Por VALERIO ARCARY*
Cinco anos depois do impeachment do governo Dilma Rousseff, e dois depois da posse de Jair Bolsonaro, já podemos concluir que estamos diante do perigo de uma regressão histórica?
“Embora tanto Marx quanto Engels (…) mostrassem um otimismo robusto sobre o futuro do socialismo, eles sempre foram cuidadosos, quando a questão foi colocada em seu nível mais alto, geral, abstrato, histórico, para rejeitar qualquer ideia de sequências históricas inevitáveis de organizações sociais (modos de produção). Em várias ocasiões, assinalaram que a passagem de um modo de produção a outro dependia do desfecho de lutas de classes concretas, que poderiam terminar com a vitória da classe mais progressista e revolucionária, ou com a destruição mútua da classe dominante e de seus adversários revolucionários, e um declínio prolongado da sociedade” (Ernesto Mandel).[i]
Uma regressão histórica é mais do que um processo ininterrupto de decadência econômica, ou estagnação na longa duração, de degradação social pelo desemprego crônico, ou de degeneração política pelo abuso de poder de um governo de extrema-direita liderado por um presidente neofascista com projeto bonapartista.
Uma regressão histórica é uma catástrofe civilizatória. Ela não é possível, na sociedade contemporânea, sem uma derrota social e política de longa duração da classe trabalhadora e seus aliados entre os oprimidos. Essa derrota histórica ainda não ocorreu. Depois de dois anos de mandato o perigo já foi, inclusive, muito maior. Mas não pode ser descartado, enquanto o governo de extrema-direita não for deslocado, derrotado, derrubado.
Mas, paradoxalmente, prevalecem no Brasil três grandes narrativas sobre o ciclo histórico aberto desde o fim da ditadura militar que desprezam o perigo da regressão histórica, e diminuem o papel devastador do governo Bolsonaro. Elas são construções teleológicas, ou seja, atribuem sentido ao passado em função de um desejo, escolha, preferência de futuro. Prevalecem porque respondem aos interesses de distintas alas da classe dominante, e a esquerda tem pouca independência na luta ideológica.
A primeira é aquela que empolga a extrema-direita. Trata-se de uma idealização do período do chamado “milagre brasileiro” dos anos setenta. As três décadas e meia do regime democrático-liberal seriam uma etapa de degeneração moral pela corrupção, em que o Brasil teria perdido o orgulho nacional, e a sociedade teria se pervertido pela desagregação da família patriarcal, e sucumbido às pressões subversivas socialistas. O governo Bolsonaro seria um momento de virada de resgate de um suposto “eldorado” de progresso na ordem. Dois anos foram só o início.
A segunda narrativa é aquela que entusiasma a direita neoliberal. A estabilização do regime democrático ficou cara demais. Teria exigido um aumento insustentável do custo do Estado pela expansão dos serviços públicos como a Previdência social, a universalização do acesso ao ensino básico, ou a valorização do salário mínimo. Mas condenado o país à estagnação de longa duração em função do crescimento da dívida pública na relação com o PIB, e uma carga fiscal desproporcional, inibindo investimentos pela elevação do custo Brasil. O governo de extrema-direita deveria ser um momento de recuperação da capacidade de atração de investimentos externos com um choque duro, mas incontornável de ajuste fiscal e privatizações abrindo o caminho para um “shangri-la” de crescimento competitivo, ainda que sejam condenáveis e desnecessários os excessos autoritários de Bolsonaro. Este dois anos foram turbulentos, a pandemia foi um acidente trágico, mas é possível apostar em uma recuperação dinâmica.
A terceira narrativa é aquela que tranquiliza o centro-democrático, mas influencia, também, uma parcela da esquerda moderada. Estas três décadas de regime democrático-liberal seriam uma etapa benigna em que o país conseguiu através da alternância de governos do PSDB, nos anos noventa, superar as pressões inflacionárias, e do PT, nos anos dois-mil, uma aceleração de um processo de distribuição de renda. A premissa é que existe um caminho do meio para um “nirvana” capitalista tropical de crescimento com justiça social. Esse caminho do meio repousa na força das instituições que têm demonstrado sua potência ao neutralizar Bolsonaro e podemos aguardar com tranquilidade as eleições em 2022. Elas referendarão uma via democrático-republicana que evite os extremismos neofascistas de Bolsonaro, e os extremismos de esquerda, que não terão outro desenlace senão o perigo de “ensaios” de ditaduras que se encobrem com eleições fraudadas, como aconteceu na Bolívia e fracassaram, ou na Venezuela, desde 1998, onde triunfaram. Estes dois anos foram um “vingança da história”, mas a democracia irá nos proteger de Bolsonaro em 2022, e o melhor é confiar e esperar.
Uma análise marxista não deve repousar em narrativas. Pode ser mais humilde e se colocar uma pergunta mais simples, mas não menos dramática. Cinco anos depois do impeachment do governo Dilma Rousseff, e dois anos depois da posse de Jair Bolsonaro, já podemos concluir que, depois da acumulação de tantas derrotas parciais, estamos diante do perigo de uma regressão histórica? O conceito merece um pouco de reflexão.
Em todo processo de luta de classes existem três possibilidades: um impasse prolongado, ou uma vitória de um dos dois blocos mais poderosos em que se divide a sociedade contemporânea, capital ou trabalho.
Mas na época em que vivemos, um período em que o capitalismo encontra os seus limites históricos existe, potencialmente, um quarto desenlace. Vitórias e derrotas podem ser parciais, desdobramentos progressivos ou reacionários provisórios, temporários, passageiros. Mas podem ser, também, revolucionárias ou contrarrevolucionárias de consequências duradouras, consolidadas, irreversíveis, ou de máxima gravidade.
Os limites históricos do capitalismo não são fixos ou rígidos. Eles se ampliam ou contraem em função do desfecho dos combates. Estes desenlaces se expressam em um sistema de relação social de forças. Uma derrota histórica dos trabalhadores, que teria impacto pelo intervalo de uma geração, abre novas possibilidades para a valorização do capital, ainda que na forma de desenvolvimento de forças destrutivas. Ou um declínio prolongado, uma regressão histórica.
Não é incomum que constatemos elementos crescentes de barbárie: dezenas de milhares de mortes na pandemia que poderiam ter sido evitadas, aumento da população em condições de pobreza extrema, formação de milícias neofascistas, assassinato de Marielle Franco e ameaças contra lideranças populares, expansão das queimadas na Amazônia, invasão de terras indígenas por garimpeiros, proliferação de chacinas etc.
O tema das regressões históricas sempre foi caro à tradição socialista. A história não tem uma direção. A disjuntiva socialismo ou barbárie, mais do que um slogan, foi um prognóstico, ainda que, frequentemente, negligenciado. O pulsar dos ritmos históricos foi, nas longas durações, em grande medida, irregular, pleno de descontinuidades, muito acidentado por verdadeiras fraturas de tempo, perigosos abismos em que o processo evolutivo parece mergulhar, bloqueando prometedoras possibilidades que estavam latentes, mas foram, dramaticamente, abortadas[ii].
Na história existiram, se consideramos um alto grau de abstração, transições de tipo “revolucionário” e transições de tipo “catastrófico”. Uma passagem histórica pode ser caracterizada como revolucionária quando é impulsionada por uma classe social que, na defesa dos seus interesses, abre uma época de maior prosperidade econômico-social, como foi a transição do feudalismo ao capitalismo na Europa. Uma passagem pode ser definida como catastrófica quando o desmoronamento da ordem social abre uma regressão histórica.
O final da Idade do Bronze no mediterrâneo oriental, entre os séculos XII e IX A.C., abriu uma “idade das trevas” com o desmoronamento do império minoico e da Grécia micênica, quando durante séculos se perdeu o domínio da escrita. No Mediterrâneo ocidental, apesar da longa decadência do império romano, não ocorreu uma transição revolucionária impulsionada pelo protagonismo da massa de escravos. E o império veio finalmente a sucumbir sob a pressão das grandes migrações germânicas[iii]. Entre os séculos V e VIII o mundo europeu regrediu: redução demográfica abrupta, diminuição das terras aráveis, suspensão das rotas comerciais, guerras e pilhagens crônicas.
