Riscos sobrepostos

Imagem: Tara Winstead
image_pdf

Por EUGÊNIO BUCCI*

Se os processos decisórios das sociedades democráticas forem abduzidos pela ignorância fabricada por Inteligência Artificial, a humanidade estará seriamente ameaçada

No final da semana passada, tivemos mais uma notícia sobre o uso sombrio de tecnologias luminosas. Desta vez, uma quadrilha usou ferramentas de deep fake para dar um golpe milionário, que foi muito bem-sucedido. Deep fake, você bem sabe, é o nome que se dá esses vídeos adulterados que parecem tão genuínos como a fala metálica dos âncoras do Jornal Nacional. São vídeos fraudados, mas tão primorosamente fraudados, tão cristalinos, que tornam verossímeis, fidedignas, perfeitas e irrefutáveis imagens de fatos que jamais aconteceram.

Estão em toda parte. Na telinha do celular, celebridades dizem frases que não pronunciaram no mundo real, isso sem falar em figuras públicas estrelando meneios orgiásticos que – feliz ou infelizmente – nunca existiram de verdade. Pois o que sucedeu agora é que os mesmos recursos de ilusionismo convenceram um funcionário do setor financeiro de uma multinacional em Hong Kong que o chefe dele, por teleconferência, ordenava a transferência imediata de 25,6 milhões de dólares para uma conta desconhecida. O sujeito obedeceu, a fortuna se escafedeu e a polícia local corre atrás do prejuízo e dos larápios. Consta que já foram feitas algumas prisões.

Você talvez ache que isso é pouco. Talvez diga não há nada de surpreendente num crime high tech e que desde que o mundo é imundo o malfeito requisita os préstimos de inovações, seja um caco de pedra lascada, seja o curare, seja a máquina de escrever ou, mais presentemente, o smartphone. Mesmo assim, seria prudente examinarmos outro episódio, este um pouco mais intrigante.

Em dezembro, um robô agrediu um engenheiro na linha de montagem de uma das instalações da Tesla, nos Estados Unidos. A máquina chegou a cravar as garras de aço no braço do incauto ser humano. As explicações vieram de viés, de má vontade e, até agora, pairam dúvidas sobre o que se passou e como. O que houve ali? Foi uma falha de programação? Se a hipótese for verdadeira, o monstrengo lubrificado não estava a serviço de um criminoso sem escrúpulos, mas teria agido por sua conta, como se tivesse livre arbítrio, ou, no mínimo, uma arbitrariedade insana. Isso, de fato, é mais intrigante.

Imagine agora uma combinação, ou uma sobreposição, entre a primeira e a segunda notícia. Imagine um robô virtual (um bot, como dizem) que comande a confecção de imagens artificiais que satisfaçam a curiosidades sequiosas da plateia. Às vezes, esse ente imaterial trabalharia sob os comandos de seres supostamente humanos.

Outras vezes, porém, graças aos feitos admiráveis da automatização, o nosso ente cibernético seria capaz de, com autonomia, urdir proezas arrebatadoras, mais ou menos como o algoritmo do Spotify, com seus automatismos bem treinados, consegue escolher a música que você vai ouvir na sequência, e acerta. Imagine, então, um bot que manipule a deep fake para agradar as retinas perversas das multidões mais raivosas, que se deliciam com o padecimento daqueles a quem dedicam o seu ódio mais peçonhento e que, em nome de seu ódio incondicional, tomam por verdade definitiva todo ultraje que confirme seus preconceitos e suas taras.

Imaginou? Agora vá mais longe. É preciso. O Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) foi mais longe. Em janeiro, o Fórum Econômico Mundial apontou a desinformação e as ferramentas para disseminá-la como o maior risco que a humanidade enfrentará nos próximos dois anos. Esse risco é real, insidioso e ruge logo aí, na esquina da sua casa. Em 2024, mais de dois bilhões de eleitores serão chamados a decidir os destinos de 58 países, entre eles Rússia, México, Índia e Estados Unidos. Metade do planeta irá às urnas somente em 2024, o maior ano eleitoral de todos os tempos, segundo as estatísticas. Se a mentira industrializada continuar a fazer os estragos que já faz, sobrevirão desastres cumulativos.

Não há mais como não ver. Se os processos decisórios das sociedades democráticas forem abduzidos pela ignorância fabricada por Inteligência Artificial, a humanidade estará, sim, seriamente ameaçada. O Fórum Mundial tem razão, não dá para negar. Por enquanto, é verdade, estamos falando apenas de um risco, mas esse risco não tem nada de uma “gripezinha”. É pra valer. Se a desinformação triunfar, a democracia vai gerar o seu oposto e será tragada por ele. E não nos faltam ensaios práticos que comprovam a iminência do pior cenário. Nos nossos dias, tenho insistido nisso, desinformação é poder.

Circuitos eletrônicos e mídias digitais podem servir para o bem? Sim, é óbvio que podem. Estão aí a contabilidade das Campanhas da Fraternidade, as consultas virtuais da telemedicina, os modelos ultracomplexos de previsão do tempo. Toda técnica pode servir a boas causas. Mas, desgovernada ou entregue aos caprichos do capital, a técnica sem lei vai nos levar à pior das ribanceiras. Pensadores como Günther Anders, que entenderam as inversões do Iluminismo, pressentiram o semblante do apocalipse produzido pela técnica. Mas o que vem vindo aí, se não fizermos nada, é ainda mais assombroso.

*Eugênio Bucci é  professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES