A lava previsível

Imagem: Lara Mantoanelli
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO TRIVINHO

A irrupção histórica da nova escumalha política no tecido superior do Estado joga o débito da ruína no colo das elites conservadoras

Para Angela Pintor dos Reis

“O que Hannah Arendt denomina o mal absoluto, eu prefiro chamar o monstruoso. O anthrôpos cria o sublime, mas é capaz de criar, igualmente, a monstruosidade” (Cornelius Castoriadis, Os destinos do totalitarismo).

A tribalização bolsonarista da política (isto é, uma certa relação autoritária com a disputa de poderes no perímetro do Estado) e a dramática escalada pandêmica no país (mais precisamente, uma certa relação negacionista e antiocidental para com essa tragédia humanitária) permitiram conhecer um pouco mais das franjas sombrias da alma do povo brasileiro.

Para quem tirocínio de dedução é método, o porão neofascista re-emergente no início deste século sempre esteve às escâncaras, sempre variou sinonímias e matizes, ora na legalidade forjada, ora com vergonha arredia, desde o ido assaque a caules de Caesalpinia echinata, atual Paubrasilia echinata, conhecido pau-brasil. Por mais enrustidos os sinais da escabrosidade, esse submundo nunca deixou de pleitear distribuição de cartas, desde o bote colonial a Pindorama.

O problema político e social mais recente é que magmas vulcânicos ressentidos e muitíssimo ignaros na afobação incontinente acabaram por se avultar na crosta institucional da sociedade; e, deslumbrados com a ribalta acesa na berlinda, controlam hoje – glamour a rostos – o baralho vandálico na mesa do absurdo como normalidade.

Constata-se agora o quanto essa lava áspera e ingrata, tão intratável quanto infame, e totalmente deseducada para a democracia (como para a civilização, desprezadas as maltas com clava e espingarda, empáfia colérica à frente, tosco peitoral de estufa), jamais poderia ter alcançado os estratos decisórios mais altos do Estado, especialmente a principal cadeira executiva da República. A infelicidade da pandemia ajudou a explicitar as vísceras desse magma: um conjunto abundante de intenções mentecaptas e insensíveis, cujo gangsterismo surpreende somente a percepção crédula e imprevidente.

De ecos longínquos – do Império à República –, o desserviço sistêmico de tantas elites políticas conservadoras e reacionárias, através de sucessivas formas de administração reprodutoras de desigualdades extremas, está criminosamente implicado na lactação recorrente e na irrupção dessa efeméride histórica. O futuro da inteligência haverá certamente de enquadrar a lava nos peculiares alfarrábios da incivilidade. Mais de três séculos de investimento insuficiente e (quase) contínuo em educação,1 sem gerenciamento de qualidade, eficácia e resultado, um dia arranja efeito macroestrutural e unificado com dedo miliciano em riste – fogo embainhado, pavio aceso – no rosto rubro da indiferença cínica e da ingenuidade simulada, atributos da mentalidade tecnocrática de cúpula. Esse esforço orçamentário estruturalmente desorganizado ou incompleto, sempre desproporcional ao tamanho geopolítico do país – longe do que advogaram Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy Ribeiro, entre outros2 –, quando combinado com altas taxas de desemprego e segregação populacional, mostra efeito explosivo, cobrando alto preço coletivo, para além dos redutos elitizados: no rastro de 2016 e 2018, a administração negacionista e desastrada da pandemia, mais de 300 mil mortes depois, faz o Brasil expiar o opróbrio do mundo.

No ímpeto insolente de repeteco de décadas militares, a escumalha orgulhosa – interclasses – e com representativo bufão no Palácio do Planalto, expande raízes neofascistas: ruminando obsessivamente golpe de perpetuação – golpe de Defesa, golpe de Sítio, autogolpe militarizado ou consortes –, lança atropelos à disputa presidencial em curso.

Para redimir-se de culpas, as elites políticas conservadoras, que apoiaram o neofascismo bolsonarista e hoje pretendem limpar-se dele, quererão varrer a escabrosidade (esta agrura profunda que as açodou pelas laterais e agora estagia no jardim da frente) para o antro blindado dos tabus, embaixo de tapetes com palidez risonha, na sala de estar.

Pedem à decência que esqueça o que vê e deduz. Incondicional, ela desobedece à iniquidade. Sua indisciplina legítima assevera que a conta política, econômica e moral da reconstrução do que poucos anos já derruíram está sendo jogada no colo dos próprios nepotistas e fisiologistas do conservadorismo instituído, com projeção ao longo do século. Os movimentos sociais de centro-esquerda jamais olvidarão a paternidade dessa devastação tantas vezes anunciada. Estimativa histórica otimista alerta que mesmo um investimento triplicado e sistemático em estrutura e trabalho irreversível em todos os níveis educacionais, por mais de cinco décadas, será insuficiente – e isto guardando-se a proporção da devida suspeita: neofascistas, supremacistas e quejandos – de indivíduos a grupos e empresas – raramente se convencem, com autenticidade e honestidade, do valor universal da democracia e de seus efeitos benéficos para o desenvolvimento do indivíduos e das relações sociais. Para sabotá-la, cultivam, no seio da mentalidade de direita, um álibi quixotesco e pueril: a necessidade de defesa fetichista contra o “comunismo imaginário”, supostamente abolidor de todas as diferenças (materiais e simbólicas). Num expediente retórico puído, atribuem, primeiro, a essa quimera a culpa pela ameaça geral às instituições (da “ordem” e do “progresso”) e, na sequência, utilizam-na para justificar o próprio fechamento do tempo.

Raras vezes o óbvio merece explicitação, como no caso: a vergonha histórica do mencionado passivo na educação jamais será das classes populares, vulneráveis, segredadas, periféricas e/ou desfavorecidas – as classes majoritárias tornadas “serviçais” e legalmente obrigadas (independentemente de inclinações voluntárias circunstanciais e imprevistas). Nenhum estratagema discursivo hegemônico esconde o rombo e seus espirros. Eles alcançam, também responsabilizando, a ambiguidade conveniente e até hoje insolúvel das classes médias brasileiras.

A bem dos rigores, no bojo de esperanças nulas, o melhor exemplo que as elites conservadoras dariam – e, obviamente, jamais o farão – seria não somente vazar da berlinda, mas também abandonar a cena nacional por bom tempo, a passo silente, para evitar vaias aos quatro cantos. Patentear o brio dos rigores faz, ao menos, mais que expor o nutritivo osso que tais elites e arredores não largam: mantém a agulha do que é justo na ferida principal, em liame com a posteridade.

*Eugênio Trivinho é professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Notas


1- A relevante exceção nesse aspecto abarca a política orçamentária de governos progressistas. O período de 2002 a 2015, em que a aliança de poder liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) administrava o país, foi o que mais observou investimento em educação no Brasil. Detalhes estatísticos internacionais e comparativos podem ser vistos, por exemplo, nos relatórios Education at a glance de 2017 a 2019, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anisio Teixeira (INEP), órgão do Ministério da Educação, provê acesso aos arquivos (em inglês e português), em http://inep.gov.br/education-at-a-glance.

2 – O ensejo, acossado por tantas incertezas rudes, reclama urgência: vale citar, para divulgação necessária, os tomos respectivos da Coleção Educadores, concebida e financiada pelo Ministério da Educação (quando o órgão era recinto respeitado e qualificador do ramo), em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Fundação Joaquim Nabuco:

BEISIEGEL, Celso de Rui. Paulo Freire. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.

NUNES, Clarice. Anísio Teixeira. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.

GOMES, Candido Alberto. Darcy Ribeiro. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.

PENNA, Maria Luiza. Fernando de Azevedo. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Massangana, 2010.

Os mais de 60 volumes da Coleção Educadores, incluindo os acima, estão disponíveis em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ResultadoPesquisaObraForm.do.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Otaviano Helene Andrew Korybko José Costa Júnior José Machado Moita Neto Ricardo Abramovay Henri Acselrad Luiz Carlos Bresser-Pereira João Adolfo Hansen Luiz Werneck Vianna Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jean Pierre Chauvin Jorge Branco José Dirceu Eleutério F. S. Prado Marcos Silva Kátia Gerab Baggio Leda Maria Paulani Igor Felippe Santos Matheus Silveira de Souza Marjorie C. Marona Michael Roberts Marcelo Guimarães Lima Annateresa Fabris Luiz Marques Ricardo Fabbrini Berenice Bento Juarez Guimarães Alexandre Aragão de Albuquerque Luciano Nascimento Caio Bugiato Leonardo Boff Carla Teixeira Thomas Piketty Gerson Almeida Eugênio Trivinho Claudio Katz Tarso Genro Atilio A. Boron Dennis Oliveira Marcus Ianoni Gilberto Lopes Sergio Amadeu da Silveira José Raimundo Trindade Fábio Konder Comparato Eliziário Andrade Paulo Martins Daniel Costa Mariarosaria Fabris Lorenzo Vitral Antonio Martins Luís Fernando Vitagliano Rafael R. Ioris Gabriel Cohn Fernão Pessoa Ramos Ronaldo Tadeu de Souza Luiz Roberto Alves Slavoj Žižek Valerio Arcary Bruno Fabricio Alcebino da Silva Fernando Nogueira da Costa Daniel Afonso da Silva Daniel Brazil Chico Whitaker Jorge Luiz Souto Maior Paulo Fernandes Silveira Boaventura de Sousa Santos Carlos Tautz Mário Maestri Armando Boito Eugênio Bucci Bento Prado Jr. Everaldo de Oliveira Andrade João Carlos Loebens Marilena Chauí Érico Andrade Lincoln Secco Paulo Sérgio Pinheiro Walnice Nogueira Galvão Bruno Machado Paulo Nogueira Batista Jr Denilson Cordeiro Antônio Sales Rios Neto Tales Ab'Sáber Marcelo Módolo Tadeu Valadares Rubens Pinto Lyra Gilberto Maringoni Marcos Aurélio da Silva Plínio de Arruda Sampaio Jr. Sandra Bitencourt Eleonora Albano Ari Marcelo Solon Heraldo Campos Milton Pinheiro Maria Rita Kehl Dênis de Moraes Francisco de Oliveira Barros Júnior Afrânio Catani José Luís Fiori Celso Frederico Valerio Arcary Rodrigo de Faria Vinício Carrilho Martinez Elias Jabbour Liszt Vieira Ladislau Dowbor Flávio R. Kothe Ronald Rocha João Paulo Ayub Fonseca Michel Goulart da Silva Paulo Capel Narvai Anselm Jappe Alysson Leandro Mascaro José Geraldo Couto João Feres Júnior Bernardo Ricupero Leonardo Sacramento Antonino Infranca André Márcio Neves Soares Francisco Fernandes Ladeira João Lanari Bo Celso Favaretto André Singer Ronald León Núñez Marilia Pacheco Fiorillo Michael Löwy Vanderlei Tenório Yuri Martins-Fontes Flávio Aguiar Luiz Bernardo Pericás Alexandre de Freitas Barbosa Leonardo Avritzer Samuel Kilsztajn Salem Nasser Luiz Renato Martins Benicio Viero Schmidt Julian Rodrigues Chico Alencar Henry Burnett Jean Marc Von Der Weid Luiz Eduardo Soares Priscila Figueiredo Ricardo Musse Remy José Fontana José Micaelson Lacerda Morais Vladimir Safatle Alexandre de Lima Castro Tranjan João Sette Whitaker Ferreira Luis Felipe Miguel Manuel Domingos Neto Airton Paschoa Osvaldo Coggiola João Carlos Salles Renato Dagnino Andrés del Río Eduardo Borges Lucas Fiaschetti Estevez Francisco Pereira de Farias Ricardo Antunes Manchetômetro

NOVAS PUBLICAÇÕES