Por uma segurança nacional popular

Foto: Dmitry Demidov
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Por VINÍCIUS COCENZA*

A reivindicação de uma segurança pública popular deve ser feita como oposição à ordem burguesa e necessita emergir das massas. Mas o que fazer quando a população apoia a violência estrutural vigente?

“O sistema manipula sem ninguém saber
A lavagem cerebral te fez esquecer
Que andar com as próprias pernas não é difícil
Mais fácil se entregar, se omitir
Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme de guerra”
Racionais MC’s.

A operação policial realizada no dia 28 de outubro de 2025 na cidade do Rio de Janeiro tem a natureza de um massacre. Além de utilizar o braço armado do Estado para vitimar 117 cidadãos, o governador Cláudio Castro foi o responsável por admitir um cenário de angústia coletiva, com o objetivo único de absorver a barbárie como combustível da atuação da direita brasileira.

A reação popular espantou boa parte dos grupos “progressistas”, e levantou uma importante discussão acerca de como a esquerda deve tratar o debate da segurança pública. Desta forma, verifico que alguns pontos devem ser esclarecidos para que haja, então, um norteamento de como se tratar a operação e a estrutura securitária nacional por uma perspectiva verdadeiramente popular. Estas questões são: i) O que significa estar seguro dentro do capitalismo periférico brasileiro ii) Por que devemos agregar as estruturas sociais ao debater a segurança pública iii) Por que é fundamental disputar o senso comum e não aceitá-lo iv) Quais são as medidas realmente efetivas de combate às facções criminosas v) Por que a direita instrumentaliza a violência policial

Acho importante ressaltar que este texto não se compromete a expor todos os caminhos ou respostas necessários, mas sim apenas provocar uma tentativa de realocação da esfera do debate.

Quem está seguro?

A palavra segurança tem sua origem no latim, significando algo como “sem preocupações”. É fato que a dinâmica da vida contemporânea faz com que imaginar um convívio livre de preocupações remeta a um utopismo distante. O Estado tem a função necessária de prover os mecanismos para que os riscos no convívio social sejam os mínimos possíveis, entretanto, no Brasil segundo pesquisa da Genial/Quaest – o instituto de pesquisa preferido da mídia burguesa brasileira – a violência é o tema que mais preocupa 30% dos cidadãos brasileiros, na frente de problemas sociais com 18%, economia 16%, corrupção 14% e saúde 11%.

Não é nada arriscado dizer que a maior parte da população que vive no Brasil tem um panorama incerto sobre o seu futuro, vivendo constantemente inseridos em temores acerca de não ser possível levar uma vida digna para si. Aproximadamente 35% da força de trabalho brasileira recebe apenas um mísero salário mínimo, os empregados se encontram em regimes de trabalho cada vez mais precarizados, a educação pública é sucateada e desqualificada, o Sistema Único de Saúde é similarmente desfinanciado e incapaz de atender às demandas da população, ou seja, o cenário social é desumanizante e, sobretudo, desesperançoso.

Enquanto isso, no parlamento a política burguesa segue aprofundando o modelo de capitalismo financeiro brasileiro, aprofundando as raízes dependentes da superestrutura nacional. A “força popular” do Partido dos Trabalhadores segue no seu quinto mandato a mesma lógica que nos antecedentes, servindo a burguesia brasileira enquanto oferece minúsculos acenos à classe trabalhadora que nada questionam a estrutura do sistema. Mesmo ao se manifestar contra a “desastrosa mantaça”, Lula em nenhum momento de sua atuação no Executivo mobilizou um debate que realmente tocava nas questões estruturais essenciais da violência policial ou do tráfico comandado por facções. O Supremo Tribunal Federal, mais novo aliado dos progressistas, nada fará perante ao massacre no Rio, deixando Castro de “consciência limpa” da barbárie que liderou.

O fato é que a classe dos trabalhadores do Brasil não se sente segura. Nas periferias e nos bairros nobres a violência assombra as ruas, no mercado de trabalho o medo do desemprego ou da insuficiência do salário assombra os empregados, nas universidades o desespero por ingresso no mercado de trabalho representa o assombro da insuficiência da qualificação. Tais medos apresentam algo em comum, a desesperança no sistema político e a certeza de que a estrutura vigente é incapaz de garantir segurança à população.

