Por DENNIS DE OLIVEIRA*
O embate ideológico entre defesa do capital e luta contra o capital se reduz a quem defende só os ricos ou quem se preocupa com a pobreza
Em 2009, o pensador britânico Mark Fisher lança a obra Realismo capitalista com o subtítulo “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Para ele, os tempos atuais mostram que o capitalismo formou uma ontologia social na qual tudo e todos devem ser enquadrados dentro de uma perspectiva de “negócios” onde a busca pela eficiência torna-se um mantra.
Toda a fortuna crítica ao capitalismo, desde a tradição marxiana, anarquista, social-democrata e outras, é colocada como coisa do passado. Porém, o processo é mais complexo e pernicioso. As críticas às desigualdades sociais produzidas pelo regime de acumulação do capital ao invés de serem refutadas, são ressignificadas.
Luc Boltanski e Ève Chiapello no livro O novo espírito do capitalismo destacam este aspecto: a apropriação rápida das críticas por parte do capitalismo nesta fase neoliberal dentro de um parâmetro distinto. Ao invés de se pensar a estrutura do capitalismo como uma sociedade de classes, tratar os problemas no plano de relação entre indivíduos. E isto vai ao encontro diretamente a um dos pilares do capitalismo na era pós-fordista: a responsabilização individual dos problemas gerados socialmente.
Note-se que nunca se produziu e disseminou tantos dados e informações sobre as mazelas do capitalismo atual. Relatórios de instituições internacionais sobre aumento da desigualdade, destruição do meio ambiente, crescimento da miserabilidade, concentração de riquezas são temas que volta e meia povoam a mídia hegemônica, geram reportagens na televisão, produção de documentários disseminados nas plataformas de streaming.
Uma situação que lembra a discussão sobre sexualidade em Michel Foucault. Segundo o filósofo francês, nunca se falou tanto sobre sexualidade o que não significa que ela deixa de ser um dispositivo de poder. Os dispositivos de poder no sentido foucaultiano não se definem apenas pelas interdições, mas pela produção. Assim, a sexualidade não é proibida, mas utilizada para o exercício do poder. E este exercício ocorre com o seu enquadramento na grelha do discurso onde se exerce o poder.
Em uma analogia com a disseminação dos relatórios sobre as mazelas do capitalismo, observa-se que eles se enquadram dentro de dispositivos discursivos do poder de forma que se realiza esta apropriação ressignificada da crítica que o novo espírito do capitalismo de que fala Boltanski e Chiapello.
Os impactos deste processo no campo político são desastrosos. Ao se perder o horizonte da crítica estrutural ao capitalismo, o debate político se limita aos mecanismos de gestão – mais ou menos “eficientes” – no qual os problemas decorrentes da estrutura capitalista se reduzem meramente a itens da agenda (como, por exemplo, combate à pobreza, às desigualdades raciais e de gênero, etc). O embate ideológico entre defesa do capital e luta contra o capital se reduz a quem defende só os ricos ou quem se preocupa com a pobreza.
Nos países da periferia do capitalismo, o desastre ainda é maior, pois tradicionalmente, o que se chamava de esquerda era também se preocupar com a luta contra o imperialismo. O conceito de “globalização” apropriado na perspectiva gelatinosa e apartado dos processos de apropriação de riquezas no sistema mundo capitalista contribuiu para que se esvaziasse o sentido anti-imperialista de uma política de esquerda.
As ações pontuais em defesa de direitos humanos, combate a pobreza e desigualdades raciais e de gênero são submetidas a realpolitik dentro de aparatos estatais cada vez mais subsumidos às lógicas do grande capital transnacional. Assim, gera-se uma “esquerda transgênica” que combina medidas de ação afirmativa com políticas macroeconômicas de ajuste fiscal que garante a rapinagem de recursos públicos por parte do capital rentista.
No fim, todos os diagnósticos das mazelas do capitalismo repisados e divulgados incessantemente destituídos de uma análise estrutural geram a impressão de uma ação sem sujeito – da mesma forma que as chantagens no mercado especulativo que pressionam por políticas macroeconômicas mais restritivas parecem não ter sujeitos que as promovam (é o tal “mercado” que desconfia). Em uma sociedade de indivíduos (e não de classes) tudo de mal que ocorre parece ser produto da degradação do ser humano.
Ao mesmo tempo em que todos são culpados, ninguém é responsável. E toca o barco. O realismo neoliberal se realiza plenamente com as tragédias ampliando, mas que não geram indignação – no limite geram paralisia ou diria até, cinismo de quem não foi atingido por elas.
*Dennis de Oliveira é professor titular do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros, livros de Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara).
Referências
BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. S. Paulo: Martins Fontes, 2009.
FISHER, Mark. Realismo capitalista:é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1984.
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