Por que estamos em greve?

Imagem: Nano Erdozain
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Por SERGIO STOCO*

Chegamos a uma situação de penúria das instituições de ensino federal

Mais uma greve… por que esses servidores públicos insistem em paralisar os serviços? Será que o problema é que eles não podem ser mandados embora? Não tem ninguém para cobrar produtividade? São privilegiados!

As carreiras do serviço público federal não são as mesmas, um professor / pesquisador para concorrer nos concursos da rede federal (universidades ou institutos) precisa ter passado por pelo menos 25 anos de vida escolar / acadêmica (ensino fundamental e médio, graduação, mestrado e doutorado), o que representa, em geral, passar um terço da vida se preparando para tornar-se professor do magistério público federal.

No entanto, diferentemente de outras carreiras ou cargos do serviço público (segurança, receita federal, governadores e poder judiciário), que receberam este ano, não apenas reajustes, mas aumentos salariais e melhorias nas condições das carreiras, os professores e técnicos da rede federal tem recebido a humilhante resposta de reajuste zero para 2024.

Um professor da universidade federal em início de carreira (que para atingir o topo, professor titular, exigirá um conjunto de realizações de ensino, pesquisa e extensão e pelo menos 20 anos), tem um vencimento básico pouco acima de 5 mil reais. Outra parte do salário, pouco acima de 6 mil reais é pago na forma de retribuição por titulação. Ou seja, 60% do salário não é incorporado como vencimento e, portanto, não contará para sua aposentadoria o que, projetando a longevidade da carreira, gera uma grande insegurança e piora das condições de vida, ao longo do tempo (todos sabemos que, ao ficarmos mais idosos, precisaremos de mais recursos para manter a saúde).

Também a tão sonhada estabilidade do cargo público não é absoluta, como pensam muitos. A estabilidade é uma segurança para que servidores cumpram seu dever dentro dos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência; inclusive tendo que desautorizar chefias quando descumprem esses princípios (você imagina na iniciativa privada um empregado confrontando um chefe, mesmo quando o caso é de irregularidade ou ilegalidade?).

A estabilidade é conquistada após um estágio probatório (avaliação) de três anos (como qualquer cargo público) e depende do desempenho (avaliações periódicas para progressão e promoção) e do comportamento funcional do servidor (que pode sofrer sindicâncias e processos administrativos), em ambiente altamente competitivo (no sentido acadêmico e político), de grande pressão por resultados acadêmicos (avaliação Capes) e de muita precariedade de infraestrutura.

Aliás, por falar em precariedade na infraestrutura, o orçamento das universidades há dez anos só diminui. No segundo semestre é sempre aquele exercício de conseguir recursos (com complementação do orçamento ou recursos próprios) para fechar as contas (pagar o que chamamos de custeio: fornecimento de água e energia, segurança limpeza etc.), sem falar da falta de investimentos (o quer chamamos de capital: construções, manutenções, compra e atualização ou conserto de equipamentos etc.).

Tudo isso, considerando que são os professores / pesquisadores da universidade pública que, em geral, produzem ciências para o país e para os problemas complexos que a humanidade enfrenta (imagine a Pandemia Covid-19 sem vacinas, ou a catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul sem os pesquisadores do clima e do meio ambiente, para nos alertar dos riscos e perigos que corremos e criar soluções).

Mas por que chegamos a esta situação de penúria das instituições de ensino federal?

A redução do Estado na perspectiva da Nova Gestão Pública

A reconfiguração do papel do Estado e sua responsabilidade frente as políticas públicas educacionais – Essa nova perspectiva de atribuição estatal, difundida a partir da concepção da Nova Gestão Pública (NGP), se orienta pelo chamado fracasso do Estado de Bem Estar Social. Os tomadores de decisão acadêmicos / políticos que formulam políticas públicas chegaram à conclusão de que não há espaço para o investimento educacional nesse novo Estado.

Essa conclusão deriva tanto de um processo de desresponsabilização do Estado frente ao seu papel social (chamado de maior autonomia) que tem a expectativa de transferir essa responsabilidade para a iniciativa privada (famílias e investidores), sintetizada na frase “O Estado tem como ação prerrogativa cuidar apenas da Justiça e da Segurança”, ou ainda, a análise que os vultuosos investimentos realizados em sistemas universais de ensino trazem pouco retorno social (maior investimento não significa maior desempenho em testes de proficiência), uma vez que, até os defensores dessa visão de Estado e Educação sabem que a escola, isoladamente, não é capaz de suplantar as desigualdades presentes na estrutura social.

Nessa lógica a regra que governos têm obrigação de seguir (ao preço do mercado financeiro inventar uma crise) é o famigerado ajuste fiscal (gastar menos que arrecada), sempre considerando que ajustar, significa cortar despesas com saúde, educação, assistencial social, previdência social etc., mas continuar reservando grandes fatias do orçamento para emitir títulos da dívida pública (aqueles papeis que prometem pagar juros, por exemplo, o Tesouro Direto).

Assim, todo dia ficamos preocupados se a paridade da moeda (dólar – real) muda ou se o índice da bolsa de valores cai, como se isso afetasse diretamente as condições de vida da população brasileira quando, na verdade, não há empregos (nas empresas reais, não no sistema financeiro especulativo) e a pobreza e a desigualdade só aumentam, enquanto os bilionários ampliam suas fortunas e não pagam impostos.

A crise da educação e a escola pública

Para seguir no jogo da concentração de renda e da redução das despesas com educação pública é preciso fixar a imagem de que a escola pública é sempre precária, apesar de ser o único serviço que atende a toda a população do país, uma vez que o ensino é obrigatório dos 4 aos 17 anos.

Para cumprir bem a tarefa de acabar com a educação pública os gestores municipais, estaduais e federais não financiam a infraestrutura das escolas, remuneram mal os profissionais da educação e tentam reduzir ou elitizar as oportunidades de formação para as populações mais vulneráveis, assim, a imagem que temos da escola pública é sempre de um lugar mal cuidado, que faltam professores e que são mal preparados / formados e que as boas escolas são as instituições privadas.

Por mais que hajam boas escolas privadas, assim como há boas escolas públicas, segundo as avaliações dos sistemas educacionais (Ideb), não é possível afirmar técnica ou cientificamente que escolas privadas ou que a gestão privada das escolas é melhor em relação as escolas públicas. Aliás, você conhece algum setor da vida econômica brasileira que foi privatizado e que a promessa da melhora de serviço e redução dos preços se cumpriu?

Portanto é necessário, para continuar reduzindo os investimentos na educação pública e aumentando a privatização (o que repassa dinheiro de impostos para o setor privado) criar crises permanentes na educação e, ao que parece, a nova etapa é criar crises (retirar investimentos) da rede federal de ensino, que em todas as avalições de qualidade (tanto na universidade, como nos institutos federais) tem os melhores resultados.

Uma sociedade que não acredita e não precisa da ciência

Também contribui para a atual situação das universidades públicas (que majoritariamente produzem ciência no Brasil) dois movimentos que, ao se combinar, reduzem o interesse das pessoas pela formação universitária (ano a ano diminui a procura por vagas na graduação e na pós-graduação).

O primeiro é o movimento de gerar desconfiança sobre o trabalho e produção da universidade e de seus membros (acadêmicos), associando sempre análises científicas a interesses ideológicos ou escusos. Aproveitando-se das incertezas que o futuro da humanidade vem apresentando, as perspectivas salvacionistas, por vezes associadas a religiosidade, dependem da criação de narrativas mitificadoras para substituir as explicações que as ciências foram consolidando ao longo dos séculos.

Trata-se do jogo político (disputa de poder) e que, claramente, redunda em maior participação econômica, tanto no sentido de nicho de mercado (lembrando que estamos numa sociedade de consumo e que, portanto, vender depende de criar desejos e conquistar corações e mentes), como no sentido orçamentário (disputa dos fundos públicos): se o Estado tem que investir mais em áreas fundamentadas na ciência (educação, saúde, transporte etc.) há menos recursos para repassar as instituições ligadas a esses grupos (ONGs, igrejas, associações, partidos etc.).

O segundo movimento decorre do nosso modelo econômico. Um país agroexportador como o Brasil não precisa de uma sólida estrutura de pesquisa e desenvolvimento científico. Ou seja, os setores vinculados aos interesses agroexportadores, associados aos interesses geopolíticos internacionais, incidirão permanentemente para manter o país nesta posição de dependência econômica e tecnológica, o que, além da reserva de mercado (eliminar a concorrência por outros setores), condiciona o mercado de trabalho, uma vez que inviabiliza criação de novas áreas econômicas que demandariam novas tecnologias e, portanto, desenvolvimento científico.

Não sem razão, o interesse pela formação universitária e por pesquisas vai diminuindo e aumenta o discurso do empreendedorismo, que coloca as pessoas sob a responsabilidades de inventar formas de sobrevivência, o quer no Brasil sempre foi característico do trabalho precário (subemprego, trabalho análogo a escravidão e trabalhador autônomo).

Notem que os diferentes grupos políticos / econômicos interessados em desacreditar e descartar a ciência como caminho para a melhoria das condições de vida se articulam em diversas pautas sociais, por exemplo, dizem que proteção ambiental é coisa de comunista!

As emendas secretas

Outro ponto que tem aumentado a crise orçamentária nas universidades é a intensificação das chamadas emendas impositivas (secretas) no legislativo nacional e estadual.

Nas últimas décadas e, em particular, nos últimos anos, o equilíbrio entre os poderes (executivo, legislativo e judiciário) tem pendido para o poder legislativo ser predominante na condução da agenda pública (definir o que é prioridade).

Os poderes institucionais têm suas competências e responsabilidades definidas em lei, mas a tendência de transferência do poder de tomar decisão sobre os investimentos (parte do orçamento que pode ter uma escolha / discricionária) mudou de mãos (saiu do executivo e foi para o legislativo) e tem aumentado a sua parcela do orçamento.

O que significa na prática que o legislativo decide (ter orçamento significa ter poder) onde e como gastar boa parte do orçamento que é, legalmente, uma competência do poder executivo. Com isso, em vez de ter mais recursos para os programas de atendimento universal da população (SUS, Fundeb, Previdência Social etc.) o recurso vira moeda de troca e valorização do eleitorado de cada deputado(a) ou senador(a), o que tende a virar desperdício (ações isoladas e, por vezes, repetitivas e desintegradas com as demais políticas) e falta de controle (essas emendas são chamadas de secretas pois não tem a mesma transparência e rigor quanto a forma de utilização).

Com isso, as instituições federais de ensino ficam dependentes de buscar parlamentares para financiar suas ações (até mesmo as de custeio, como pagamento de energia elétrica) e, assim, tem seus serviços ameaçados, descontinuados e dependentes de interesses particulares de cada parlamentar. O que, para ações que envolvem ensino, extensão e pesquisa, de natureza que exigem planejamento e regularidade de médio e longo prazo, alto grau de incertezas e aumento da precariedade.

A insuficiência da assistência estudantil

Por fim, para fechar o quadro das razões que nos levam a atual situação, é importante destacar algo que afeta o nosso principal objetivo como instituição: criar um futuro melhor para cada um e para toda a sociedade, a partir das ações de ensino, extensão e pesquisa; o que significa cuidar daqueles que ingressam na universidade visando (fins), como determina a Constituição Federal de 1988 (Art. 205), para toda a educação brasileira: o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Dentro da linha das perdas e disputas orçamentárias e dos desincentivos a ciência, o financiamento a assistência e permanência estudantil vem caindo significativamente, há pelo menos dez anos.

São os recursos da assistência estudantil que garantem bolsas e auxílios (alimentação, transporte, apoio a saúde, moradia etc.) fundamentais a permanência das e dos estudantes na universidade.

Os elevados custos de vida nos grandes centros urbanos, mas também as grandes dificuldades para deslocamentos ou moradia estudantil (nos centros urbanos e nas cidades interioranas), as pressões decorrentes das dificuldades acadêmicas de uma boa formação (que competem com a facilidade / fragilidade da ampla oferta de cursos EAD de baixa qualidade) e da falta de incentivos (desvalorização da ciência, da formação acadêmica e dificuldades de atuação profissional), tal qual as condições sociais, econômicas e emocionais e fisiológicas (saúde) tem gerado como resultado: ansiedade, depressão, abandono e evasão.

A inviabilidade da permanência das e dos estudantes é a sentença de morte das universidades.

*Sergio Stoco é professor de Políticas Públicas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).


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