Por uma “nova segurança”.

A Resolução nº 63/NQ-CP do governo do Vietnã visa garantir que todos os vietnamitas tenham acesso estável a alimentos básicos e que o país mantenha a autossuficiência na produção de grãos. Esta resolução define a segurança alimentar como parte da segurança nacional e da estabilidade social, assegurando quantidade suficiente de alimentos para toda a população.

Enquanto isso no Brasil 47 milhões de hectares são reservados para a plantação de soja destinada à exportação, o café é capturado pela demanda externa inflando seu preço no território nacional, as plantações são cada vez mais dependentes de fertilizantes importados, o sistema de transporte é dependente das rodovias e por consequência o preço da gasolina afeta excessivamente o IPCA. As situações citadas evidenciam que o modelo de produção agrícola brasileiro de nada contribui com a segurança alimentar nacional.

Por isso proponho que uma segurança pública popular deva revisitar o debate desde sua raiz. O povo seguro, ou seja, sem risco, deve primariamente receber garantias de um desenvolvimento social positivo e isso necessariamente significa repensar a estrutura econômica nacional, visto que “a totalidade social é definida a partir de um sistema, o sistema econômico, e de uma estrutura, a estrutura econômica.” (SANTOS , p. 83, 2021). O sistema político vigente já se mostrou incapaz de atender estas demandas, logo a reivindicação de uma segurança pública popular deve ser feita como oposição à ordem burguesa e necessita emergir das massas. Mas o que fazer quando a população apoia a violência estrutural vigente?

“O espetáculo da morte”.

“O povo brasileiro…acredita que quem saiu da miséria deve deixar quem não saiu da miséria na miséria. Esta é a visão que a classe dominante tem e que dá voto.” (VASCONCELLOS, 2025). O comentário feito pelo professor Gilberto Vasconcellos evidencia um fenômeno que já tinha sido percebido pelo velho Marx: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.” (MARX & ENGELS, p. 47, 2007).

Lutar por uma noção securitária popular significa necessariamente disputar o senso comum e esclarecer como as noções estruturais do sistema podem ser realmente transformadas. “Lenin não foi ao povo para ouvi-lo e adaptar-se a seus valores e à sua vontade espontânea, mas para disputar a hegemonia intelectual e moral, transformando a tradição e criando condições para liderar as lutas populares.” (SOARES, 2025). A reflexão de Soares é fundamental, pois evidencia que o enfrentamento não será bem recebido, o que não significa que tenha de ser evitado, mas feito com rigorosidade teórica e seriedade.

Os caminhos para combater as facções criminosas.

O tráfico de drogas funciona como um mercado paralelo: as mercadorias são compradas, transportadas, revendidas e o montante significativo de dinheiro movimentado é lavado no podre sistema financeiro do país. Um debate acerca do “combate ao tráfico” deve então questionar: como é possível uma estrutura mercadológica deste calibre operar paralelamente ao sistema? Entretanto, o fato é que o tráfico é um elemento constituinte do sistema capitalista, e a burguesia financeira participa ativamente desta estrutura. Logo, o contraponto à política rentista instalada no Brasil desde o Plano Real – ativamente denunciada pelo professor Nildo Ouriques – deve ser o ponto de partida para se sufocar o “mercado paralelo”.

A lógica da “guerra às drogas” deve cessar. Estratégias de desmilitarização da polícia, do território periférico e descriminalização das drogas são elementos de reestruturação do combate, que devem ter efeitos positivos também no sistema carcerário brasileiro – que semelhantemente deve ser completamente reestruturado e repensado para promover um efetivo processo de ressocialização de criminosos. 

Sobretudo a lógica da “nova segurança” deve integrar a atuação do projeto nacional, garantido empregos e salários de qualidade, um sistema educacional formador, saúde pública e cultura para as massas.

