Por PAULO CAPEL NARVAI*
Sem participação popular, o governo conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados o projeto de lei complementar 136/2023, que retira recursos do SUS
A expressão “tecnocratas de Brasília” foi muito frequente nos discursos políticos contra a ditadura, nos anos 1970 e 80. De Prestes a Montoro, Lula e Medeiros, Richa e Olívio, passando por Arraes e Brizola, e chegando ao “Seo” Genezinho, um líder de bairro em São Paulo, ouvi “tecnocratas de Brasília” de várias pessoas. Com essa expressão, cidadãos reclamavam democracia e a necessidade de fazer valer a voz do povo no cotidiano político.
A bem da verdade, os tais tecnocratas não eram propriamente de Brasília, mas em Brasília, onde trabalhavam no governo federal, vindos dos mais diferentes lugares do Brasil. Servindo à República, sob a ditadura, ocupavam-se de afazeres que lhes incumbiam seus superiores, os ministros da ditadura.
Havia entre aqueles ministros, gente muito qualificada, do quilate de Ney Braga, João Paulo dos Reis Veloso e Mário Roberto Simonsen, para ficar em poucos nomes. Todos, porém, politicamente fiéis ao regime autoritário. Valiam-se, para “tocar a administração”, dos tais “tecnocratas de Brasília”. Volta e meia, claro, algum desses servidores “pisava na bola” e fazia uma trapalhada qualquer, o que requeria a pronta intervenção do chefe para consertar politicamente a escorregada.
Impossível não se lembrar desses “tecnocratas de Brasília”, ao analisar o processo político em que se meteu o governo Lula, no caso do projeto de lei complementar aprovado na Câmara dos Deputados e que agora tramita no Senado, sobre o descumprimento da Constituição com relação ao piso do orçamento da saúde, vale dizer do dinheiro que financia o Sistema Único de Saúde (SUS).
Ainda jovem, na luta contra a ditadura, eu estive entre os que se iludiram, acreditando que a democracia daria fim aos “tecnocratas de Brasília”. Ilusão. Hoje, na democracia, muitos seguem tão poderosos quanto seus congêneres da ditadura. O desapreço pelo diálogo democrático e a falta de sensibilidade para ouvir lideranças populares é similar. A perspectiva tecnocrática é a de que a política sempre atrapalha, que as coisas têm de ser discutidas e decididas apenas por quem “entende do assunto”.
Após a eleição de Lula, uma Emenda à Constituição, a de número 126, aprovada em 21 de dezembro de 2022, alterou a lei orçamentária de 2023, o que significou adicionar mais recursos ao SUS, cujo orçamento foi estimado em R$ 183,8 bilhões, uma alta de 12,85% em relação ao que o SUS recebeu em 2022.
Com a aprovação da lei que institui um novo regime fiscal e que pôs fim à Emenda Constitucional 95, de 2016, a do “teto de gastos”, tristemente conhecida como “emenda da morte”, pois congelava os recursos do SUS por vinte anos com base em 2016, o oxigênio parecia finalmente voltar, tirando da asfixia bolsonarista as políticas sociais, incluindo a de saúde. A “queda do teto” foi, com razão, comemorada nos quatro cantos do Brasil pelos lutadores pelo direito à saúde.
Com o fim da EC-95/2016, voltaria a viger a Constituição de 1988, que alterada no ano 2000 pela Emenda Constitucional nº 29, prevê (art. 198; 2º, § 2º) que a União aplicará, “anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos” derivados da aplicação de percentuais calculados sobre “a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento)”. Voltaria, mas ao que tudo indica, não voltará já em 2023, apenas a partir de 2024 – se nada se alterar nos próximos meses. Não voltará em 2023, pois um sucesso do governo Lula parece ter colocado em pânico “tecnocratas de Brasília” instalados nos ministérios da Fazenda e do Planejamento.
O sucesso diz respeito à perspectiva de cumprimento da meta de inflação acompanhada do crescimento do PIB. A meta da inflação para este ano, fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), é de 3,25%, podendo oscilar 1,5 ponto percentual, ou seja, entre 1,75% e 4,75%. Projeção feita em setembro a partir do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial do país, indica que a inflação de 2023 será de 4,86%. Mas essas projeções vêm sendo reduzidas a cada mês. Assim, não será surpresa se a meta de inflação for atingida. A outra parte do sucesso é a estimativa do Produto Interno Bruto (PIB), que deve ficar em torno de 3,0%, bem acima do 0,6% que se cogitava em dezembro de 2022.
Nesse cenário, não há qualquer justificativa, nem econômica, nem social, para tentar descumprir a lei que define recursos para o SUS. Foi isso, porém, o que tecnocratas de Brasília tentaram em agosto e setembro. Primeiro, houve consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre interpretação da norma orçamentária, que, dada a transição de governo, estimou a receita corrente líquida, base do cálculo dos recursos a serem alocados ao SUS. O TCU negou a flexibilização pretendida e reafirmou que o que vale não é a estimativa feita no início de 2023, mas a receita efetiva, ou seja, o que efetivamente terá entrado no caixa do governo, até o final de 2023.
Ao invés de levar o assunto para o Conselho Nacional de Saúde e os demais conselhos que integram o sistema de governança do SUS, como o CONASS, que reúne as secretarias estaduais de saúde e o CONASEMS, que representa os órgãos municipais incumbidos da gestão do SUS, fortalecendo assim a participação social nos assuntos da saúde, e compartilhando com a sociedade organizada uma decisão dessa envergadura, o governo optou pelo atalho legislativo e, a toque de caixa, conseguiu aprovar na Câmara dos Deputados o projeto de lei complementar 136/2023.
Aprovado na Câmara o projeto foi ao Senado. O governo não quer que o cálculo dos recursos para o SUS carregue consigo o êxito do governo no combate à inflação e no crescimento do PIB. Quer dar outra destinação a esses recursos, acomodando pressões políticas e alavancando orçamentos de outros ministérios.
Mas os defensores do SUS estão reagindo a essa tentativa de amputação, que segundo a Associação Brasileira de Economia da Saúde e outros analistas seria da ordem de R$ 18 bilhões. São recursos que farão falta para enfrentar o crônico subfinanciamento da saúde, uma das principais vítimas das políticas neoliberais que vêm sendo impostas ao país. O SUS vem se sustentando, hoje, sobre baixos salários, precarizações trabalhistas e sucateamento de instalações. E isso é intolerável.
Algumas críticas à iniciativa do governo têm, porém, confundido a perda decorrente do modelo de cálculo da vinculação orçamentária da saúde, com retirada de recursos do SUS para atender “o mercado”. Há algum fundamento nessas críticas, mas elas não consideram dois aspectos:
(i) o peso do mercado nessa questão é pequeno, talvez irrelevante, pois ao contrário do que se especula, o mercado na saúde perde com a proposta do governo. É preciso levar em conta, sobre isso, que o SUS é contra-hegemônico e o modelo hospitalocêntrico, com 4/5 dos leitos sob controle privado. Além disso, o SUS opera como suporte à saúde empresarial, representada pelos mal denominados “planos de saúde”, que frequentemente recorrem ao serviço público. Assim, o mercado na saúde perde com o descumprimento da regra constitucional tendo, portanto, interesse em mais recursos para o SUS, e não o oposto conforme se supõe. Para o mercado financeiro o tema não tem maior impacto, salvo no que diz respeito às contas públicas o que, a julgar pela destinação que teriam os recursos deslocados da saúde, não se aplicam.
(ii) Ao contrário do que se estimava em 2022, de que o orçamento do SUS para 2023 seria reduzido em cerca de R$ 22,7 bilhões, aconteceu o oposto. Houve aumento substantivo no orçamento do SUS: de R$ 149,9 bilhões para R$ 183,8 bilhões, valor que seria ainda ampliado, até o final de 2023, em mais R$ 30,2 bilhões.
Embora não seja possível assegurar que o governo não quer desconstitucionalizar os mínimos orçamentários vinculados à saúde, pois há indícios de que tecnocratas de Brasília têm falado nisso insistentemente, sobretudo nos ministérios da Fazenda e do Planejamento, não se justifica afirmar que “a saúde está em risco” ou que o governo está promovendo um “ataque frontal a uma das maiores conquistas da Constituição de 1988”, ou que a iniciativa do governo “coloca a pá de cal” no SUS. Ainda não. Mas não se pode tirar os olhos dos tecnocratas de Brasília.
Lula, que tem dito e repetido que “saúde não é gasto, saúde é investimento”, parece não aprovar esses planos de austeridade. Mas é o que o seu governo está fazendo. O que fará Lula, se o Senado aprovar o projeto que retirará R$ 18 bilhões do SUS, quando o receber para a sanção presidencial? Lula sabe que se ceder aos “tecnocratas de Brasília”, e tirar recursos do combalido SUS, o sentimento generalizado seria de que estaria traindo a si mesmo e traindo os que o elegeram.
Nos tempos da ditadura, os “tecnocratas de Brasília” que cometiam trapalhadas eram corrigidos por seus chefes, quando o que faziam assumia dimensões políticas.
O que fará Lula, na democracia?
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR]
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA