Por BERNARDO JOÃO DO REGO MONTEIRO MOREIRA & NATHÁLIA DURSO MARTINS*
Abrir-se ao contágio de experiências corporais que embaçam as fronteiras Natureza-Cultura é um esforço teórico, político, artístico, antropológico e ético
Neste ensaio, serão discutidos os temas do perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro e da subjetividade antropofágica de Suely Rolnik no contexto de um pensamento ético centrado no corpo. Para explorar essa discussão, serão mobilizados textos dos dois autores, acompanhados de escritos sobre os povos ameríndios e outras análises filosóficas e antropológicas oportunas. Dessa forma, será possível refletir a potência de tais ferramentas teórico-conceituais para a tarefa antropológica, filosófica e política de uma ética do corpo em suas conexões com a cosmologia ameríndia.
Em seu artigo “Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena”, Eduardo Viveiros de Castro inicia sua exposição com uma crítica à distinção natureza-cultura, estruturante para boa parte da história da antropologia e enraizada no pensamento ocidental moderno. Tal distinção engendra uma série de problemas teóricos e práticos, tendo em vista que a díade natureza-cultura implica um sujeito de ação humano enquanto oposto à pura externalidade objetual da natureza como algo a ser controlada e explorada. Além de reprimir os agenciamentos que atravessam as formas molares dos sujeitos (humanos, não-humanos, animais, espíritos etc), o paradigma antropocêntrico moderno universaliza suas axiomáticas e ameaça o modo de vida daqueles que vivem à sua periferia — integrando-os ou expurgando-os violentamente, contagiando-os (Viveiros de Castro, 2004; Soares, Collado, 2020; Krenak, 2020; Castro, 2020).
Na cosmologia moderna, a natureza é tomada como um dado, uma unicidade universal objetiva; enquanto a cultura é vista como múltipla. Eduardo Viveiros de Castro busca teorizar uma inversão (que não se trata de uma simples troca de definições, como será visto adiante): na cosmologia ameríndia, haveria uma universalidade da cultura em contraste às experiências particulares da natureza; entretanto, a divisão não se mantém ontológica como na cosmologia moderna – trata-se de uma multiplicidade de pontos de vista, de perspectivas. Perspectiva que agencia um sujeito: um modo de subjetivação que produz um certo estado do corpo; tendo em vista que “o ponto de vista está no corpo”. Corpo que não se define por suas formas ou órgãos, mas por suas relações de velocidade e lentidão, por seu poder de afetar e ser afetado (Viveiros de Castro, 2004; Rolnik, 1998; Deleuze, Guattari, 2012; Deleuze, 2002).
“Em suma, não há pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os seres é que são os pontos de vista. Se não há entidade sem identidade, não há multiplicidade sem perspectivismo” (Viveiros de Castro, 2007).
O perspectivismo é um multinaturalismo. Não definida por aspectos fisiológicos, a especificidade do corpo é o que marca o ponto de vista, seu modo de subjetivação, seu maneirismo corporal. Sua fisionomia não importa: o corpo é definido por aquilo que ele é capaz. A pergunta de Espinosa é o que orienta Deleuze e Guattari, Viveiros de Castro e Rolnik: o que pode um corpo? O critério da potência é o critério ético por excelência, que não se orienta pela arborescência de uma moral transcendental, mas pelos rizomas que agenciam as multiplicidades do plano de natureza (que envolve tanto o que é tido como natural quanto o artificial – como diz Krenak, tudo é natureza).
Tal ética se expressa claramente no xamã: feiticeiro anômalo que habita as bordas do território, aquele que é capaz de comunicar diferentes pontos de vista, entre diferentes estratos, em uma multiplicidade de devires, aumentando sua potência pela abdução de diferentes agências e afetos; e no antropófago: aquele que aumenta sua potência selecionando os elementos de alteridade que intensificam os afetos de que seu corpo é capaz (Viveiros de Castro, 2004; Rolnik, 1998; Deleuze, Guattari, 2012; Deleuze, 2002; Krenak, 2020).
Por saltar sobre diferentes círculos, diferentes regimes significantes, o xamã possui um duplo aspecto: aquele que mantém contato com a escuridão e a luz, oscilando entre os caminhos do explorador-lobisomem (aquele que habita o território mas atravessa suas bordas, contagiado por uma animalidade selvagem) e os caminhos da autoridade tradicional do sacerdote, embaralhando os códigos da aldeia. Seus devires-animais adentram a aldeia por contágio, uma política da feitiçaria que se elabora por pactos, alianças demoníacas, equipamentos distintivos – enquanto seus agenciamentos são codificados como advindos de fora, perspectiva outra, forma de marcação.
Para o antropófago, são esses os elementos que o compõem, que aumentam sua potência em sua mestiçagem infinita, rejeitando a repressão das categorias da identidade. A pragmática de deglutição da alteridade articula uma resistência a hierarquia e centralidade da Cultura enquanto entidade monolítica oficial. Em sua cartografia de intensidades, os significantes identitários da cultura são desterritorializados e postos para funcionar em novos agenciamentos (Land, 2011; Viveiros de Castro, 2004; ibid, 2007; Deleuze, Guattari, 2011a; ibid, 2011b; ibid, 2012; Rolnik, 1998).
O fazer de novos “em casa” do antropófago e as alianças demoníacas do xamã traçam linhas de fuga por uma ética da experimentação, onde os novos estratos pelos quais o corpo se conecta são marcados por suas trajetórias, tornando bastardos os elementos que desmistifica. O antropófago integra e subverte a santa em sua experimentação mestiça, o xamã faz sua diplomacia das perspectivas de seres diversos, multiplicidades que excedem a unidade de um sujeito. Desse modo, a experimentação reterritorializa sem reintegrar a um Uno, uma grande identidade: resiste aos sistemas de referência, muda de natureza a cada contágio; sua subjetividade é assentada numa pragmática singular e impessoal, contra a figuração identitária.
