Lembram o que fizeram no verão passado?

Imagem_ColeraAlegria
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FRANCISCO FOOT HARDMAN

A comparação com as Diretas-Já de 1984, no caso do “Estamos juntos” é presunçosa e descontextualizada. Lembra mais uma valsa nostálgica de quem não quer assumir responsabilidade pelos descalabros cometidos

Está bem. Estamos todos juntos. Vamos unificar e fortalecer um movimento para remover, o quanto antes, o governo miliciano neofascista de Bolsonaro. Não é nenhuma ideologia que assim postula. É um imperativo de vida. Vidas que o desgoverno atual em seus descaminhos da morte, ajudou e ajuda a cada dia e hora, a ceifar, nos pondo no alto do inglório ranking mundial de óbitos. Parcela grande deles que poderia ter sido evitada, é que o evidenciam todos os estudos científicos sérios. E, nisso, não há que tergiversar, porque se trata de emergência sanitária a que toda cidadania e todo agente público deve ter como prioridade ineludível.

Vidas que o fundamentalismo neoliberal do “Posto Ipiranga” e sua retórica vazia jogou e joga nas calendas do desemprego recordista e da depressão que já se anuncia a mais abissal. Estamos juntos, sim, os que apostam em outros modos possíveis de organizar a vida econômica, com priorização total, não aos dinheiros mas às pessoas comuns de cujo trabalho depende tudo que somos, e enfrentar, com cara e coragem, o colapso socioambiental que é planetário, mas é brasileiro, amazônico, e cujo destino está nas mãos desta geração.

Vamos defender o que resta da Constituição de 1988, antes que seja toda rasgada. E as manifestações crescentes de setores populares de torcidas futebolísticas organizadas, antifascistas e antirracistas, não têm nada de baderna, senhor vice-presidente Gal. Mourão, porque o cerne da baderna está no presidente que calamitosamente chefia o seu governo, com seus rompantes golpistas e provocadores, com os anjos do mal que o cercam armados e fazem algazarras ameaçadoras aos poderes da República. Com o gabinete do ódio montado às escancaras desde a campanha de 2018, alojado no Planalto, destilando a desordem da irrazão e da violência contra todas e todos que não juram fidelidade à “família”. Quem é o astro central da baderna nacional, neste instante? Quem faz a imagem internacional do Brasil disparar rumo ao poço? O cerne da baderna está na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que se pregou abertamente o armamento do “povo” (leia-se: milícias) para defender um presidente violento e sua família. Nas barbas dos militares que ali assentavam cargo. Será que a “liberdade de expressão” abriga o incitamento claro ao ataque a governadores, prefeitos, STF, Congresso? Pregar abertamente o golpe é um ato de “livre expressão”?

Contra essas aberrações de típica filiação fascista, estamos juntos. É preciso unir forças nas ruas, dos movimentos populares, sociais, sindicais, às ações concretas que se fazem ver no STF, Congresso, TSE. É preciso encarar essa luta com a urgência que o caráter destrutivo do atual desgoverno contra a Nação dá mostras, ao país e ao mundo, todo santo dia. Sim, quem sabe a inspiração dos atuais combates de rua nas principais cidades norte-americanas, e já da Europa, contra o racismo atávico da polícia de lá (qualquer semelhança com os negros mortos diariamente no Brasil não é mera coincidência) seja o elo de solidariedade que faltava à retomada das mobilizações massivas em nosso país.

O ar que faltou na asfixia assassina de George Floyd é a centelha do grito de milhões, inclusive no Brasil. Essa é a democracia que se faz na luta. Essa luta que mostra como são ainda precárias as tais instituições democráticas nos dois maiores países escravistas da história moderna, EUA e Brasil. Como os tão decantados “pesos e contrapesos” estão com sua balança bichada, de há muito, e pendente, se sabe bem, para qual lado.

Estamos juntos, sim. Mas é forçoso lembrar aos democratas do pau oco, e suas grandes mídias insinuantes, que não há democracia digna do nome num país que convive, há mais de dois anos, com o não esclarecimento peremptório acerca dos mandantes da morte da vereadora negra Marielle Franco. Que convive há anos, com o descarado partidarismo e politização dos Intocáveis de Curitiba, chefiados pelo Eliot Ness de Maringá, Sérgio Moro, mais vocacionado, em seu arrivismo oportunista incontido, a ser ajudante de ordens de Bolsonaro, em várias medidas de cunho autoritário, até que seu apetite de poder o levou a ser apeado pelo chefe. Que posterga, como questão menor, a anulação das condenações do ex-presidente Lula, assim como a devolução de seus direitos políticos cassados. Que elide o claro golpismo na ação orquestrada – FHC, Aécio, Serra e Aloísio à frente, entre outros – que levou ao impeachment da presidente Dilma, anulando a vontade manifesta de 54 milhões de eleitores. Que corroborou, em 2018, a estrondosa manipulação e financiamento ilegais da máquina de fake-news responsável em grande parte pela vitória de Bolsonaro contra Haddad.

Que democracia é esta? A que vai da Barão de Limeira até Higienópolis? Da Marginal do Limão, no máximo Lapa, até Consolação? Do Jardim Botânico, no Rio, à avenida Berrini, em São Paulo, voando pelo alto? Que drones do mau jornalismo fazem essa cobertura chantilly, melosa com Huck e Moro, e preconceituosa, mais ou menos disfarçada, com os não nascidos em berço esplêndido?

A comparação com as Diretas-Já de 1984, no caso do “Estamos juntos” é presunçosa e descontextualizada. Lembra mais uma valsa nostálgica de quem não quer assumir responsabilidade pelos descalabros cometidos, a começar do veto ao uso da expressão “extrema-direita” para caracterizar o perfil de Bolsonaro, que ascendeu, assim, rumo à sua articulação de tipo fascista, posando de mais um direitista meio aloprado. Parece que esse erro de análise, que nos está custando caríssimo, foi encampado, no geral, pelos militares que o rondam como servos fiéis.

Porque, por mais assinaturas e petições que se abram, o momento trágico, do Brasil e do mundo, exige: se é para se construir um novo pacto democrático, ele não pode ser novamente um acordão das elites – como bem lembraram, nesses dias, entre outros, Roberto Requião e Roberto Amaral[1] — e, para isso, o povo brasileiro, em sua absoluta maioria (certamente maior do que 70%), de todas as regiões do país, deve ser convocado, com os cuidados que o momento exige, a participar efetivamente dessa reconstrução do país.

Sirvo-me livremente de imagens do já antológico Manifesto da Antropofagia Periférica, do poeta mineiro-paulista Sérgio Vaz, para lembrar que só pode haver esperança de um Brasil renascido das cinzas se se assumir a centralidade de todas as periferias neste processo, essa sim a verdadeira unidade que se constrói “pelo amor, pela dor, pela cor”. É só dessa liga que se pode reafirmar o que na história brasileira tem sido reiteradamente sequestrado. E, aqui, com o poeta, o que pode com efeito fazer a diferença: “Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros”.

*Francisco Foot Hardman é professor de teoria e história literária do IEL da Unicamp e, atualmente, professor visitante da Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim (PKU).

[1] Roberto Requião, “Sempre a mesma coisa, a mesma merda, sempre”, 2-6–2020, site Brasil247; Roberto Amaral, “A casa grande já teme o caos”, 2-6-2020, site www.ramaral.org.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Rubens Pinto Lyra Gabriel Cohn Benicio Viero Schmidt Afrânio Catani Alexandre de Freitas Barbosa Osvaldo Coggiola Marilena Chauí Henri Acselrad Luiz Marques Alexandre de Lima Castro Tranjan Paulo Fernandes Silveira Julian Rodrigues Érico Andrade Andrés del Río Everaldo de Oliveira Andrade Armando Boito Rafael R. Ioris Marcos Silva Antônio Sales Rios Neto Rodrigo de Faria Eduardo Borges Samuel Kilsztajn João Feres Júnior Elias Jabbour Thomas Piketty Paulo Capel Narvai Vanderlei Tenório Paulo Nogueira Batista Jr Tadeu Valadares Jorge Luiz Souto Maior Valerio Arcary José Geraldo Couto João Sette Whitaker Ferreira Luiz Roberto Alves Leonardo Boff Lincoln Secco Juarez Guimarães Lucas Fiaschetti Estevez Ari Marcelo Solon Eugênio Trivinho Antonio Martins Marjorie C. Marona Bruno Machado Gilberto Lopes Bento Prado Jr. Matheus Silveira de Souza José Costa Júnior Francisco Fernandes Ladeira Flávio Aguiar Chico Alencar Andrew Korybko Igor Felippe Santos Celso Favaretto Kátia Gerab Baggio Caio Bugiato Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Renato Martins João Paulo Ayub Fonseca Salem Nasser Carlos Tautz Fernão Pessoa Ramos José Dirceu Tarso Genro Gerson Almeida André Márcio Neves Soares José Micaelson Lacerda Morais Ladislau Dowbor Francisco Pereira de Farias Eleutério F. S. Prado Jean Pierre Chauvin Ricardo Fabbrini Alysson Leandro Mascaro Lorenzo Vitral João Adolfo Hansen Eleonora Albano Luciano Nascimento Walnice Nogueira Galvão Maria Rita Kehl Priscila Figueiredo Ricardo Abramovay Manuel Domingos Neto Manchetômetro Luiz Eduardo Soares Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira Slavoj Žižek Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Michael Löwy Leonardo Avritzer Eugênio Bucci Leonardo Sacramento Paulo Sérgio Pinheiro José Luís Fiori Ronald León Núñez Annateresa Fabris Francisco de Oliveira Barros Júnior João Lanari Bo Ricardo Antunes Luis Felipe Miguel Marcelo Guimarães Lima Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Machado Moita Neto Luís Fernando Vitagliano Airton Paschoa Daniel Afonso da Silva Flávio R. Kothe Daniel Brazil Ricardo Musse Vinício Carrilho Martinez Michel Goulart da Silva Fernando Nogueira da Costa João Carlos Loebens Marcelo Módolo Antonino Infranca Bruno Fabricio Alcebino da Silva Dennis Oliveira Anselm Jappe Luiz Bernardo Pericás André Singer Jorge Branco Paulo Martins Otaviano Helene Remy José Fontana Boaventura de Sousa Santos João Carlos Salles Marilia Pacheco Fiorillo Yuri Martins-Fontes Marcus Ianoni Mariarosaria Fabris Leda Maria Paulani Claudio Katz Michael Roberts Denilson Cordeiro Mário Maestri Carla Teixeira Milton Pinheiro Eliziário Andrade Liszt Vieira Sergio Amadeu da Silveira Bernardo Ricupero Daniel Costa Gilberto Maringoni Atilio A. Boron Ronaldo Tadeu de Souza Dênis de Moraes Vladimir Safatle Sandra Bitencourt Marcos Aurélio da Silva Luiz Werneck Vianna Renato Dagnino Berenice Bento Jean Marc Von Der Weid Heraldo Campos Valerio Arcary Celso Frederico Chico Whitaker Henry Burnett Fábio Konder Comparato José Raimundo Trindade Ronald Rocha

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada