Pastiche, colagem, remix

John Wells, Quadro, 1956
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por DANIEL BRAZIL*

Considerações sobre o livro de Valentim Biazotti

A definição mais aceita do termo “pastiche” é a que considera uma obra literária ou artística uma imitação descarada do estilo de outros escritores, pintores, músicos, arquitetos, coreógrafos, etc., sem intenção de paródia.

O parágrafo acima é um pastiche do Google. Da Wikipedia, principalmente, com exceção da palavra “descarada”, que seus redatores nunca (acho) utilizariam. Há muito mais nuances a serem detalhadas, caso alguém se aventure a investigar os motivos estéticos, éticos ou existenciais que motivam um artista a copiar o estilo de outrem, ou seja, executar um pastiche.

No vórtice de informação digital em que vivemos, o acréscimo constante de informações em escala planetária faz com que todos, conscientemente ou não, pratiquemos uma certa forma de colagem das informações com que somos bombardeados. E fazemos disso um remix, antes de repassar um zap para aquele amigo.

Colagem é um termo que se refere às artes plásticas. Remix, à música. Pastiche resguarda ainda a matriz literária, até certo ponto. É até certo ponto surpreendente, neste século de derretimento de fronteiras, que os três substantivos não tenham se mesclado.

Todos se referem à um método que consiste em retrabalhar esteticamente obras (não formas!) existentes, ou seja, copiar modelos e inserir novas informações que acabam transformando o objeto em uma nova obra.

Esse raciocínio simplista pode ser sabotado de forma consciente, se ao autor da façanha não faltar engenho e arte. É o caso do livro Síngulas Brasilis (Fantásticas), de Valentim Biazotti. Finalista do prestigioso prêmio Jabuti em 2023, o autor ainda adiciona um ambicioso “volume 1” na capa.

O título Síngulas nos remete ao latim, singularidades, aquilo que é singular, embora esta palavra não exista originalmente na língua de Horácio. Nas narrativas de Valentim Biazotti transformam-se em motes, e cada história tem uma síngula como epígrafe.

O livro reúne 15 contos longos e bem elaborados, com linguagens diversas, que oscilam entre o pastiche e a emulação, muitas vezes narrados em primeira pessoa. O autor reivindica “os motivos esquizofrênicos de Deleuze e Guattari” na orelha do livro. Ojeriza para os conservadores, curiosidade para os novidadeiros. As últimas 65 páginas são de poesias, que em princípio não dialogam com os contos, embora mantenham o embate com outros autores, principalmente Drummond. Algo insólito em termos editoriais. Comento aqui apenas a primeira parte da obra.

Valentim Biazotti é um Ripley literário, um talentoso farsante capaz de assumir várias personas. Emula Guimarães Rosa de forma admirável (o conto Fantasia da Criança Sertaneja é exemplar), escreve em português arcaico, espanhol, inglês e italiano – e mistura isso em vários contos –  soa ora como Borges, ora como Cortázar, às vezes como autores do Barroco (e deve haver outras referências que minha limitada cultura não percebe), passeia por vários cenários rurais brasileiros e não tem medo de investir no fantástico, em seus melhores momentos.

Irritante, muitas vezes, pelo exibicionismo pedante. Cativante, em outras passagens, pela capacidade de criar amálgamas surpreendentes. Para os leitores clássicos, um desperdício. Para os visionários, uma aposta.

Síngulas Brasilis se insere, enfim, na arriscada categoria de livros de ficção que buscam renovar a paisagem literária brasileira. O autor é formado pela PUC e mestre pela USP, ou seja, cria uma obra fora dos moldes porém bem distante da literatura de botequim.  Talvez seja um sintoma de novos tempos. Ou um aplicado exercício de estilo das “vanguardas de ontem, de hoje e de amanhã”, como ele mesmo diz. Aguardemos o “volume 2”.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Valentim Biazotti. Síngulas Brasilis (Fantásticas). São Paulo, Editora Penalux, 2022, 242 págs. [https://amzn.to/3WaDaJt]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Alcançando ou ficando para trás?
Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO: O desenvolvimento desigual não é acidente, mas estrutura: enquanto o capitalismo promete convergência, sua lógica reproduz hierarquias. A América Latina, entre falsos milagres e armadilhas neoliberais, segue exportando valor e importando dependência
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Régis Bonvicino (1955-2025)
Por TALES AB’SÁBER: Homenagem ao poeta recém-falecido
Os véus de Maya
Por OTÁVIO A. FILHO: Entre Platão e as fake news, a verdade se esconde sob véus tecidos por séculos. Maya – palavra hindu que fala das ilusões – nos ensina: a ilusão é parte do jogo, e desconfiar é o primeiro passo para enxergar além das sombras que chamamos de realidade
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Síndrome da apatia
Por JOÃO LANARI BO: Comentário sobre o filme dirigido por Alexandros Avranas, em exibição nos cinemas.
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES