Ser pobre é pecado – pela isonomia na tributação

Shikanosuke Yagaki, Natureza morta, 1930–9
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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Se a elite brasileira pudesse não pagaria tributo algum, e se recusa ao debate sobre como superar uma das maiores desigualdades sociais no mundo

O artigo de João Camargo, presidente do Conselho de Administração da Esfera Brasil, “Ser rico não é pecado”, publicado na Folha de S. Paulo em 02/09/23, criou uma comoção na rede social de pessoas progressistas. Esse alvoroço pode ser visto como uma revolta de quem acha “ser pobre é sim o pecado”? Afinal, por azar do berço, a pobreza condena o infeliz a padecer no inferno durante toda sua vida…

Vejamos a razão de ser dessa agitação social. O argumento em defesa dos privilégios de sua casta de mercadores é o contumaz: o pacto social, no sistema capitalista, coloca a maior responsabilidade de geração de empregos e renda nos empresários. Eles estão “entregando” esse dever, de maneira suficiente a atender toda a demanda, no Brasil?

João Camargo simplesmente recusa o debate sobre como superar uma das maiores desigualdades sociais no mundo. Afirma: “a retórica do debate sobre a taxação dos ‘super-ricos’ é deletéria. O brasileiro ao construir seu patrimônio deve ser admirado como o protagonista de uma jornada de sucesso. Ele não apenas representa um exemplo de realização, como contribui, muito concretamente, para o desenvolvimento nacional. É ele quem investe, empreende, assume riscos, inova, cria riquezas, gera emprego e paga enormes somas de tributos. Ele é peça fundamental da máquina produtora de crescimento econômico”. Podes crer…

A sociedade se beneficia tanto do valor adicionado pelos trabalhadores e apropriado pelos ricaços? Os trabalhadores, criadores desse valor no processo de produção de bens e serviços, são remunerados de maneira justa nesta economia de mercado?

João Camargo propõe ao Congresso Nacional legislar em (sua) causa própria. Logo, o presidente da Câmara de Deputados disse “o país não precisa de um debate ‘de pobres contra ricos’ depois de sair de uma eleição polarizada”. O conservador representante do “centrão”, Artur Lira, afirmou o Congresso ser contrário a aumento de impostos…

Essa afirmação, em princípio, engana os desavisados: lógico, rejeitam o aumento da carga tributária sobre si. Mas o debate público diz respeito apenas à isonomia tributária ao acabar com as isenções fiscais como privilégios injustificáveis dos mais ricos no país.

Para se ter um debate bem embasado em dados – e não em ideologia apriorística – é necessário a opinião pública saber: a remuneração média mensal dos Conselheiros de Administração no Brasil está em R$ 80.562 em 2023. Eles tiveram apenas a média de 17 reuniões em 2022, ou seja, uma em todos os meses e mais uma em seis meses.

No caso dos Conselhos de Administração, a remuneração do líder do “board” – como Camargo – é, na média, 4,1 vezes a quantia paga aos demais membros do grupo: mérito?

Os CEOs, por sua vez, recebem uma remuneração média anual de R$ 15,3 milhões, incluindo, além dos “salários”, os bônus generosos. Esse valor é 2,9 vezes o montante recebido pelos demais membros da Diretoria, os quais alcançam em média R$ 334 mil mensais, ou seja, um salário anual de R$ 4 milhões, sem considerar os bônus. É justo?!

Esses dados são da pesquisa “Liderança Empresarial: Um estudo sobre CEOs e Conselhos de Administração”, realizada pela Vila Nova Partners e Drixx IT Advisors. Vale contrapô-los à remuneração da elite do funcionalismo público, tão criticada por ter “privilégios”.

Os próceres do setor privado usam seus ideólogos na “grande” (sic) imprensa brasileira para denunciar quem ganha próximo do teto previsto para o setor público, hoje, em R$ 41.650. Desconhecem o conjunto dos servidores estar bem abaixo dessa casta de sábios tecnocratas, pois a maioria recebe cerca de um décimo do limite.

Metade dos servidores estatutários recebe cerca de R$ 3.400 por mês, ou seja, menos de três salários mínimos, atualmente fixado em R$ 1.320. Cerca de 70% do total, recebe mensalmente no máximo até R$ 5.000.

Os chamados supersalários estão acima do teto de R$ 41.650, equivalente ao rendimento máximo do juiz do Supremo Tribunal Federal. Esse grupo representa de 0,06% do total. Entre os integrantes estão juízes, procuradores e promotores. Entre R$ 27.001 e R$ 41.650, estão 0,94% dos servidores. Entre R$ 15.001 e R$ 27.000, 4%; entre R$ 10.001 e R$ 15.000, 5%; entre R$ 5.001 e R$ 10.000, 20%.

Os não estatutários, como os informais do setor privado, ganham menos diante dos registrados. Estes são concursados para trabalhar no setor público.

A maioria dos servidores não trabalha no governo federal, onde são pagos valores mais elevados. Esse nível governamental contrata apenas 8% do total. Os estados contratam 32% dos servidores, com destaque para cerca de 530 mil policiais militares e civis responsáveis pela segurança pública. A maior parte (60%) dos funcionários está espalhada pelos 5.568 municípios do país, onde se paga menos a, por exemplo, professoras, enfermeiras e assistentes sociais, contratadas em concursos públicos.

Exigem certo nível de escolaridade. As comparações de remuneração média entre os funcionários públicos e os trabalhadores da iniciativa privada revelam os melhores empregos não ser os oferecidos por empresários, mas sim por governos. No setor público e no setor privado paga-se, respectivamente, para Ensino Fundamental: R$ 2.484 e R$ 1.890; Ensino Médio: R$ 3.273 e R$ 2.185; Superior Completo: R$ 6.916 e R$ 5.910; Mestrado: R$ 9.012 e R$ 8.008; Doutorado: R$ 12.909 e R$ 9.221.

Segundo Sindifisco Nacional, sindicato representante dos auditores fiscais da Receita Federal, a partir de dados do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) de 2022 (ano calendário 2021), contribuintes com declarações de ganhos totais acima de 160 salários mínimos (R$ 2,1 milhões no ano ou R$ 176 mil por mês) pagaram, em média, uma alíquota efetiva de Imposto de Renda (IR) de menos de 5,5%.

A alíquota efetiva – o percentual da renda total de fato confiscada pelo Imposto de Renda – desses milionários ficou abaixo da cobrada de professores de ensino fundamental (8,1%), enfermeiros (8,8%), bancários (8,6%) ou assistentes sociais (8,8%) — profissionais cujos rendimentos totais (soma dos salários e outros rendimentos) ficaram abaixo de R$ 94 mil (menos de R$ 8 mil ao mês). Ficaram também abaixo de policiais militares (8,9%), cuja renda média total em 2021 ficou em R$ 105 mil (R$ 8.750 ao mês); de médicos (9,4%), com média renda total de R$ 415 mil (R$ 34,6 mil ao mês).

Segundo o Sindifisco, o principal motivo de os mais ricos terem uma alíquota menor é uma parcela relevante de sua renda virem do recebimento de lucros e dividendos das suas empresas, isentos de imposto no Brasil desde 1996. Por sua vez, a classe média tem uma parcela maior de seus ganhos proveniente de salários, em geral, tributados na fonte, com alíquotas progressivas até 27,5% para ganhos mensais acima de R$ 4.664,69.

É duvidoso o atual Congresso Nacional aprovar as medidas fiscais propostas, como taxar fundos exclusivos para milionários e investimentos no exterior, voltar a tributar lucros e dividendos distribuídos por empresas, e impor novas regras no imposto sobre herança para impedir as famílias mais ricas evitarem a cobrança de ITCMD. Senadores e deputados federais não têm interesse em votar esse tipo de medida, pois quem financia suas campanhas é quem seria tributado e, aí, seus lobbies reagiriam.

Um Imposto sobre Grande Fortuna (IGF), ao provocar fuga de capital, não atenderia à função de, como é esperado, diminuir a concentração do estoque de riqueza. Na realidade, a tributação do fluxo de renda pelo IR deveria exercer a função distributiva pretendida. Portanto, sugiro não tributar o estoque, mas sim o fluxo inescapável.

Os contribuintes onerados por um Imposto sobre Grande Fortuna teriam incentivo para fazer uso de planejamentos tributários, ocultar patrimônio, e elevar o consumo corrente de bens supérfluos, elevando a evasão fiscal. No final das contas, o acréscimo na receita tributária do país seria mínimo, sequer compensando o desgaste político e os impactos econômicos negativos decorrentes da instituição desse imposto.

Caso um Imposto sobre Grande Fortuna incidisse sobre a totalidade do patrimônio dos indivíduos – e não apenas sobre os ganhos auferidos no ano –, o afortunado de acordo com a faixa do seu patrimônio pagaria uma alíquota de imposto todo ano sobre a totalidade de seus bens de modo progressivo. Sem dúvida, seria um incentivo para fuga de capital.

Então, seria mais prudente o imposto incidir somente sobre a nova receita (ainda não tributada) acrescentada a cada ano ao patrimônio. Na verdade, desconhece-se o valor de mercado da riqueza pessoal, porque ações e imóveis, por exemplo, são variáveis.

Elevar alíquotas de impostos sobre propriedade de âmbito estadual ou municipal, tipo IPTU (imóvel urbano), ITR (imóvel rural), IPVA (automóvel), ITBI (transmissão de imóveis) e ITCMD (herança e doação), traz o risco político de apenas assustar todos os pequenos proprietários, imaginando ter algo a perder, mesmo sendo pouco. Entre eles estão os milhares proprietários de casa própria (3/4 dos moradores) e automóvel, situados em classes de renda intermediárias.

Os mais ricos sabem muito bem manipular a opinião pública para apresentar o seu problema de pagar impostos antes isentos como fosse de todos os cidadãos contribuintes. A conferir… sem muita esperança de justiça fiscal.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).


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