Por PAULO CAPEL NARVAI*
Em 37 anos de SUS, conselhos e conferências de saúde foram decisivos para moldar no Brasil um sistema universal de saúde sui generis
O Conselho Nacional de Saúde (CNS) realizou em dezembro de 2025 um seminário para celebrar os 35 anos da Lei nº 8.142, significativamente sancionada em 28/12/1990, e publicada no Diário Oficial da União no último dia útil de 1990. Essa norma é pedra angular da regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Assembleia Nacional Constituinte em 17 de maio de 1988. Sem ela, o SUS seria outro, bem diferente e pior.
Foram longos os 30 meses que separaram a criação do SUS, da sanção da segunda lei que o regulamentou. Essa segunda lei foi necessária, pois, como mencionei em entrevista à jornalista Conceição Lemes, do Viomundo, ao sancionar, em setembro de 1990, o PL que deu origem à Lei nº 8.080, que deveria ter sido ampla o suficiente para concluir, naquela etapa, a regulamentação dos dispositivos constitucionais sobre o SUS, o presidente da República amputou os artigos que se referiam à “participação da comunidade” (Conselhos e Conferências de Saúde) e ao financiamento do sistema universal de saúde criado pelos constituintes (transferências obrigatórias da União para estados e municípios). Collor pensou que podia eliminar esses artigos e os vetou. Mas teve de recuar, pois não podia vetar algo que a Constituição de 1988 mandava fazer.
O que se seguiu foi uma batalha decisiva, cujos detalhes foram lembrados por vários participantes do Seminário que celebrou os 35 anos da Lei 8.142/90 que, por sua especificidade, é conhecida como a lei da participação social no SUS, ou como costumam dizer conselheiros de saúde, a “lei do controle social do SUS”.
A batalha culminou com a derrota de Collor e dos que queriam reduzir o SUS à denominada “medicina previdenciária”, realizada pelo Inamps, o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social, e manter tudo centralizado em Brasília e sem qualquer tipo de “participação”, nem popular, nem “da comunidade”, conforme havia sido inscrito na Constituição de 1988.
A “participação da comunidade” é um dos princípios do SUS, inscrito na “Carta Cidadã”, como Ulysses Guimarães qualificou a lei maior do Brasil. Aqui mesmo no site ‘A Terra é Redonda’, escrevi em 2019, em SUS: terra arrasada que uma das principais inovações na administração pública brasileira, pioneira em escala mundial, é a participação social, que na Constituição de 1988 foi consagrada como “participação da comunidade”. A Lei nº 8.142, expressão dessa inovação, oficializa as conferências de saúde, realizadas periodicamente, e os conselhos de saúde, em níveis municipal, estadual e nacional, com atuação permanente, como os meios pelos quais essa participação deve ocorrer, institucionalmente. Cabe assinalar, porém, que além desse tipo de participação institucional, a criatividade e o vigor dos movimentos sociais fazem surgir, diariamente, muitas formas não institucionalizadas dessa participação, impulsionadas de muitas formas, por diferentes atores sociais, em todos os cantos do país.
Contudo, tanto no plano informal, quanto no institucional, há importantes limites, inclusive legais, à participação social, derivados das características da administração pública brasileira. Assim, o modo de fazer a gestão do direito à saúde, em um país continental e federativo como o Brasil, exigiu a criação de instâncias com essa atribuição administrativa. Uma dessas instâncias de gestão no contexto republicano brasileiro, corresponde às comissões intergestores do SUS, que reúnem em nível federal representantes da União, estados e municípios, na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e, no âmbito estadual, as correspondentes Comissão Intergestores Bipartite (CIB), em que autoridades estaduais e municipais responsáveis pelo SUS em seus territórios decidem, sempre por consenso, os rumos que devem ser dados às políticas públicas (todas as políticas públicas, não apenas as políticas “de saúde”) que impactam, direta ou indiretamente, a saúde da população.
Tanto a CIT quanto as CIB correspondem a um modelo de governança muito bem-sucedido que vem servindo de referência para outros sistemas federativos como os de Assistência Social, o SUAS (Lei nº 12.435, de 6/7/2011), o de Segurança Pública, o SUSP (Lei nº 13.675, de 11/6/2018) e o Sistema Nacional de Educação (SNE) criado pela Lei Complementar nº 220, de 31/10/2025. Nos processos de delineamento do SUAS, do SUSP e do SNE, houve amplo reconhecimento da sua inspiração no SUS.
A proposição de uma comissão institucional que reunisse representantes de entes federativos dos âmbitos federal, estadual e municipal, para decidirem os rumos do SUS, foi feita pelo Conselho Nacional de Saúde, como lembrou Eliane Cruz no Seminário dos 35 anos da “lei de participação social no SUS”.
(Abro parênteses para assinalar que, embora neste ano, tenha ganhado publicidade o impasse entre o governo federal e alguns governos estaduais em torno da segurança pública, com as discussões no Congresso Nacional sobre as facções e o crime organizado, debatendo-se dentre outros aspectos “a criação de um sistema inspirado no SUS”, o SUSP já existe, pois foi criado em 2018, pela Lei nº 13.675. Porém, como o próprio desconhecimento da lei indica, essa norma “não colou” e vem sendo, deliberadamente ou não, ignorada por governadores e seus secretários de segurança pública. O mais grave, porém, é que deputados e senadores simplesmente desconheçam, ou finjam desconhecer, uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República)
O programa do Seminário, que teve a participação do plenário do CNS, abriu espaços ao atual, Alexandre Padilha, e aos ex-ministros da Saúde, José Agenor Álvares, Arthur Chioro e Nísia Trindade, à atual presidente do CNS, Fernanda Magano, e todas as lideranças sociais que presidiram o órgão nas últimas décadas e a convidados especiais, como Lucia Souto e Eliane Cruz. Interessados em mais detalhes sobre essas participações no evento realizado no dia 12/12/2025, podem recuperar, nos respectivos links, os registros das partes da manhã (Mesa 1 – O legado da 8ª Conferência Nacional de Saúde e a construção da Lei nº 8.142/1990) e da tarde (Mesa 2 – O papel do controle social e o CNS na consolidação da democracia na saúde).
Em várias intervenções foi destacado o fato de que o SUS é um sistema universal de saúde que não restringe sua atuação à produção de cuidados assistenciais individuais, mas que, operando a partir de uma compreensão ampliada de saúde, desenvolve ações que colocam entre seus objetivos tudo o que se relaciona direta ou indiretamente com a saúde das pessoas, incluindo as condições ambientais (as moradias, os processos de trabalho e o meio-ambiente) e as condições gerais de vida, compreendidos como elementos da determinação social do processo saúde-doença-cuidado. Por essa razão, é tão importante para o SUS que o planejamento de ações e programas de saúde resultem de processos participativos de gestão, que tendo a participação indispensável de técnicos, não sejam tecnocráticos.
No entanto, a gestão participativa em sistemas de saúde, mesmo quando universais, não é a regra em outros países. Por esse motivo, o SUS é um sistema sui generis, pela originalidade de contemplar, em seus princípios, a participação social.
Mas essa participação não surgiu espontaneamente entre os constituintes de 1988. Ela resultou das lutas que, ainda no período pré-SUS, durante a ditadura, o movimento da Reforma Sanitária foi recolhendo de várias experiências desenvolvidas em muitos municípios em todo o Brasil, que foram indicando a importância da participação popular para o êxito dos programas de saúde.
Segundo o CNS, há atualmente no Brasil mais de 6 mil conselhos locais de saúde. Encaminhando uma decisão da 17ª Conferência Nacional de Saúde, o CNS vem se empenhando para que onde quer que haja alguma unidade de saúde do SUS, seja constituído um conselho de saúde, com a missão de acompanhar o planejamento e execução das atividades do SUS. É essa ação, no nível local, que precisa ser fortalecida, como forma de aprofundar a “participação da comunidade”.

De modo geral, são corretas as críticas feitas aos conselhos “institucionalizados”, que parecem impotentes frente às hostilidades de muitas autoridades públicas à gestão participativa. Há também muitas denúncias de nepotismo e de subserviência de conselheiros a secretários de saúde e prefeitos. Porém, os espaços dos conselhos podem e devem ser usados, ainda que seja por um único conselheiro(a), como caixa de ressonância para os problemas enfrentados pelo SUS em todos os níveis da gestão pública e, desse modo, pôr em marcha outros atores envolvidos com o controle público de recursos alocados à saúde da população, como tribunais de contas, ministério público, poderes legislativo e judiciário.
Como não poderia deixar de ser, a 18ª Conferência Nacional de Saúde, prevista para junho de 2027, foi o foco de grande parte das intervenções, com menções aos 40 anos da realização da histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, em março de 1986, e a necessidade de as conferências de saúde seguirem inovando e reinventando-se a cada edição, mas sempre tendo como referência que saúde e democracia são inseparáveis. Para a 18ª CNS um desafio que se coloca desde logo à sua própria estrutura e organização corresponde ao papel das tecnologias digitais de comunicação e informação, incluindo as redes sociais, e o papel que vêm assumindo nas lutas contemporâneas pelo direito à saúde, a defesa do SUS, o Estado Democrático de Direito e a soberania nacional.
Vários participantes fizeram referência ao Seminário como um momento histórico. Para Heliana Hemetério dos Santos, conselheira nacional de saúde, e ela própria historiadora, ao registrar a evolução da participação social em saúde, o Seminário do CNS cumpriu um papel de importância histórica.
Lembrando que “a história se faz todos os dias”, Heliana disse que “daqui a uma semana, alguém vai escrever, alguém estará contando sobre esse momento aqui, o que foi dito aqui, por várias pessoas, os diferentes olhares. Algo totalmente enriquecedor. Mas a luta continua, pois como foi dito, para nós nunca foi fácil” – fazendo referência à fala do ex-presidente do CNS, Fernando Pigasso, que havia citado o ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, para quem “as nossas lutas nunca foram fáceis. Mas, se fossem fáceis, não seriam lutas para nós”.
Do ponto de vista histórico, o Seminário de celebração dos 35 anos da Lei nº 8.142 é significativo também por colocar em relevo a incompletude da outra lei regulamentadora do SUS, a 8.080, de 19 de setembro de 1990, identificada equivocadamente por muita gente, como a do “aniversário do SUS”. É que, sem a Lei nº 8.142, o SUS teria sido uma espécie de viúva Porcina, a inesquecível personagem da telenovela “Roque Santeiro”, caracterizada por Dias Gomes como “a que foi, sem nunca ter sido”.
O SUS poderia ter sido delineado como um sistema sem participação social e centralizado no governo federal. Foi a Lei nº 8.142 que regulamentou as atividades dos conselhos de saúde e a realização obrigatória de conferências nacionais, estaduais e municipais de saúde. Todos os entes federativos ficaram obrigados a ter conselhos e realizar conferências. A lei corrigiu também a lacuna imposta por Collor na Lei nº 8.080, ao disciplinar as transferências de recursos financeiros do governo federal para Estados e Municípios. Sem isso, os municípios não poderiam “comandar o SUS” no seu âmbito de governo, como determina o artigo 198, inciso I, que estabelece a “descentralização, com direção única em cada esfera de governo”. Conforme ressaltei na referida entrevista ao Viomundo, “os municípios seguiriam sendo tratados pelo governo federal como uma empresa qualquer que presta serviços ao governo federal”. É por ter impedido que esse rumo fosse imposto ao SUS, que muita gente considera, com toda a razão, que a Lei nº 8.142 é “o coração do SUS”.
O certo é que ambas as leis de 1990 são normas muito importantes para o SUS, e devem mesmo ser celebradas sempre, dado o significado do SUS para o Brasil e a democracia brasileira. Porém, como venho afirmando há muitos anos, sem a decisão que os constituintes tomaram no dia 17 de maio de 1988, na 267ª Sessão da Assembleia Nacional Constituinte, de criar o SUS, não haveria nenhuma dessas duas leis.
Por essa razão, vale considerar que, para fins simbólicos, dado que a criação do SUS é um processo histórico, ainda inacabado, o dia 17 de maio é o dia do aniversário do SUS, que fez 37 anos em 2025. Mas, como disse a conselheira Heliana Hemetério dos Santos, “a história se faz todos os dias”. Aquele dia em 1988 foi, simbolicamente, um dia histórico. Porém, o SUS precisa que, com lutas coletivas, sua história seja feita todos os dias.
*Paulo Capel Narvaié professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]
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