Rupturas e desdobramentos da Semana de Arte Moderna

image_pdf

Por JULIAN RODRIGUES*

Comentário sobre o livro de Maria Lúcia Fernandes no mês em que a Semana faz 104 anos

Ai, que preguicinha boa! Imagina ter que sair de uma gostosa rede para aprender a tocar um tal de alaúde (já viram um?). E sair escrevendo manifestos tão inteligentes quanto pretensiosos – com a quase absoluta certeza de que, a partir de então, nada mais haveria de ser como antes. Tempos velozes, futuristas.

Pensem na ousadia iconoclasta que provocou um bafão de dimensões épicas – em pleno Theatro Municipal de São Paulo. Sim, o “h” permanece lá até hoje (quem duvidar é só ir ao site oficial). O espetacular prédio (que mimetiza teatros parisienses) tornar-se-ia motivo de orgulho para os caipiras aristocratas/cafeicultores – futuros industriais de uma cidade que se expandia rapidamente. 

São Paulo possuía no início da década de 1920 algo como 600 mil habitantes, 2% de um universo de 30 milhões. Para efeito de comparação, entre os cerca dos atuais 203 milhões de brasileiros – 11,5 mi, quase 6%, moram em Sampa. Mais ou menos o dobro da atual população do Rio de Janeiro. Há um século, nossa então capital tinha 1,2 mi de habitantes. Era o epicentro político e cultural do país. Basicamente São Paulo era uma província pretensiosa que rapidamente estava a enriquecer seus fazendeiros em impressionante velocidade. 

Essa pequena digressão visa ressaltar o inusitado. Por que o Modernismo explode aqui em São Paulo e não no Rio de Janeiro – que houvera passado por uma grande reforma urbanística, conduzida por Pereira Passos, a qual demoliu cortiços, expulsou os pobres para longe do centro, abriu largas avenidas e muito mais (o modelo foi a radical reforma parisiense conduzida por Haussmann em fins do século XIX). Aliás, sempre me impressionou como o centro do Rio – e de Buenos Aires – nos lembram imediatamente Paris.

A Semana escandalosa ainda tem algo a nos dizer?

O sensaboroso Graça Aranha, então consagrado escritor, foi o padrinho da Semana de 1922. Nosso mestre Alfredo Bosi em seu canônico História Concisa conta que o jornalão dos Mesquita noticiou e saudou efusivamente o evento, destacando a importância do Municipal assistir espetáculos de representantes “das mais modernas correntes artísticas”.

Isso tudo é muito conhecido e estudado (ou não!) nos bancos escolares do ensino médio às pós-graduações. É inescapável a constatação de que o movimento modernista deu “régua e compasso” para parte significativamente não só da literatura como das artes como um todo. Do tropicalismo de Caetano ao teatro de Zé Celso: música, artes plásticas, arquitetura e até mesmo a indústria cultural. Há cem anos o modernismo é paradigma que nos estrutura e ajuda a construir nossa identidade como país. 

Todos esses temas e muitos outros estão presentes no mais recente livro da professoraMaria Lúcia Fernandes: Rupturas e desdobramentos – reverberações críticas da Semana de Arte Moderna, no publicado ano passado.

As 274 páginas trazem dez ensaios organizados em duas seções: i. A Semana e a busca da identidade brasileira; ii. Reverberações críticas da Semana. 

Eu tive o prazer (e o privilégio) de ser aluno de Maria Lúcia no curso de Letras na Universidade Federal de Viçosa, em meados dos anos 1990 – hoje Fernandes é professora livre docente na UNESP, em Araraquara.

Fernandes sustenta que a Semana não foi imprescindível para a constituição do Modernismo. Em ótima e sarcástica tirada, chega a classificar as apresentações no Municipal como um “happening dadaísta” (os mais jovens chamariam de lacração).

O que mais gostei foi que o conjunto de ensaios dialogam estruturalmente entre si. Na primeira metade do livro, Maria Lúcia trata fundamentalmente dos founding fathers, tantas vezes descritos como antagônicos, quando no fundo são dois polos de um mesmo movimento inicial.

Tímido, apolíneo, professor de classe média, Mário (impressionantemente erudito) é uma parte do “cânone”. Dionisíaco, espalhafatoso e burguês Oswald é outra. Maria Lúcia escreve sobre ambos.  

O homem que criou um herói sem nenhum caráter tinha a ambição intelectual de buscar “uma expressão estética brasileira” e “incorporar a fala impura de sua [nossa] gente”. 

Já o marido de Pagu, seu Oswald, engajou-se – assim como Patrícia – política e ideologicamente: ambos foram comunistas. Oswald de Andrade nos legou uma obra esteticamente experimentalista, “misturando poesia e prosa”. Manejou técnicas como recorte e colagem, trazendo elementos do futurismo europeu para nossa literatura.

Maria Lúcia,drummondianamente, não se afasta do tempo presente. Dá as mãos às mulheres, negros e indígenas ao tratar de autores e autoras contemporâneas como Cuti (Luiz Silva) escritor negro; Denilson Baniwa (artista indígena) e às poetas Angélica Freitas e Luiza Romão. Confesso que senti falta de uma reflexão sobre a produção contemporânea de autores LGBTI (ou que escrevam dando ênfase à diversidade sexual e de gênero).

À guisa de conclusão, diria que o livro é rigoroso – mas didático. Conversa com os especialistas, estudantes, jornalistas, mas pode ser degustado por todas as pessoas que curtem nossa literatura, ainda que talvez ainda seja mesmo um “galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas”como o mestre dos magos, ícone mor, um paradigma vivo, a definiu azedamento há algumas décadas.

*Julian Rodrigues, jornalista e professor, ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos, mestre em ciências humanas e sociais (UFABC) e doutorando em América Latina (Prolam/USP).

Referência


Maria Lúcia Outeiro Fernandes. Rupturas e desdobramentos – reverberações críticas da Semana de Arte Moderna (Pontes Editores). [https://amzn.to/3UsrGAt]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES