Por uma nova defesa nacional

Imagem: Bryan López Ornelas
image_pdf

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

A necessidade de uma defesa nacional autônoma e coesa é urgente, exigindo uma revisão das políticas atuais e a inclusão de diversos atores sociais para enfrentar os desafios contemporâneos

1.

Desde o tempo encouraçados, dos primórdios da aviação e dos veículos automotores as corporações militares brasileiras ajudam a manter a capacidade guerreira das potências imperiais. A Armada brasileira modernizou-se dando lucros aos estaleiros ingleses. As vendas ao Exército eram disputadas pela Alemanha e pela França. A Itália também biscava no mercado de aviação.

Até a conquista da hegemonia, na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos marcavam tímida presença na refrega pelo fornecimento de armas ao Brasil.

Na nova ordem estabelecida, tudo mudou. Forças brasileiras montaram escritórios em Washington e tornaram-se extensão de vasto complexo guerreiro para defender o “Ocidente” do “perigo vermelho”. A indústria e o Exército estadunidenses passaram a fornecer armas, equipamentos, treinamento, doutrinas, valores, conceitos e modelos organizacionais às corporações brasileiras.

As poucas iniciativas em busca de autonomia foram restritas e descontínuas. As mais notáveis, protagonizadas pelo almirante Álvaro Alberto e pelo brigadeiro Casemiro Montenegro, buscaram o domínio das tecnologias nuclear e aeronáutica. Os dois travaram corrida de obstáculos.

Há três décadas, quando a quimérica unipolaridade cambaleou diante da preservação do poderio militar russo e da ascensão chinesa, a necessidade de a Defesa brasileira buscar caminho próprio ficou gritante.

Mas os planos neste sentido não incluíam uma condição básica: a coesão nacional. A soberba castrense exprimiu-se no persistente enaltecimento da ditadura instalada em 1964 e no gosto pela atuação em Segurança Pública.

Em busca de legitimidade e dispondo de larga autonomia, as corporações agravaram seu distúrbio de personalidade funcional originário exercendo atividades da órbita de instituições civis e da iniciativa privada.

Acostumadas a tomar os vizinhos como inimigos, as corporações evitaram parcerias estratégicas que viabilizassem a produção de material militar em escala rentável. Não apostaram no potencial da comunidade acadêmica nem na capacidade industrial instalada.

Enfim, não superaram a mentalidade cristalizada em um século de dependência de potências estrangeiras. Persistiram dando lucros ao complexo ocidental conduzido pelo Pentágono. Optando por uma descabida divisão de trabalho, dedicaram-se à manutenção da ordem interna. A Defesa nacional ficaria no âmbito da segurança hemisférica capitaneada por Washington.

2.

Tal opção abriu cancha ao ativismo político de seus integrantes. Hoje, alguns militares respondem judicialmente por crimes contra a ordem democrática enquanto os comandos se empenham em amenizar desgastes da imagem das corporações.

Eis que surge Donald Trump. Sua agressividade apaga a aura de civilização usada pelos Estados Unidos para manter o controle de boa parte do Planeta. Desmonta a imaginária terra da liberdade e da democracia. Anula a ideia de “bons propósitos” necessária ao uso da força bruta.

Donald Trump ajuda a mostrar a insustentabilidade da dependência de mais de 80 anos que o Brasil manteve com Washington. Alguns imaginam que o tarifaço atingiria, sobretudo, o Exército brasileiro, posto que o principal projeto da Marinha é desenvolvido com a França e o novo caça da FAB resulta de negócio com a Suécia.

Essas preocupações são descabidas. Os meios de Defesa, por definição, são complementares e interdependentes. Não podem ser avaliados de forma estanque. Embarcações fabricadas com a França e aviões suecos são mobiliados com engenhos produzidos e controlados pelos Estados Unidos. Há muito a Europa otanizada, como disse Avelãs Nunes, não atua soberanamente em matéria militar.

É também impensável que o tarifaço prejudique a indústria de guerra estadunidense, que conta com aportes dos quatro cantos do mundo, inclusive do colosso chinês. As análises do quadro internacional serão inconsistentes caso desconsiderem a dimensão militar na economia globalizada.

Em matéria de Defesa Nacional, um ensinamento a ser colhido das celeumas provocadas pelo governante estadunidense é que o Brasil precisa buscar objetivamente sua autonomia em armas e equipamentos.

Isso não significa saltar do terreno de Washington para o dos desafiantes euroasiáticos. A definição da nova ordem global não tem prazo para acabar e, seguramente, não ocorrerá sem banhos de sangue. O imponderável está na ordem do dia, inclusive em termos de material militar. O campo de batalha e os procedimentos guerreiros sofrerão mudanças difíceis de imaginar.  

Precisamos de uma revisão profunda da Defesa Nacional, tarefa que não podem ser entregue exclusivamente aos militares e especialistas civis. Defesa é política pública abrangente. Envolve múltiplos atores e precisa do apoio da sociedade.

A soberania nacional entrou em debate com a ajuda de Donald Trump. A ausência de propostas concretas para a futuro da nação abre espaço para demagogos e aventureiros que se vestem de patriotas, remetendo ao alerta de Samuel Johnson, em 7 de abril de 1775: “o patriotismo é o último refúgio do canalha” (patriotism is the last refuge of a scoundrel).

Será canalhice o discurso patriótico que não combata as desigualdades e defenda comida para o povo, amizade com os vizinhos, autonomia energética, defesa ambiental, desenvolvimento científico e tecnológico e produção própria de armas e equipamentos militares.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura). [https://amzn.to/3URM7ai]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES