Quem está ganhando a guerra na Ucrânia?

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Por SALEM NASSER*

Buscar essa resposta apenas na mídia tradicional é deparar-se com informações muito fragmentadas e o desafio de dar sentido ao todo é imenso

Quem está ganhando a guerra?

Claro, a resposta a esta pergunta depende do que queremos dizer com “ganhar” uma guerra. Tem-se em conta o número de baixas, os ganhos e perdas territoriais, as perspectivas de ser o “último homem em pé”, os ganhos políticos e estratégicos já obtidos ou ainda por vir…?

A resposta depende de incógnitas que podem estar subjacentes à própria questão: por exemplo, se considera o adversário da Rússia e, portanto, o suposto vencedor ou perdedor, a Ucrânia, a OTAN ou mesmo os EUA?

Vamos aceitar, como critérios de avaliação do sucesso ou insucesso em contexto de guerra, sem pretendermos ser exaustivos, os seguintes: número de baixas sofridas por cada lado; a proporção de vítimas; os ganhos e perdas territoriais; o número de tropas disponíveis para cada lado; o nível de treinamento e prontidão das tropas; o estoque e a qualidade do equipamento militar e munição com que cada lado pode contar; a capacidade das partes para enfrentar as consequências econômicas do conflito, etc.

Posso, olhando para esses critérios e talvez para alguns outros, ter meu próprio julgamento sobre como a guerra está indo para as partes combatentes. Porém, como sempre, mais importante do que compartilhar minha opinião – especialmente considerando que neste caso não estou em melhor posição do que a maioria para obter e verificar dados – é avaliar a dificuldade de chegar a uma conclusão ou mesmo a uma hipótese bastante plausível.

Dentre os critérios listados acima, o único fato que parece ser consensual diz respeito aos territórios que passaram a estar sob controle russo. Não me refiro aos pequenos avanços ou retrocessos, mas às enormes extensões de territórios conquistados.

Em todas as outras variáveis, eu diria que estamos no escuro completo. E, para esclarecimento, estou falando de “nós” que estamos expostos basicamente à grande mídia ocidental e que olhamos para essa mídia com olhos interrogativos (aqueles que não se preocupam com fazer perguntas podem se sentir bem informados, mas esse seu sentimento logo será desafiado, se alguma vez lerem isto).

Se alguém olhar apenas para a mídia ocidental tradicional (sim, eu sei, isso precisa ser qualificado) e fizer perguntas, depara-se com informações muito fragmentadas e o desafio de dar sentido ao todo é imenso. Deixe-me ilustrar isso com alguns exemplos.

 

Imagens

Desde a invasão do Afeganistão pelos EUA e depois a invasão do Iraque liderada pelos EUA, aqueles de nós que têm idade suficiente para se lembrar estão acostumados com a guerra televisionada em tempo real e esperam que qualquer conflito que seja examinado de perto pela mídia ocidental seja mostrado ao mundo num fluxo rico e permanente de imagens e vídeos.

Isso, acredito, não está acontecendo desta vez, em relação à guerra na Ucrânia, e requer uma explicação. Não é por falta de acesso ao campo de batalha. O (genérico, como alguns diriam) Ocidente está fornecendo armas, munição, dinheiro e treinamento para a Ucrânia; não deve ter dificuldade em incorporar jornalistas às tropas de combate, pelo menos em um dos lados da frente. Por que não está fazendo isso, quando a prática se tornou comum? Possíveis razões para isso podem surgir adiante neste post.

Em todo o caso, à medida que se faz pesquisas nos locais habituais (google, youtube e outros) vão surgindo algumas imagens e vídeos. No entanto, enquanto fazia o exercício, fiquei impressionado com o fato de que quase todos os resultados obtidos (certamente as primeiras dezenas) são de façanhas ucranianas e perdas russas.

Pergunto-me onde poderiam estar as imagens e os vídeos de que ouço falar e que dizem mostrar exatamente o panorama oposto, o da derrocada ucraniana. A resposta parece estar nos meios de comunicação pouco acessíveis para nós no Ocidente, menos conhecidos ou censurados desde o início, como foi o caso da RT e do Sputnik. A outra metade da resposta, necessária, é que nossos veículos habituais, mídia tradicional e redes sociais estão operando censura ao escolher os conteúdos que podem ou não ser transmitidos ou exibidos.

 

Vítimas e proporção

Quando se trata de guerras, uma pergunta muito básica a se fazer é aquela relacionada ao número de baixas, de mortos e feridos. É compreensível que seja quase impossível estabelecer o número exato, especialmente porque os combates estão ocorrendo no presente. Existem obstáculos práticos para estabelecer os números corretos e há propaganda de guerra através da qual se deve navegar eliminando as estatísticas irrealistas.

Mas, ao mesmo tempo, deve haver um limite para a incerteza. Mais uma vez, a mais superficial das buscas nos veículos habituais resultará em informações fragmentárias das quais é difícil tirar conclusões. Encontram-se números que colocam as perdas ucranianas em menos de 30 ou 40 mil, outros concebem 100 mil perdas de cada lado, muitos, ou a maioria, imaginam a Rússia perdendo mais tropas do que a Ucrânia. Pode-se duvidar desses números apenas levando em consideração o que se sabia e o que se sabe sobre as diferenças nas capacidades militares de ambos os países, mas é isso que se encontra.

Por outro lado, se optarmos por vozes alternativas (que podem ser encontradas mesmo em veículos nem sempre censurados), ouviremos números que colocam as perdas ucranianas em algo entre pelo menos 250 mil e talvez 400 mil e que colocam a taxa de mortalidade em pelo menos cinco ou sete ucranianos para cada russo.

Onde se deve acreditar que a verdade está? Esses dois cenários, um muito incerto, mas apontando para a superioridade ucraniana, e outro muito firme, enfatizando a superioridade russa, são dois mundos distintos. Qual deles é o mundo real em que vivemos?

 

Quem está vencendo

Recentemente, tanto o presidente dos Estados Unidos quanto seu secretário de Estado afirmaram que a Rússia já havia perdido a guerra e isso porque não cumpriria seu objetivo que, segundo eles, era ocupar toda a Ucrânia.

Bem, é claro que esse é o tipo de declaração forte, projetada para ter um poderoso efeito retórico. No entanto, baseia-se em pressupostos com os quais se pode discordar. Se se pode afirmar que a Rússia não tinha intenção de tomar todo o território ucraniano, então não perdeu necessariamente. E também está claro que, nessa visão da suposta derrota russa, nada diz que a Ucrânia está saindo vitoriosa. Poderia acabar esta guerra como país completamente destruído de qualquer maneira.

Portanto, a perspectiva de uma parte vitoriosa e uma perdedora deve ser procurada em outro lugar, mas falta a informação consensual. Em cada uma das perguntas que se podem fazer, há respostas opostas a serem encontradas: a contra-ofensiva está funcionando; quem avança e quem recua; quem carece de treinamento e munição; quem está sofrendo economicamente; quem está passando por uma drenagem populacional…?

Mas, devemos lembrar, essas questões dizem respeito às duas partes em conflito, Ucrânia e Rússia, como potenciais vencedores ou perdedores. Eles não nos dizem necessariamente ou automaticamente se a OTAN e/ou os Estados Unidos sairão vitoriosos após esta guerra. As declarações oficiais dos EUA acima referidas abrem caminho a interpretações que concebem a guerra como sendo entre a OTAN e os EUA, de um lado, e a Rússia (e outros) de outro, e a Ucrânia como sendo simplesmente o campo de batalha.

Seja qual for o caso, é difícil conceber a OTAN e/ou os EUA colhendo uma vitória clara de uma clara derrota da Ucrânia por uma Rússia ainda de pé.

Enquanto escrevo, pode-se sugerir que demorei muito para chegar a este assunto, e isso porque começamos a ver os primeiros sinais na grande mídia ocidental de que a derrota da Ucrânia está sendo admitida como um resultado provável e que algum apoio no Ocidente para uma paz negociada deve começar a ser reunido sem arriscar a acusação de traição.

Começa-se a ver uma mudança na imprensa (ainda fraca) e em alguns discursos oficiais. Essa pode ser uma forma de preparar a opinião pública para o que pode estar por vir: a notícia da derrota final.

*Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.


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