É esse o funcionamento da síntese disjuntiva: uma pressuposição recíproca dos elementos agenciados que não implica uma unidade de sentido: o trajeto não é o mesmo nos dois sentidos. No estar-entre da diplomacia xamânica, o ponto de vista do xamã sobre o jaguar não é o mesmo que o ponto de vista do jaguar sobre o xamã; ao devir-jaguar o xamã percebe corporalmente tal assimetria, pois o devir não é uma imitação nem uma memória (Rolnik, 1998; Viveiros de Castro, 2004; ibid, 2007; Deleuze, Guattari, 2012).
Como em Bataille, a descontinuidade do corpo (os limites da extensão de suas partes) é rompida na comunicação, devir-contínuo da diplomacia xamânica — mas que nunca chega à continuidade enquanto tal, à desterritorialização absoluta, pois mantém-se nas bordas do território, na zona de proximidade e indiscernibilidade dos estratos (onde é indeterminado qual elemento pertence a qual identidade, a qual sujeito), fazendo traficar os fluxos de fora para dentro, de dentro para fora; veiculando os corpos-sujeitos alhures; produzindo limiares nas próprias fronteiras.
Tais limiares estão presentes na vibração do canto da subjetividade antropofágica, vibrando o corpo em sintonia à uma multiplicidade de afetos transnacionais; uma vibração diferente da qual se refere Lyotard, ao enfatizar a propriedade vibratória da narrativa popular tradicional enquanto performance, um certo ritmo temporal do jogo da encenação. Enquanto a narrativa da tradição representa, o antropófago contamina, torna-se outro e emite suas ondas vibratórias que modulam os singulares parciais segundo sua filtragem seletiva (Bataille, 2020; Viveiros de Castro, 2004; Deleuze, Guattari, 2012; Lagrou, 2009; Rolnik, 1998; Lyotard, 2020).
Escapando à imitação e à assimilação identitária, a ética do xamã e do antropófago ressoam na experimentação do teórico. As ferramentas conceituais não devem ser instrumentalizadas para simplesmente inserir um signo decolonial na análise; a bricolagem é um processo de aliança, não de mimese. Também não se trata de representar a fala de alguém, como problematiza Spivak. As alianças e seleções da experimentação teórica não buscam integrar elementos da cosmologia ameríndia apenas para cultivá-los como os objetos antigos de Baudrillard, signos de autenticidade e referência histórica. Pelo contrário: há uma reciprocidade construtiva entre o maquinário teórico-conceitual e os elementos aos quais ele se alia, passando por metamorfoses em seus contágios; tradução que presume diferença, descompasso que promove uma abertura que escapa aos limites das molduras técnicas (Castro, 2020; Spivak, 2010; Baudrillard, 2015; Goldstein, 2019).
Em ressonância com as pragmáticas do xamã, do antropófago e do teórico, a questão da arte para os povos ameríndios enfatiza uma cosmologia diferente em relação à estética moderna. Para os Xikrin, os objetos tornam-se vivos, e não mera exposição de beleza que distingue artefato útil e arte contemplativa especializada: tem função de valor devido a sua relação com a alteridade. O belo e o valioso para os Xikrin é aquilo que é descoberto de fora, apropriado e ressignificado; passa por metamorfose, contágio transformador, pois não há automatismo, a beleza é sempre resultado de uma produção. Tal sistema de objetos segue uma cosmologia diferente do sistema de objetos da sociedade de consumo, mas mantém uma característica comum curiosa: o papel do objeto em um sistema de diferenciação, em um modo de subjetivação ritual.
Não se tratando apenas de um paradigma artístico outro, tal cosmologia é uma cosmotécnica; não se assentando, porém sobre a lógica da invenção e da originalidade da cosmotécnica ocidental moderna, mas da transferência e da apropriação de algo que vem de fora. Desse modo, as cosmotécnicas ameríndias unificam sua cosmologia moral da produção técnico-artística ao situar o valor na alteridade e em sua transformação pela sobrecodificação cultural. Mas assim como o xamã e o antropófago, não buscam a centralização de uma identidade cultural no objeto: seu caráter polissêmico é conservado na forma de historicidade do objeto (Gordon, Silva, 2005; Lagrou, 2009; Demarchi, 2017; Baudrillard, 2015; Viveiros de Castro, Hui, 2021; Hui, 2017).
Xamã, antropófago, teórico, artista: as figuras da ética do corpo em conexão com a cosmologia ameríndia permitem a abertura para o fora, para uma alteridade que repele a identificação; composição de agenciamentos, multiplicidades, perspectivas outras. Recusando a mera representatividade formal, o terreno da prática é invadido por esferas policêntricas, traçando linhas sem ponto fixo de unificação. O que o corpo pode se refere ao que ele se torna capaz de afetar e ser afetado, expansão de seu escopo de ação. Abrir-se ao contágio de experiências corporais que embaçam as fronteiras Natureza-Cultura é um esforço teórico, político, artístico, antropológico e ético — uma tarefa que não visa a recuperação de uma originalidade, mas a produção de um futuro pelas alianças com a diferença.
*Bernardo João do Rego Monteiro Moreira é mestrando em filosofia pelo PPGFIL-UERJ e bacharel em Ciências Sociais pela UFF.
*Nathália Durso Martins é graduada em artes cênicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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