Segurança de Estado e segurança nacional

Imagem: Ekaterina Bolovtsova
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Por TARSO GENRO*

Os novos sentidos da segurança pública na ordem global.

“Entre os dois mundos, a trégua em que não estamos”
(Pier Paolo Pasolini, As cinzas de Gramsci).

O “estado de segurança” pública de um Estado de Direito, formalmente organizado, é aquela situação material em que as suas instituições formais são aptas para afastar “qualquer perigo” ou instabilidade grave, operando dentro das suas instituições legítimas e nas suas formas legais. O sentido maior do “estado de segurança” numa democracia é a defesa da vida, dos direitos da cidadania, da sanidade ambiental e da integridade territorial, e em cuja capacidade política, está contida a possibilidade também para decidir sobre a exceção.

A Segurança do Estado, no Estado Social Constitucional, portanto, deve compor numa visão específica da “segurança da nação”, cujos objetivos, vinculam a política de Segurança Nacional à democracia constitucional, com os objetivos expressos no Preâmbulo da Constituição.

Os parâmetros que envolvem estas relações, todavia, não são mais os mesmos do Século passado, posto que os seres humanos que formam a comunidade política da nação, tanto estão mais próximos, como mais distantes entre si; tanto estão mais humilhados quanto oprimidos; tanto são mais solidários, como mais isolados nas suas prisões voluntárias das redes sociais. A sociedade em rede da nação moderna tanto é uma sociedade de socialização das virtudes, como da distribuição das crises e das perversões humanas, produzidas nos fluxos do movimento sem freios do capital financeiro globalizado e da velocidade da informação em que o mundo é local e o local é o mundo, onde todos estão sempre no centro, independentemente onde estejam geograficamente: parodiando Jorge Luis Borges, no deserto das utopias sempre se está no “centro”.

Socorro-me do pensamento do mestre Luigi Ferrajoli, no seu Razões Jurídicas do Pacifismo,[i] onde ele organiza as preliminares da sua proposta de uma “Constituição da Terra”. Faço-o para sustentar que a Segurança Pública, com base no Preâmbulo da Constituição – hoje – deve ser redefinida face à nova situação global. Ela é, mais do que antes, parte estrutural da Segurança do Estado, cujas qualidades ou negatividades geram- mais do que tudo- os efeitos mais contundentes na vida cotidiana da comunidade da nação.

É na segurança para viver em público que estão os vínculos da vida comum, mais ou menos humanizados, bem como estão nas lacunas mais evidentes da relação complexa entre a moral e o direito, que transita para a vida diária na segurança. É através do Estado polícia e do Estado controle social que a Segurança Pública, como política pública integrada como Segurança do Estado, revela e apreende tanto as grandezas do direito posto na Constituição, como também pode mostrar o lado perverso da força sem lei.

A questão da segurança universal como conjunto abstrato de situações globais abre –neste contexto– um novo problema de fundo, a ser resolvido nos diversos níveis da intervenção jurídica e política do Estado para ‘afastar qualquer perigo”. Os diversos níveis da segurança não estão mais separados da Segurança do Estado, cujas instituições se expressam não só como “norma”, mas igualmente como integrantes de uma “conduta” previsível no meio social. Quando Ferrajoli se expressou sobre as esperanças de paz no planeta advertiu sobre isso: “o que ocorreu sem dúvida é certamente o contrário. No novo mundo multipolar, (…) foram ignorados e inclusive agravados os grandes problemas do planeta (…) (que assim) acumularam contra o Ocidente suas ameaças à paz mundial e à segurança, que a nossa própria miopia contribuiu para gerar. ”

O sentido da Segurança Pública, assim, deixa de ser algo a ser tratado isoladamente, visto só de dentro do território, pois a sua problemática não é mais predominantemente paroquial, mas vem integralmente por dentro da nova ordem global. Vem nos fluxos financeiros, informativos, culturais e de armas potentes, vem na exploração da biodiversidade e na apropriação ilegal das biodiversidades internas, nos processos ilegais do tráfico de drogas, de pessoas e bens, que se que se originam –tanto dentro como fora da economia formal– dentro e fora do território, do mundo para qualquer bairro e vem de qualquer bairro para todo o mundo. Este movimento – interno e externo – é promovido por novos interesses, tanto legais como ilegais, conjugados na nova ordem geopolítica, nos novos e diversos pontos fragmentários de poder político, ao mesmo tempo que são próximos e distantes dos novos centros de poder real.

No capítulo III do livro de Rogério Gesta Leal,[ii] Matrizes de Políticas de Segurança Pública no Brasil, está dito: “é preciso criar condições para que se universalize a expectativa de que as leis serão cumpridas e os direitos serão respeitados, sobretudo os fundamentais, como o direito à vida, (…) pois não há direito nem legalidade sem garantias de que as normas serão aplicadas no limite, pelo uso comedido da força, (…) para que se atualizem as mencionadas garantias, com efetividade e resultados.” A democracia liberal só sobrevive, assim, como afirmação, não como uma negação da ideia iluminista de uma sociedade baseada na razão e na igualdade, na forma do Estado Social Constitucional: só nele a democracia, com um sistema de segurança pública reformado, pode se impor sobre a ilusão de segurança imediata e arbitraria das velhas ordens totalitárias.

A verdade é que nenhum governo poderá se manter legítimo, no atual contexto global, sem que coloque na sua agenda uma estratégia coerente de três passos, com vistas a uma “segurança pública” cidadã: (i) a ideia de segurança pública, deve ser pensada no momento universal – planetário – ora vivido, pela integração da ideia democrática com a “Segurança do Estado” (democrático constitucional), conectada com a “Segurança Nacional” (fundada no Estado de Direito); (ii) da atual concepção de segurança pública, burocrático-weberiana, depende a produção de uma visão nova da “segurança pública”, para mais além da visão tradicional da função-máquina weberiana; (iii) compreender que há uma disputa permanente, virtual e real – ideológica e militar– pelo controle dos territórios mais ricos em bens naturais que se apoia no “keynesianismo militar” (da “era de Reagan”), pelo qual a aceleração da indústria armamentista nos países ricos é uma estratégia econômica de defesa da economia nacional destes e de um modo de fazer as suas guerras de interesse geopolítico.

Em artigo publicado em maio de 2019 escrevi o seguinte sobre situação da África do Sul no século passado onde esta ideia integrada de segurança servia a finalidades racistas e totalitárias: “Nelson Mandela esteve preso por 27 anos, primeiro na Prisão de Robben Island, depois dos 6 anos na Prisão de Pollmoore. Finalmente, (…) foi para o complexo de Victor Vester – de 88 a 90 –já assessorado por um Oficial do Exército Sul-africano. Esta última etapa do seu martírio fechou o circuito (…) do comando político e das negociações com o Governo racista, que estavam em ascensão desde a melhoria das suas condições carcerárias, quando Mandela foi retirado da Ilha de Robben.”[iii]

A situação histórica referida, que iniciara, no “apartheid” social e racial – promovido dentro da “ordem jurídica” – fazia uma fusão das questões da Segurança do Estado com as instituições formais da Segurança Nacional, que proporcionaram a exclusão da maioria negra da ordem vigente e assim moldaram uma concepção de Segurança Pública expandida, para apontar em qualquer “desordem” social (ou crimes comuns) – cometidos dentro das comunidades da maioria negra – ameaças concretas à segurança do “Estado de direito” racista e da ideia de nação racista, “legalmente” instituída.

A transição de um criminoso comum de “alta periculosidade” (“terrorista”) para a condição de Chefe de Estado só foi possível quando algo muito forte abate-se sobre o Estado concreto, numa uma fusão hoje historicamente improvável: nela a ordem que morria já continha dentro dela uma outra ordem, que já se tornara hegemônica sem dominar plenamente o Estado. É o que não ocorre hoje na transição a ser feita política e normativamente do Estado do direito moderno para o Estado social constitucional.

Cabe lembrar os estudos de Theodor Adorno sobre o radicalismo de direita, que está presente nos períodos modernos mais narcísicos quando a dissolução das utopias se transforma em “eras de expectativas decrescentes” através de uma “franja de lunáticos” que, em condições sociais dadas, tende a se ampliar. Em estudos posteriores, numa palestra de 1967, o filósofo já constata que esses grupos não são somente compostos por “lunáticos”, mas igualmente por “antecipadores” de um “estado de alma generalizado”, que toma forma de um “desejo coletivo do apocalipse”.[iv] É a emergência do arquétipo cultural da XX.

A ideia que o direito, nas democracias constitucionais – em qualquer país centrado em instituições democrático-liberais – fazem de si mesmas, é uma ideia-chave para verificar a efetividade dos valores contidos nas suas normas superiores. A visão do liberalismo constitucional americano sobre a proteção do cidadão “em face da arbitrariedade estatal” – trazida para a realidade sociológica do convívio com “outros iguais”- adquire no “direito fundamental” à “segurança pública” coletiva, uma ideia fundante[v], pois ela, a verdadeira e universal segurança pública, é que gera um convívio social livre e igual. Substituir o “aposto explicativo” franja de lunáticos, por grupos sociais inteiros subordinados à hipnose do mercado, que rompe ou vulnera a coesão social, na qual as pessoas podem ser minimamente solidárias para sobreviverem, explica a visão que o liberalismo democrático quer cultuar para si mesmo. E que deve ser cultuada tanto por uma reorganização de conceitos, como por práticas de governo coerentes com a sociedade universal globalizada.

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios).

Notas


[i] FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Edição de Gerardo Pisarello. Madrid: Editorial Trotta, A. S, 2004, p. 66.

[ii] LEAL, Rogério Gesta. Segurança pública no estado democrático de direito brasileiro: avanços e recuos. (em fase de elaboração).

[iii] GENRO, Tarso. Lula e Mandela: negociação, revolução e democracia. Disponível aqui.

[iv] GENRO, Tarso. A hidra não foi anulada. Disponível aqui.

[v] KRIELE, Martin. Introdução à Teoria do Estado: Os fundamentos históricos da legitimidade do Estado Constitucional Democrático (Einführung in die Staatslehre: Die Geschichtlichen Legitimitätsgrundlagen des demokratischen Verfassungsstaates). Tradução: Urbano Carvelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2009, p. 239.

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