia de heroísmos fúnebres.

Ao transformar todo o povo palestino de Gaza num inimigo coletivo, o governo atual de Israel fundiu este povo com uma organização terrorista, num esforço político estratégico para legitimar a versão de que toda uma população nacional pode ser responsabilizada por um Estado, depois que ele é agredido por um grupo que realiza ações de terror. É sim, terrorismo, a ação militar contra nacionais inocentes e populações civis, vindas de um Estado ou de um Governo. Ou vindas de grupo de ação terrorista (ou não terrorista) – não importa sua classificação técnica – que vinda de onde vier, mata crianças e jovens desarmados, velhos, jovens mães e pais que simplesmente vivem numa “localidade inimiga”.

Eu pensei há algumas décadas que a vitória do Vietnã sobre o gigante Imperial, que a fuga dos americanos do Afeganistão e a sua entrega vergonhosa do país aos Talibãs, que as mentiras de Bush sobre as armas químicas no Iraque, iriam mudar alguma coisa na política americana de “policiar o mundo e vender armas”; de ensinar torturadores em várias partes do Planeta em nome da defesa da democracia – eu pensei que estas lições da História iriam moderar um pouco a sua história de enganação democrática. E me enganei. Por isso resisto às narrativas longas e encurto minhas utopias e por isso, então, digo: parem a carnificina! Não matem mais crianças! Pensem que cada ato de violência é um depósito, no banco do tempo, de novas violências e de novos horrores.

Na noite em que escrevo este texto Israel de Benjamin Netanyahu, ao que parece, vai para a “solução final” que nenhuma teoria vai impedir ou consertar. Vai derrotar Gaza. Só nos resta agora repetir que parem a carnificina! E pensemos – nesta noite grávida de sangue – numa caminhada em direção à paz, com uma passagem nada política de Bioy Casares, no seu Histórias de amor: “Caminhando, a gente conversa melhor. Principalmente conversando à noite”. Ou, ainda, como Thomas Mann, mais ou menos assim, na Montanha mágica: “que espécie de homem você é que perdeu o gosto por uma bela caminhada?”

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).https://amzn.to/3ReRb6I

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES