Por MARCIO SALGADO*
A pandemia que se alastrou em nosso território – das capitais às pequenas cidades do interior – revela-se uma afecção política que decorre da morbidez mental do presidente
Descrente do seu destino, o Brasil caminhou para essa tragédia da pandemia. Não foi sem avisos: o mundo contava os seus mortos, a ciência divulgava os protocolos para evitar a disseminação do contágio, enquanto o país aguardava os acontecimentos. O seu presidente, infectado desde sempre pelo negacionismo, aviltou a ciência e o bom senso, desdenhou da gravidade da doença. Hoje o cenário é sombrio: os leitos hospitalares estão no limite da sua capacidade, os profissionais da saúde enfrentam uma jornada estressante e milhares de famílias enlutadas enterram os seus mortos sem despedidas.
A arrogância, que é uma característica do atual governo, não permitiu que se acreditassem nos números. Fez-se de tudo para escamoteá-los, mudando o horário de divulgação e a metodologia na contagem dos mortos. Não foi suficiente. Obrigado pelas circunstâncias, o governo não teve mais como esconder a realidade. O Brasil contabiliza cerca de 50 mil mortos. Não dá para brigar contra os números.
Em Oran, a administração local teve o mesmo comportamento. Esta é uma cidade da Argélia, que o escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960) tomou como inspiração para o seu romance “A peste”, de 1947. Nele os ratos surgem nos desvãos das casas e morrem empestados nas ruas. Em seguida é a vez dos cidadãos enfrentarem a sua tragédia. A prefeitura local tenta esconder os fatos com a desculpa, que já se tornou lugar-comum, de não promover o pânico e a desordem, contudo, dia após dia, a situação se agrava, o caos predomina sobre a ordem e o terror toma conta dos seus habitantes. Diz o narrador: “A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós.”
Prêmio Nobel da Literatura de 1957, Camus é filósofo, dramaturgo e romancista. O narrador, que só ao final do romance revela a sua identidade, começa descrevendo a cidade de Oran – hoje uma das mais importantes da Argélia – e a vida dos seus cidadãos que viviam do comércio e ocupavam-se “em primeiro lugar, segundo a sua própria expressão, de fazer negócios.”
O autor fez uma longa pesquisa sobre a peste, que aparece em épocas diversas da história da humanidade, contudo, ele teve um modelo real para orientar o seu trabalho literário: a cidade de Oran sofreu uma epidemia de tifo tão intensa, durante os anos de 1941-1942, que dizimou cerca de trinta por cento da sua população.
Uma pandemia como a que experimentamos agora impõe aos seus habitantes uma dura realidade, e esta exige um constante equilíbrio psicológico para transformar um leque de possibilidades – reais ou imaginárias – em eventos deflagradores de trocas e afetos, capazes de reacender as suas condições individuais ou coletivas. A tendência natural, ao contrário, é ser capturado por sentimentos que vão da tristeza à melancolia, ou mesmo a depressão.
Além das descrições objetivas do real, a percepção de Camus é muito aguçada no sentido de desentranhar o que se passa nos corações e mentes dos indivíduos atingidos pela peste: “Nesse momento, o desmoronamento da coragem, da vontade e da paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício.”
Nesse pequeno trecho ele realça três sentimentos que desmoronam – a coragem, sem a qual tudo deságua em pequenos abismos; a vontade, pela qual nos posicionamos diante de um fato real ou puramente imaginário, e que, nesse sentido, se assemelha à liberdade; e a paciência, que exige do indivíduo o diálogo com o mundo, ainda que sem palavras, e a intuição do tempo exato para acionar a sua saída das situações de conflito.
Não é pouca coisa, mas parece o retrato do que estamos a ver e a viver durante a pandemia. As nossas liberdades sofreram um corte, a ponto de alguns alegarem o direito constitucional de ir e vir para divergir do isolamento social. Ora, onde há direitos, também há deveres. Como diz a máxima já conhecida de todos: “A liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro.”
Essas limitações exigem bom senso nas trocas com a realidade, e equilíbrio psicológico, em um cotidiano que se transmudou e permaneceu sempre o mesmo. Como bem observou Camus em sua narrativa, em tais circunstâncias, as pessoas “mais flutuavam que viviam.”
Um futuro incerto
A obra de Camus é vista como uma metáfora da dominação nazista na França ocupada, país onde ele vivia. O autor fez parte da Resistência francesa, época em que conheceu o filósofo Jean-Paul Sartre. Embora alguns o associem à filosofia existencialista, a sua produção literária é vista como uma estética do absurdo.
A peste transforma toda convivência em absurdo, na falta de sentido dos atos humanos, mesmo os que levam as melhores intenções. É assim que o médico Bernard Rieux, personagem central do romance, vê todo o seu esforço para salvar vidas resultar na contagem dos mortos. Aos poucos a peste transforma a cidade numa prisão, os que desejam deixá-la não recebem autorização para tal. Não faltam tentativas de fugas, inclusive por meios escusos. Do lado dos bons sentimentos, pode-se dizer que há sempre um amor além dos portões de uma cidade, seja nas páginas de um romance ou na realidade.
Do mesmo modo, a pandemia, além de amontoar cadáveres impede a convivência entre as pessoas. Todos se tornam invisíveis. Os que adoecem são confinados em hospitais fechados à visitação, os seus entes queridos perdem o contato pessoal. Assim como o médico e seus auxiliares, no romance de Camus, na vida real há um grande esforço das equipes de saúde para salvar vidas e ofertar dignidade aos pacientes. Os brasileiros de todos os estados têm demonstrado a sua gratidão pelo empenho desses profissionais. Contudo, o presidente, nesse momento dramático preferiu espalhar a discórdia, como tem feito no decorrer dessa crise. Agora sugeriu que as pessoas gravem imagens no interior dos hospitais e façam denúncias contra o mau uso do dinheiro público.
A pandemia que se alastrou em nosso território – das capitais às pequenas cidades do interior – revela-se uma afecção política que decorre da morbidez mental do presidente. Sem compaixão pelas vidas perdidas, ele renegou a ciência e incentivou a indisciplina da população contra o isolamento social que os pesquisadores do mundo inteiro recomendam.
A pandemia põe em xeque a nossa calma, é preciso esperar – sempre mais – e crer num futuro onde tudo é incerto.
No final do romance, Camus observa que em alguns indivíduos, “a peste tinha enraizado um ceticismo profundo de que não podiam se libertar.” Mas, entre os brasileiros, por conta da sua herança de violências e desigualdades, talvez por causa do sol, precisamos apostar na esperança.
*Marcio Salgado, jornalista e escritor, é autor do romance O filósofo do deserto (Multifoco, 2017).
Referência
CAMUS, Albert. A peste. Record, 2020. 28ª edição. Tradução: Valerie Runjanek