Preto, pobre e vagabundo

Imagem: Alina Grubnyak
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Por SAMUEL KILSZTAJN*

Com as políticas de ações afirmativas, as universidades brasileiras começaram a assumir a cara do país

1.

Exceção feita aos craques do Corinthians, a grande maioria dos pretos é pobre. Para quem considera que os pobres são pobres porque são vagabundos, preto e vagabundo acabam virando praticamente sinônimos, com a honrosa exceção feita aos craques do Corinthians e aos nossos dóceis, fiéis e descartáveis serviçais pretos.

E, mesmo com o amor e os cuidados que as amas de leite negras possam dispensar a seus filhos naturais – entre o trabalho como empacotadeiras nas Casas Bahia –, garantindo o investimento narcísico necessário ao desenvolvimento da autoestima nos seres humanos, quando as crianças negras se depararem com o mundo branco que as cerca, o “seu mundo” vai ruir.

Nossa, calma! Pega leve – esse cara branco deve estar de mal com a vida. Deve odiar a si mesmo, diriam as pessoas que nunca ouviram falar em amar o próximo como a si mesmo e que sentir a dor do outro é o que nos define como humanos. Mas, lembre-se, sempre pode ser pior (assim como, também, sempre pode ser melhor). Poderíamos escrever um artigo com o título “Preto, pobre, vagabundo e bandido”, citando o documentário Relatos do Front, o artigo Guerra civil e a chacina nos complexos da Penha e do Alemão em outubro de 2025.

Nascido na Palestina, imigrei para o Brasil em 1953, aos dois anos de idade. E sempre gostei muito de me relacionar com o diferente, porque só o diferente é que pode ampliar a nossa condição humana. Eu morava no Bom Retiro e não lembro quantos anos tinha quando ouvi falar do Corinthians pela primeira vez. Me disseram que era o time do povo – então não tive dúvida e, mesmo sendo perna de pau, justiceiro e avesso a competições, assumi a identidade corinthiana. Hoje me defino como palestino budista, xangô e corinthiano.

Uma amiga negra, quando criança, fazia tudo certinho e não entendia porque não era selecionada para o papel de anjinho na procissão – hoje é líder feminista negra. Um amigo demorou muito para “descobrir” que era preterido em seleções para trabalho por ser negro – ele acreditava que era uma questão de mérito. Outra amiga negra era barrada no processo de alugar um apartamento logo após o primeiro (e último) contato pessoal.

Fico imaginando o impacto de um curta-metragem com brancos e pretos em lugares trocados:  solícitos subalternos brancos recebendo ordens de um arrogante empresário preto; empregadas brancas fazendo a faxina, cozinhando e servindo a patrões pretos; babás loiras uniformizadas levando crianças pretas para tomar sol na praça etc.

2.

A participação de mulheres no mercado de trabalho tem crescido. Contudo, parte significativa dos encargos para as mulheres continua sendo o de empregadas domésticas e cuidadoras e, nem seria preciso dizer, a maior parte destes postos são ocupados por mulheres negras. De acordo com os dados da PNAD/IBGE para o primeiro trimestre de 2025, o nível de ocupação das mulheres era de 48%, enquanto entre os homens alcançava 68%.

A participação das trabalhadoras domésticas (que inclui as cuidadoras) – com ou sem registro – correspondia a 12% do total de mulheres ocupadas, percentual significativamente superior ao dos homens, de apenas 1%. As mulheres representavam 91% do total de empregos domésticos, sendo que 63% desses postos eram ocupados por mulheres negras (autodeclaradas).

O trabalho de empregadas domésticas é naturalizado entre a classe média no Brasil. Existem mesmo brancas feministas que sequer pensam em realizar serviços domésticos – não têm tempo para isso. E elas se orgulham muito em propiciar empregos para as negras, que cuidam das casas e dos filhos das madames, além de suas próprias casas e filhos.

Quando a Sueli Carneiro descobriu que eu fazia todo o serviço doméstico em casa, molhava no tanque e secava no fogão, além do trabalho acadêmico e de cuidar de três filhos pequenos, ela disse, “as brancas fazem as pretas de mulher”.

A desigualdade racial no Brasil só passou a ganhar destaque na agenda oficial do país em 1995, com a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso, sociólogo estudioso da questão negra no Brasil e discípulo de Florestan Fernandes (que partiu em agosto do mesmo ano). Em 20 de novembro de 1995, por ocasião da comemoração dos 300 anos de Zumbi, foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra e, no discurso proferido durante a cerimônia de instalação do Grupo, em 27 de fevereiro de 1996, o presidente declarou, para constrangimento das elites do país, que “existe sim preconceito no Brasil”.

Em 2000 e 2001, a preparação do Brasil para a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata de agosto-setembro de 2001 em Durban, África do Sul, serviu como catalisador oficial da temática racial em nível nacional. Na ocasião, diversas propostas e medidas de ação afirmativa para o setor público foram apresentadas no Brasil, de bolsas de estudo para cursos preparatórios a cotas para universidades, empregos públicos e em empresas prestadoras de serviços ao setor público.

3.

Em 2004, os pareceristas double-blind de uma pesquisa que desenvolvemos e que, nas considerações finais, defendia as políticas de ações afirmativas no país, ficaram apreensivos: “a questão política relevante é saber se essa estratégia de combate ao racismo, através da radicalização da racialização já existente – e portanto sancionando-a, com a demarcação de raças distintas – é o melhor caminho para o povo brasileiro”.

Apesar de discordarem fundamentalmente do nosso paradigma “racialista ortodoxo” (achavam que éramos todos negros), aceitaram o artigo, com a “sugestão” de excluir algumas das afirmações mais pesadas, que acatamos, porque, caso contrário, o trabalho não seria publicado. Na universidade em que desenvolvemos a pesquisa, 22 dos 25 programas de pós-graduação não eram simplesmente contra as ações afirmativas – divertiam-se em fazer piadinhas racistas infames.

A mídia impressa, apesar de reconhecer a existência de desigualdades raciais no Brasil, era contra a implantação das ações afirmativas. Frente às políticas concretas direcionadas a alterar o quadro de desigualdade racial reinante no país, a convivência cordial com um sistema racial injusto parecia preferível a qualquer mudança nas relações de poder em vigor. Nos editoriais, a imprensa argumentava que era “contra as cotas raciais por motivos filosóficos e práticos”.

Afirmava que “todos os cidadãos devem ser tratados de forma igual”; que “não é tão simples definir, especialmente num país miscigenado como o Brasil, quem é e quem não é negro”; sugeria “substituir cotas raciais por cotas econômicas”; e, por fim, considerava que “corre-se o risco de afetar a qualidade da instituição universitária”. Danuza Leão, em texto publicado em 11 de abril de 2004, no jornal Folha de S. Paulo, declarou que é impossível definir quem é e quem não é negro no Brasil, exaltou os negros lindos de pele brilhante e disse que “um branquinho pobre, feioso, com um cabelinho ruim e a pele de um cinza meio embaçado, não vai achar a menor graça em se declarar negro”.

É com grande alegria que hoje vejo as universidades brasileiras começarem a assumir a cara do país. Evidentemente, estou me referindo ao corpo discente, porque ainda vai levar algum tempo para a fotografia do coletivo do corpo docente ser revelada em branco e preto.

E o Corinthians, o que tem a ver com isso? Em novembro de 2025, o Núcleo de Estudos do Corinthians – NECO reinaugurou o Museu do Povo, que conta A História Preta do Corinthians, com um megaevento que, em clima de festa, colocou em pauta o enfrentamento ao racismo no país. Vai Corinthians!

*Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos. [https://amzn.to/4pdWVen]

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