A atuação ativa do Estado é essencial, sobretudo, nas comunidades brasileiras, onde as facções criminosas buscam se instalar. “Favela não é problema, favela é a solução.” (RIBEIRO). Ao realizar esta provocação, Darcy indica que a formação destas comunidades ocorre como busca das massas de integrar – nem que de forma precária – a urbanização e reivindicar a sua cidadania. A negligência que o Estado brasileiro sempre teve com estas comunidades – que toma forma decisiva na contemporaneidade austera operacionada pelo Novo Arcabouço Fiscal – permitiu que forças paralelas controlassem processos sociais que danificam seriamente a convivência da população. É necessário estar presente e integrar essas comunidades, um projeto como o CIEPS foi um exemplo de efetiva reorganização da estrutura capaz de reinventar um futuro aos moradores das favelas, e portanto reduzir a desesperança que o tráfico se instrumentaliza para capturar os jovens periféricos.

O combustível do medo.

Bem distante de questionar a estrutura por trás do modus operandi do tráfico de drogas e da atuação de facções criminosas no Brasil, a direita brasileira propõe uma “guerra às drogas” baseada no medo e no conflito. Ao promover o terror, o espetáculo e a chacina, o recado é de que pouco valem as vidas dos cidadãos periféricos, que são brutalmente assassinados, rapidamente substituídos e estabelecem o”conflito infinito”.

 A população que não vê alternativa ao domínio das facções, sustenta suas esperanças na Polícia Militar, clamando que essa instituição possa prender e assassinar os criminosos que aterrorizam suas comunidades e cessar o conflito. Neste cenário, o domínio das classes dominantes, pode ser facilmente mantido sem qualquer questionamento ao sistema.

O ato de Castro é acima de tudo uma busca por sinalizar no cenário internacional o caos securitário “terrorista” que assombra o Brasil, uma estratégia que visa unir a direita brasileira como o único setor político capaz de lidar com a questão da segurança pública e clama por um sinal de Donald Trump, na esperança que o republicano trate a situação no Brasil de forma semelhante a que atua na Colômbia e Venezuela.

Qualquer alternativa que seja interna ao sistema político atual é ineficiente, reforça a natureza do capitalismo periférico brasileiro e é conivente com o terror que assombra as comunidades no Brasil. O cenário é extremamente grave e é por isso que se deve haver compromisso com uma formulação política rígida e coerente que seja capaz de servir dignamente a população brasileira.

*Vinícius Cocenza é graduando de Relações Internacionais na UFSC. 

Referências bibliográficas:

EDITORIAL BBC (Brasil). Quem são 115 de 117 suspeitos mortos em megaoperação no Rio, segundo a polícia. BBC News Brasil. [S.I]. 03 nov. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce3xwk9z59ko. Acesso em: 04 nov. 2025.

EMBRAPA. “Dados econômicos — Soja”. Embrapa Soja. Disponível em: https://www.embrapa.br/soja/cultivos/soja1/dados-economicos. Acesso em: 04 nov. 2025.

G1. “Quaest: 64 % dos moradores do RJ aprovam megaoperação nos Complexos do Alemão e da Penha.” G1 Rio de Janeiro, 01 nov. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/11/01/quaest-64percent-dos-moradores-do-rj-aprovam-megaoperacao-nos-complexos-do-alemao-e-da-penha.ghtml. Acesso em: 4 nov. 2025.

GOVERNO DO VIETNÃ. Resolution No. 63/NQ-CP on National Food Security. Disponível em: https://thuvienphapluat.vn/van-ban/EN/Linh-vuc-khac/Resolution-No-63-NQ-CP-on-national-food-security/101806/tieng-anh.aspx. Acesso em: 04 nov. 2025.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial de Leandro Konder. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

O GLOBO. “Genial/Quaest: segurança pública é a maior preocupação dos brasileiros, aponta pesquisa.” O GLOBO, 08 out. 2025. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/sonar-a-escuta-das-redes/noticia/2025/10/08/genialquaest-seguranca-publica-e-a-maior-preocupacao-dos-brasileiros-aponta-pesquisa.ghtml. Acesso em: 4 nov. 2025.

SOARES, Luiz Eduardo. Chacina do Rio: Qual a resposta das esquerdas? Outras Palavras, 03 nov. 2025. Disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/chacina-do-rio-qual-a-resposta-das-esquerdas/. Acesso em: 04 nov. 2025.

VASCONCELLOS, Gilberto. O espetáculo da morte. [Podcast]. Modo de Produção Acústico., episódio 215, 03 out. 2025. 4min. Disponível neste link. Acesso em:  04 nov. 2025.

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