Tapetes e leitura histórica: Entre Ginzburg e outros diálogos

Tapete, Povos Ngadju ou Ot Danum (Indonésia), s/d
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Por NÚBIA AGUILAR*

Entender o método histórico com Ginzburg nos faz percorrer as interferências próprias adicionadas na leitura

A costura que compõe uma história, imageticamente, pode ser construída na metáfora recorrida por Carlo Ginzburg, como os fios de um tapete trançados, em que elementos juntos formam um enredo, a trama, objeto de desejo de quem escreve. Sempre penso no tapete quando leio Ginzburg, mas disponho da facilidade da dispersão e não tardo em acompanhar outra narrativa, na representação do tapete mágico, talvez o de Aladdin. Intempestivo, logo me vem a capa de Orientalism, de Edward Said. Sem me mover, unem-se histórias conectadas, tudo por conta dos tapetes, ou melhor dos fios que o compõem. Desabrocha outro campo, na dialogia ancorada na comparação.

Os tapetes metafóricos têm uma capacidade impressionante de enlaces – Ginzburg é realmente certeiro, seja pela micro-história ou pelo bom manejo com as palavras, quem diria que queijo e vermes combinam tão bem para a contar a história de um moleiro?! Confesso que também me intriga o grande massacre de gatos, na obra de Darnton. Mas, Jean-Léon Gérôme parte de outro lugar e literalmente pinta emblemas sociais. 1879 ano indicado para a imagem que acompanharia o referenciado livro de Said. Em “The Snake Charmer” predominam tons frios, azul marcante em azulejos, e conta com um primeiro plano, centralizado, vestido pela nudez humana que segura uma cobra, a cena sobre um tapete.  A obra de Gérôme desperta curiosidade e talvez seja uma ênfase em tinta ao que Said teorizou como Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente, a potência discursiva que mobiliza as representações, a mesma que faz imaginar os tapetes e não por acaso esbarra em Aladdin, uma imagem popular de desenho animado tão dispersa nos anos de 1990.

Em certos aspectos, poderíamos dissertar sobre o elo de Aladdin e Orientalism, mas o tapete nos leva a outro domínio. Nos cingem a obra de Gérôme a outra capa de livro, Resistência e Revolução na África, publicado em 2019, autoria de Felipe Paiva. O diálogo crítico com Said transcorre o trabalho doutoral de Paiva, que se volta para dois líderes africanos: Nasser e Nkrumah. Enquanto no livro de Said aparecia o quadro “The Snake Charmer”, o de Paiva recorre a outra imagem, pintura anterior a primeira, “Bashi-Bazouk”. É interessante ler os trabalhos de Paiva, seja por sua riqueza intelectual, ou para adentrar em referências literárias – o rigor ao pôr em prática teoria do romance de formação, invólucro de Thomas Mann, para o estudo de líderes políticos do Egito e Gana é sem dúvidas um escrito que embaralha e reorganiza as referências. 

A África também foi espaço imaginado, da qual Said falou em Cultura e Imperialismo, um livro publicado anos mais tarde, em 1993. Mais recentemente, “Bashi-Bazouk” voltou a ser capa em obra brasileira. Em 2022, em capa dura, veio a reedição de A manilha e o libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Alberto da Costa e Silva é uma das grandes referências para os estudos africanos no Brasil. Quando iniciei esse texto, eu tinha em mente dar início aqui, a partir de Um Rio Chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil na África.  Mas, é inacreditável como um tema se desenrola em tantos outros, ou melhor, fios diferentes têm a capacidade de tecer diferentes tramas. O Atlântico se torna um rio, que liga duas margens, no passado e na memória, no presente e possivelmente em tempos que ainda virão. A depender do enlace, as margens e problematizações sobre esse tema ainda nos renderão as mais distintas feituras.

As interfaces do Brasil na África, e de uma África também afetada por referências do Brasil, é de uma profundidade que daria a costura de muitas peças. Costa e Silva nos conduziu bem nessa caminhada. Seus livros retomaram dinâmicas que ecoam na constância: somos ainda atingidos pela necessidade de discutir, desconstruir e reconstruir as balizas que nos guiam em torno das histórias que prevalecem sobre o continente africano. Somos tocados pelas Imagens da África, das relações e movimentos, trocas que não se sustentam na potencialidade imaginativa e política das fronteiras criadas – geralmente, há séculos, as pessoas estão mais interessadas em viver do que contemplar regras dadas, post mortem, para as escritas de suas vidas.

As duas margens do Atlântico são contempladas na escrita e ressoam nos envoltos culturais, das faces aos gestos. Costa e Silva ressaltava o aspecto vivo de como os elementos africanos foram presentes na construção do Brasil, e daqui, partiam para lá, retomando e ampliando os Fluxo e Refluxos, dos quais também falava Verger. Somos o que somos em virtude, também, de onde viemos, e de forma alguma isso se resume em uma história só. Percebemos as tentativas anunciadas politicamente de apagamentos, que deixaram por décadas históricas sem serem contatadas, mas a presença constante sobrepuja o presente. São muitos fios reunidos, desejos políticos e a formação desequilibrada de narrativas oficiais. Reverte-se com o tempo, a passos largos, a reescrita. Para isso, atemo-nos ao passado e percebemos que todo lugar é parte do que se constrói sobre ele, o significado que lhe é atribuído. A África, daí, é recriada; há também outros espaços atingidos pelo Orientalism.

Ginzburg não só pelo tapete, vide Medo, reverência, terror, é fiel ao argumento de que sociedades e tempos se conectam mais do que se afastam.  Pathosformeln é a chave para o exercício metodológico para entender emoções alinhadas ao campo da visualidade, transbordada nos diálogos entre forma e conteúdo. Seria o Pathosformeln um conceito útil para explicar a conexão das imagens produzidas por Gérôme e as capas dos livros nas quais descansam? É possível que tais escolhas se movimentam pelas emoções causadas no contato com tais imagens, que trazem parte de algo persistente pelo registro em que os tempos mais ou menos curtos da história se entrelaçam com os tempos bastante longos.[i]

A metáfora de tecer, construir os enlaces, tão bem servidos para análises que recaem sobre as manifestações europeias teria sua origem em outro lugar. Seria de fato o tapete vindo do Orientalism, com seus fios e tessituras? Se sim, nos encaminhamos para outra conexão, talvez o lugar imaginado, uma outra referência, um reforço a ideia inicial argumenta pelo autor, se utiliza de elementos que reforçam os contatos, apercebidos na história a contrapelo, ou no paradigma indiciário.  

Entender o método histórico com Ginzburg nos faz percorrer as interferências próprias adicionadas na leitura, para compor uma conversa interna – quem lê faz isso, lê a partir do que somos e do que temos, às vezes um arsenal de memórias e referências, outras um espaço para ser habitado. Os fios de um tapete, tecem, juntam e adicionam elementos. O tapete, Alladin, Orientalism e diálogos com capas de livros, que guardam em seus interiores conexões nem sempre propositais – A África também construída, sentida e vivida em narrativas que foram temas, por vezes, desproposital de tantas conexões. Com eles em mãos, retomamos elementos, abordagens e cresce a possibilidade de compor tramas. Tudo volta no tapete, no método e em Ginzburg, certeiro.

*Núbia Aguilar é doutoranda em história na Universidade de São Paulo (USP).

Nota


[i] GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 11


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