Por GERSON ALMEIDA*
No lugar do seu projeto de poder, as energias de Sérgio Moro estão voltadas a evitar a sua prisão e lutar para não perder o mandato
Ao sair de um encontro na casa do recém-eleito presidente, no dia 1º de novembro de 2018, Sérgio Moro declarou ter ficado muito “honrado” com o convite para assumir o Ministério da Justiça do governo de Jair Bolsonaro e, ainda, tornou público que havia negociado uma “garantia” financeira para a sua família, “pedi que a minha família não ficasse desamparada, sem uma pensão. Foi a única condição que eu coloquei para assumir” (Portal G1, 24/04/2020). Feito esse acerto, renunciou ao cargo de juiz e deu mais um passo em direção à sua estratégia de poder, que contava com a indicação para ser ministro do STF e depois concorrer à presidente da República.
Mesmo que muito ainda esteja por vir à luz, o conjunto de informações disponíveis são suficientes para concluir que aquela reunião foi o momento em que Sérgio Moro e Jair Bolsonaro acertaram os termos de um acordo – que já vinha sendo costurado há bastante tempo – para aprofundarem a intensa colaboração que até aquele momento vinha sendo bem-sucedida. O capital político de Sérgio Moro eram os relevantes serviços por ele prestados ao retirar o candidato preferido pela população do processo eleitoral, algo decisivo para a eleição de Jair Bolsonaro.
Ambos estavam muito cientes do papel que exerciam como chefes de duas facções imprescindíveis para viabilizar a articulação de um amplo campo golpista que contava com uma grande penetração nas instituições de Estado e levou o país a uma regressão política, social, cultural, econômica e democrática. O fato de muitos dos agentes do golpe terem feito o juramento de zelar pelos preceitos constitucionais, é um aspecto que amplia a gravidade dos seus crimes e macula a sua honra de servidor público.
Esse campo foi meticulosamente construído para criar o ambiente político adequado para viabilizar o golpe no governo de Dilma Rousseff, em 2016, e reuniu todo o tipo de interesses contrariados – inclusive na esfera criminal –, que não toleravam mais conviver com a sua própria incapacidade de construir maioria na sociedade e estavam ávidos por impor as suas políticas regressivas.
Como nunca tiveram efetivo compromisso com o respeito à soberania popular, as elites tradicionais e seus associados decidiram retomar para as suas mãos o controle dos rumos do país e não tiveram vergonha de agir contra a soberania popular, tal como historicamente sempre fizeram nos períodos em que o poder político escapou, ao menos em parte, do seu controle.
Dado o golpe, trataram de imediatamente colocar em prática suas políticas organicamente associadas ao grande capital internacional e hostil a qualquer projeto que não seja o da concentração de renda, da exclusão social e da degradação ambiental e chamaram isso de “ponte para o futuro”.
No entanto, a coesão deste campo golpista estava fadada ao estado de permanente tensão, seja pela amplitude de interesses agregados; seja em razão da ambição de poder de Jair Bolsonaro e Sérgio Moro, o que levaria inevitavelmente ao conflito pela liderança do campo da traição à democracia, que apesar de Jair Bolsonaro ter sido eleito presidente, ele ainda precisava se consolidar como líder inconteste do campo. Tanto que nenhum deles desmobilizou seus liderados ao selarem o aprofundamento do seu acordo de colaboração, pois ambos sabiam que o outro era capaz de tudo para alcançar seus objetivos e sabiam muito bem os riscos que corriam, caso algum deles desse às costas para o outro.
A tensão gerada pela disputa de poder entre as duas facções fez com que Jair Bolsonaro tivesse que antecipar em 18 meses a discussão para a vaga de Celso de Mello no STF, cuja aposentadoria compulsória seria apenas em novembro do ano seguinte (2020), revelando a dureza da luta nos bastidores e a crescente desconfiança mútua entre as duas facções. Em entrevista à Rádio Bandeirantes, em 12 de maio de 2019, Jair Bolsonaro afirmou que “A primeira vaga que tiver [no STF], eu tenho esse compromisso com o Moro [de indicá-lo], e pretendo… pretendo não. Se Deus quiser, nós cumpriremos esse compromisso”. Tropeçou nas palavras, mas fez a tentativa de aplacar seu sócio ansioso por resgatar as faturas penhoradas.
É sabido que, tal como Jair Bolsonaro, Sérgio Moro agiu de forma incansável para alcançar seus objetivos e não deixou de se valer de nenhum tipo de violência e artifícios próprios de grandes delinquentes. Para isso realizou ações em escala industrial ao arrepio do processo legal e cirurgicamente vinculadas ao calendário político e eleitoral do país, sempre beneficiando um único dos lados; utilizou sistematicamente métodos próprios de grupos criminosos, como mostram as denúncias feitas por Tacla Durán e Tony Garcia.
A escala de maldades, de falta de caráter e de atos de corrupção denunciados por ambos só pode ser comparado aos roteiros das séries que tratam da trajetória dos grandes chefes de organizações criminosas, com a exceção de que os outros não conseguiram se incrustar em importantes instituições do Estado dos seus países, na escala alcançada por Sérgio Moro no Brasil.
Para conseguir ir tão longe na sua carreira criminosa, Sérgio Moro construiu uma súcia que atuou como uma guarda pretoriana que protegia seus crimes e, simultaneamente se beneficiava de vultuosas somas, como mostra o exemplo da fundação organizada por Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-jato, que sempre agiu como um ajudante de ordens de Sérgio Moro, apesar de atuar no Ministério Público.
Para Gilmar Mendes, ministro do STF, essa fundação forneceria para Sérgio Moro e Deltan Dallagnol “um fundo eleitoral maior que os fundos eleitorais dos partidos políticos”, mostrando que eles “estavam montando uma máquina inclusive para fazer dinheiro” (Carta capital, 05.01.2023). Essa máquina de “fazer dinheiro” também sabe fazer o dinheiro “desaparecer”, como mostra a correição do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na 13ª. Vara Federal e do Tribunal Federal da 4ª. Região (TRF-4), que está atrás do paradeiro de quase três bilhões que a operação Lava Jato arrecadou nos seus acordos de leniência e colaboração premiada, dos quais há registros de apenas R$ 200 milhões, como informou o blog de Marcelo Auler.
Essa avidez em ganhar dinheiro e assegurar o controle sobre vultuosos recursos – que eles apelidaram de combate à corrupção –, era o meio de assegurar a autonomia financeira necessária para financiar o projeto de poder da facção e viabilizar o abandono do sócio, uma companhia que começava a ficar cada vez mais inconveniente e cujo governo vivia dificuldades políticas crescentes.
Tanto que apenas dezesseis meses depois de tomar posse e desacreditando na sua efetiva indicação para o STF, Sérgio Moro achou que era o momento de abandonar a parceria, voltar a investir no papel de incorruptível e, assim, aumentar o seu poder na sociedade. Foi quando deu o bote no sócio e anunciou o seu afastamento do governo, alegando a insistência de Jair Bolsonaro em querer interferir na sua área de atuação (indicações para a PF) e, assim, “incidir sobre investigações em curso contra a corrupção”.
Apesar deste movimento ter abalado a coesão do campo de apoio ao governo e ter contado com o apoio da imprensa empresarial, a medição de forças feita entre as duas facções mostrou à Sérgio Moro que, agora, quem tinha a caneta e a confiança da maioria do campo golpista era Jair Bolsonaro e não ele. Sérgio Moro não demorou muito na ilusão de se apresentar como crítico da polarização política, ocupando generoso espaço da mídia empresarial, com declarações do tipo “não quero falar mal de ninguém, mas, na verdade, os dois [Lula e Bolsonaro] são muito parecidos. Eles acabam se retroalimentando porque flertam com o extremismo” (Veja, 15/02/22). Mas, rapidamente percebeu que o papel que lhe restava no campo golpista era o de subordinado à Jair Bolsonaro e não o de sua liderança.
Os fatos posteriores mostraram isso, tanto que Sérgio Moro apenas viabilizou a sua eleição como senador pelo Paraná, quando decidiu fazer a genuflexão e assumir o papel de cabo eleitoral de Jair Bolsonaro, se apresentando como o verdadeiro candidato do bolsonarismo. Uma situação muito diferente da eleição anterior, quando Sérgio Moro é que havia sido decisivo para a vitória de Jair Bolsonaro.
Agora, que o STF já definiu Sérgio Moro como um juiz parcial e que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou uma correição extraordinária para verificação do funcionamento da 13ª. Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba e dos gabinetes dos desembargadores integrantes da 8ª. Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região (TRF4), uma verdadeira caixa de pandora está sendo aberta e vai contar os bastidores de um dos períodos mais sórdidos da história brasileira, que inclui denúncias de HDs destruídos, filmes usados para fazer chantagens e muito dinheiro público sem paradeiro conhecido.
No lugar do seu projeto de poder, as energias de Sérgio Moro estão voltadas a evitar a sua prisão e lutar para não perder o mandato, tal como já aconteceu com o seu ajudante de ordens, Deltan Dallagnol. Isso é um bom começo, mas é preciso investigar a fundo para saber até onde vão as ramificações da facção que usou as instituições da democracia para corrompê-la e desonraram o juramento feito ao entrarem no serviço público. Afinal, parodiando Eclesiastes 12:7, “da lama eles vieram, para a lama eles devem voltar”.
*Gerson Almeida, mestre em sociologia pela UFRGS, foi secretário de meio ambiente de Porto Alegre e secretário nacional de articulação social da secretaria geral presidência da República (2007-2011).
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