Por LUIZ MARQUES*
Formulações políticas que congelam a democracia no estágio formal-procedimental são reles peças publicitárias do regime de injustiças distópicas
A publicidade interpelava a necessidade (“esse produto é o melhor”); buscava o convencimento no ideal de eu (“esse produto deixa você mais atraente”); ora se beneficia dos recursos da Big Tech para manipular o desejo das pessoas. As corporações capitalistas conquistaram não esse ou aquele setor, mas o mundo; em vez de um depósito com excedentes, a sociedade; em vez de uma coluna semanal, o próprio controle dos meios de comunicação. A história poderia recuar ao papiro de Tebas, há três mil anos, que anunciava uma recompensa pelo escravo fugitivo, ou às circulares em pilastras do Fórum de Roma. Optou-se pela aventura na Idade Moderna.
No século XVII, newsbooks tinham a função de difundir as notícias. Em Londres, a Catedral de Saint Paul foi o centro de divulgação que, no crescendo, se expandiu com as publicações impressas. Recomendações eram feitas de forma direta, como a que data de 1658: “A bebida chinesa excelente e aprovada por todos os médicos, chamada Tcha, e em outras nações Tay ou Tee, é vendida no Sultaness Head Cophee-House”. A menção aos médicos apela à óbvia autoridade dos especialistas, mais chamados a opinar do que os filósofos nos países de língua inglesa, diferente da França. Na sequência do progresso advieram a sutileza da linguagem e a imagética. Como diz João Cabral de Melo Neto, num belo poema: “A pele do silêncio / pouca coisa arrepia”.
Hoje a publicidade é “um sistema organizado de persuasão e satisfação, funcionalmente similar aos sistemas mágicos em sociedades mais simples, mas estranhamente coexistindo com uma tecnologia científica avançada”, lê-se no ensaio “Publicidade: o sistema mágico”, in: Cultura e materialismo, de Raymond Willians. A magia supre a falta de respostas negociadas com a morte, a solidão, a frustração, a crise de identidade. O estatuto de “cidadão” cede ao de “consumidor”, que substitui o de “usuário”. Somos os canais de escoação do produzido para o mercado. Condição que subsiste ao protesto por bens coletivos (escolas, hospitais). Temas que mostram autonomia do poder econômico e do poder político para uma tomada de deliberações na sociedade.
Arte e ciência
Custou arrumar a bagunça. O estilo usual era o dos “classificados”. O charlatanismo para combater o coronavírus equivaleu aos “estimulantes reais contra o ar infecto”, na epidemia de peste bubônica (1665-1666), na Inglaterra. Propagandas sobre dentifrícios que “usados, os usuários não são jamais acometidos por dores de dente”, trezentos anos atrás, permaneciam ainda nos anúncios televisivos da British Dental Association, à época em que os Beatles aprendiam os acordes. As entidades de publicitários selaram a transição da publicidade para uma profissão, aproximando-a da psicologia, da sociologia e do marketing. A publicidade se descobre uma arte e ciência.
O curioso é que raros produtos de origem fabril se valeram da publicidade, no início. Esta demorou a ser acolhida com suas galerias artísticas (os bunners). O gosto e as urgências da comercialização andavam em lados opostos. A publicidade contemporânea nasce na volumosa campanha publicitária da Imperial Tobacco Company que, em 1901, ofereceu uma soma fabulosa por oito páginas do The Star. O periódico aceitou entregar quatro, um “recorde mundial”, para imprimir “o anúncio mais caro, colossal e convincente nunca publicado em jornal, em todo o mundo”. O volume de entradas desde então se converteu na lição elementar de campanhas publicitárias.
Para chamar a atenção, se utilizava nos cartazes a letra cursiva, o negrito e o asterisco, mais tarde as ilustrações da espuma milagrosa que servia para afiar a lâmina de barbear. Anunciantes recorriam a trapaças e a mentiras. Pós-revolução industrial, a poluição visual das cidades cobriu as ruas com as estampas do livre mercado. Porções, sabonetes e itens do quilate coloriram a paisagem urbana. E a luz de neon, the sound of silence, padronizou as noites de Norte a Sul.
Dissimulação
Durante a Primeira Guerra havia propagandas “Papai o que você fez na Grande Guerra”. Um poster dizia que o homem que desapontasse o seu país desapontaria igualmente sua namorada ou esposa. Pressões do campo de batalhas e da economia enfatizavam as angústias. O existencialismo captou o espírito do tempo filosoficamente. Na versão autoritária havia que controlar e reprimir a liberdade dos indivíduos para fazer escolhas. Chantagens e falsas promessas receberam uma maquiagem, com ares de modernismo. A subjetivação da interlocução e a decodificação das emoções com vistas a uma potencialização dos lucros estendia os seus tentáculos sobre as almas.
O que não mudou na travessia entre os séculos foi o método de vender as ilusões. Exceto que, agora, se vende de uma bebida a um partido político. O empresariado aderiu à lógica dissimuladora. À medida que a sociedade adapta-se totalmente às massas, a publicidade pede que integremo-nos totalmente nela. A reciprocidade é falsificada. Nesse sentido, o fetichismo da mercadoria, que é um atributo do valor de troca, não de uso, foi superado pelo valor do sígnico.
“Da informação, a publicidade passou à persuasão, depois à persuasão clandestina, visando agora o consumo dirigido, amedrontando-nos com a ameaça de consumo totalitário. O discurso publicitário dissuade e persuade, daí parecer que o consumidor é senão imunizado, livre da sedutora mensagem publicitária”. Com efeito, “se a publicidade não persuade o consumidor sobre a marca, o faz sobre coisa mais fundamental à ordem da sociedade inteira”, observa Jean Baudrillard em “Significação da publicidade”, in: Teoria da cultura de massas, organizado por Luiz Costa Lima. A reflexão, é dos anos 1970; algoritmos da inteligência artificial reinventaram as regras do jogo.
Consciências
No Brasil, a campanha presidencial de 1989 é a primeira no sistema nacional de telecomunicações. A vitória do parceiro da famosa emissora de TV, em Alagoas, não surpreende. O país é permeado pela propaganda política em novelas, nos noticiários, nas jornadas esportivas. Aqui, firmou-se uma aliança entre publicitários, jornalistas, difusores ditos independentes e donos da opinião pública – o “coronelismo eletrônico”. Na atual legislatura, vinte deputados federais e seis senadores possuem ligações midiáticas diretas, outros têm relações familiares. A publicidade se desenvolveu vendendo bens na economia, modernamente vende pessoas na cultura mercadológica. Fez-se indissociável do modo de produção no capitalismo. Os objetos não se bastam; provam-no as reiteradas associações com predicados de beleza, de virilidade, de sensualidade e de status social.
O “cenário de representação política é construído na e pela mídia e vai muito além das campanhas eleitorais, no que se refere à duração e ao conteúdo”, sublinha Venício A. Lima, no artigo sobre “A propaganda eleitoral e partidária e as eleições”, in: Mídia, eleições e democracia, coordenado por Heloiza Matos. O consolo é que na semiótica corporal Lula da Silva evoluiu bastante. No debate final da candidatura debutante, editado capciosamente pela Rede Globo, o ex-metalúrgico relevou os ataques baixos do oponente e estendeu o braço para cumprimentá-lo (erro); o corpo denunciou o colonizado. Desta vez, recusou ficar perto do colonizador ao debater (bingo).
Concluindo. Primeiro, o problema da publicidade não é a má qualidade dos anúncios, ao contrário do que sugerem os aristocratas que subestimam o talento das agências. Segundo, a publicidade retrata um fracasso social em achar informações confiáveis e espaços de participação e decisão, no Estado de direito democrático. Terceiro, os anúncios que fantasiam a sociedade de consumo e a vinculam aos princípios da felicidade e da solidariedade reforçam as desigualdades realmente existentes. Quarto, a publicidade é estratégica para as ações educacionais (respeito às leis do trânsito, aviso sobre catástrofes climáticas) e sanitárias (calendário com locais de vacinação, infantil e adulta); mas desorganiza as consciências para mudanças estruturais, o que só é possível através da práxis política com base num programa transformador para desalienar a vida privada e transcender a mercantilização de tudo e todos. Aí, contam os partidos e movimentos sociais.
Formulações políticas que congelam a democracia no estágio formal-procedimental são reles peças publicitárias do regime de injustiças distópicas. A luta ideológica contra-hegemônica por uma nova sociedade não se encerrou com a derrota do neofascismo, em 8 de janeiro.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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