O significado da Segunda Guerra Mundial tem, também, importância para compreender o sentido do conceito de regressão histórica. O triunfo do nazi-fascismo teria sido a vitória da barbárie. Ela foi a mais trágica e monstruosa guerra da história. O seu desenlace definiu a segunda metade do século XX. De um ponto de vista marxista não pode ser resumida a uma disputa inter-imperialista pela hegemonia no mundo, ou pelo controle do mercado mundial, embora tenha sido isso, também. Um enfoque, essencialmente, economicista para explicá-la ignora o mais importante. Não só em função da invasão alemã da URSS em 1941, e a ameaça de restauração capitalista e colonização que ela preparava. Mas porque não se deve diminuir a importância que teve o nazi-fascismo como expressão da contrarrevolução contemporânea.
O conceito de regressão histórico pode ser útil, portanto, em escala histórica, na dimensão internacional, mas, também, na dimensão nacional. Na história do Brasil podemos considerar e refletir sobre várias situações em que o desenlace dos conflitos sociais e políticos foram regressivos.
A derrota dos “paulistas” diante das forças lideradas pelo império português, na guerra dos emboabas do início do XVIII pelo controle do ouro nas Minas Gerais, interrompeu a possibilidade de um processo de acumulação de capital “interno” que favoreceria uma aceleração histórica da luta pela emancipação da colônia. A derrota da Conjuração mineira, também, bloqueou uma passagem revolucionária para a independência que criaria melhores condições de luta pelo fim menos tardio da escravidão. O massacre de Canudos pela República Velha, a maior guerra camponesa do século XIX, criou obstáculos de longa duração para a luta pela reforma agrária.
O desenlace da luta de resistência a Bolsonaro, quando elevado em perspectiva histórica, tem este significado, porque estamos diante do perigo de uma regressão histórica. Só a disposição revolucionária de luta pode derrotar o perigo contrarrevolucionário, e abrir o caminho para um governo de esquerda. É possível.
E se Bolsonaro cair? Se vencermos estaremos melhor. A luta continua, e improvisamos.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).
Notas
[i] MANDEL, Ernest. El capital: cien años de controversias en torno a la obra de Karl Marx. Trad. Adriana Sandoval et alli, Mexido, Siglo Xxi, 1985. p. 232 .
[ii] Braudel apresenta uma surpreendente hipótese sobre as relações das crises prolongadas e as mudanças climáticas, uma hipótese instigante de interpretação. A regressão generalizada do século XIV se explicaria em primeiro lugar pela fragilidade do nível das forças produtivas diante de uma catástrofe natural, o arrefecimento global, gerando uma crise generalizada de subprodução, e menos pelo bloqueio que as relações de produção feudais representavam. Braudel sugere que no século XVII, as condições de vida da maioria da população européia, considerando-se alimentação, vestuário, habitação teria retrocedido para um nível inferior ao que as massas camponesas usufruíam no auge da idade média entre os séculos XI e XIII, o que nos oferece uma nova luz sobre as dores do parto de uma transição que exigiu uma acumulação capitalista primitive impulsionada pela conquista da África e das Américas. BRAUDEL, Fernand, Civilização Material, Economia e Capitalismo, Séculos XV-XVIII, volume 1, As estruturas do Cotidiano, Martins Fontes, São Paulo, 1997, p.21/34/36
[iii] Entre os processos mais inverossímeis da história se destaca o efêmero reino dos Vândalos em Cartago. Depois de vagarem pelo sul da Europa durante alguns anos dedicados ao saque e à rapina, como outras tribos germânicas, os Vândalos cruzaram o estreito de Gibraltar e fixaram-se no norte de África onde impuseram o seu domínio feroz, escravizando impiedosamente os conquistados. Foram processos como esse, que levaram a maioria dos historiadores marxistas a considerarem que as revoltas de escravos não eram portadoras de qualquer projeto de reorganização da produção econômico-social que fosse muito diferente dos limites históricos do escravismo no Mediterrâneo. O tema das grandes transições históricas, como se sabe, sempre atraiu a atenção dos historiadores marxistas. Na sua maioria concentraram o seu foco de pesquisa na passagem do feudalismo ao capitalismo, mas alguns se interessaram, também, com a mesma paixão, pelo colapso do mundo antigo. Buscavam compreender as condições objetivas desses momentos únicos da história que são as mudanças dos modos de produção. Entre os inúmeros estudos sobre a questão, merecem destaque os dois trabalhos de Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista, pela original articulação das análises das lutas de classes com as outras causalidades, aplicando a esses períodos os recursos de uma compreensão da história como um desenvolvimento desigual e combinado.