Estados ocos

Imagem: Alexey Demidov
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Por CÉDRIC DURAND*

Nas sociedades regidas pela democracia liberal a disciplina efetiva sobre as corporações só pode vir da pressão popular externa em contraposição aos lobbies empresariais

O retorno da política industrial é uma tendência forte, pois está catalisada pelos choques cumulativos da Covid-19 e da guerra na Ucrânia, além de questões estruturais de longo prazo: a crise ecológica, a produtividade vacilante e o alarme com a dependência dos países ocidentais do aparato produtivo da China. Juntos, esses fatores minaram constantemente a confiança dos governos na capacidade da iniciativa privada de impulsionar o desenvolvimento econômico.

É claro que o “estado empreendedor” nunca desapareceu, especialmente nos EUA. Os bolsos fundos da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa e dos Institutos Nacionais de Saúde têm sido cruciais para manter a vantagem tecnológica desse país – financiando a pesquisa e o desenvolvimento de produtos nas últimas décadas. Ainda assim, está claro que uma mudança substancial já está ocorrendo.

Como observou um grupo de economistas da OCDE, “as chamadas políticas horizontais, ou seja, as disposições governamentais acessíveis para todas as empresas, as quais incluem os impostos, as regulamentações de produtos ou do mercado de trabalho, são cada vez mais questionadas”. Ao invés disso, “está ganhando força o argumento de que os governos devem atuar mais ativamente na estrutura do setor produtivo empresarial”. Centenas de milhões de fundos estão agora sendo direcionados para as empresas dos sectores militar, de alta tecnologia e ecológico, em ambos os lados do Atlântico.

Esse pivô faz parte de uma reconfiguração macro-institucional mais ampla do capitalismo, na qual uma economia pós-pandemia mais apertada constrangeu ainda mais os mercados de trabalho, enquanto a centralidade das finanças começou a ser questionada. Esses fenômenos são altamente complementares: o financiamento público estimula a economia e pode impulsionar a criação de empregos, enquanto a alocação administrativa de crédito serve como uma admissão de que os mercados financeiros são incapazes de fomentar o investimento necessário para enfrentar grandes desafios conjunturais.

A um nível muito geral, esta viragem neo-industrial deve ser saudada, uma vez que a deliberação política pode agora desempenhar um papel um pouco maior nas decisões de investimento. Mais concretamente, porém, há muito com o que se preocupar. Nessa fase, podemos identificar pelo menos três dimensões problemáticas.

A primeira é a amplitude em si mesma dessa virada. Embora os montantes sejam significativos, eles não correspondem aos desafios civilizacionais que se está enfrentando – eis que ficam muito aquém do necessário para implementar uma reestruturação completa da economia, tal como exigida pelo colapso climático. Isso é particularmente verdadeiro na Europa, já que ela tem agora uma vulnerabilidade estrutural crônica devido às medidas de austeridade autoinfligidas – atualmente rebatizadas de “trajetórias de ajuste fiscal” – e ao aprofundamento das divisões entre o núcleo e a periferia.

A geopolítica da política industrial é especialmente problemática no contexto do mercado único da União Europeia. Friedrich Hayek – vale lembrar – era um forte defensor do federalismo justamente porque sabia que uma união desse tipo criaria sérios obstáculos à intervenção estatal. Chegar agora, portanto, a um acordo em nível federal para apoiar um determinado setor é excepcionalmente difícil devido aos interesses nacionais divergentes, eles próprios resultado da especialização produtiva e do desenvolvimento desigual.

No plano nacional, por outro lado, a flexibilização das disposições relativas aos auxílios estatais tende a suscitar resistência por parte dos Estados-membros mais fracos, que temem que os países com maior espaço fiscal – em particular a Alemanha – consigam melhorar a sua vantagem competitiva, agravando ainda mais a polarização no interior da União Europeia.

Uma vez que todo o seu edifício foi construído com base na premissa de que a concorrência é suficiente para garantir a eficiência econômica, inexiste capacidade técnico-administrativa para aplicar a política industrial. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, a austeridade teve efeitos igualmente prejudiciais sobre a capacidade do Estado. Questionado sobre a viabilidade do programa de Joe Biden, Brian Deese, ex-diretor do Conselho Econômico Nacional, minuciou cauteloso: “O problema se resume ao profissionalismo do serviço público em nível federal e nos níveis estadual e local – muitos dos quais foram esvaziados”.

Em segundo lugar, o conteúdo desse neoindustrialismo é bem preocupante. As escolhas que estão sendo feitas atualmente sobre a direção do financiamento moldarão a estrutura produtiva nas próximas décadas. Na frente ecológica, a principal questão é que esses financiamentos são quase que exclusivamente concebidos como subsídios para tornar mais ecológicas as instituições e a produção das mercadorias tradicionais, em vez de reorientar a economia com base na sustentabilidade.

A indústria de automóveis é um exemplo. Idealmente, as políticas verdes deveriam desenvolver soluções de transporte multimodais, dando um papel limitado para os veículos pequenos e eletrificados. No entanto, isso implicaria um enxugamento drástico do setor automotivo – algo impensável para as montadoras voltadas para o lucro, que estão pressionando por SUVs totalmente eletrificados, os quais proporcionam altas margens de rentabilidade.

Para conciliar o aumento da produtividade com os imperativos ambientais, a política industrial precisaria não apenas dos recursos para apoiar a mudança estrutural, mas também dos meios para os planejadores estatais disciplinarem os capitalistas. As lições do desenvolvimentismo pós-Segunda Guerra Mundial tiradas por Vivek Chibber permanecem válidas: as empresas entendem a política industrial como “a socialização do risco, deixando intacta a apropriação privada do lucro”. Por conseguinte, resistem veementemente às “medidas que dão aos planificadores qualquer poder real sobre as suas decisões de investimento”.

Outra questão qualitativa é o aumento global dos gastos militares. Na ausência do que Adam Tooze chama de “uma nova ordem de segurança baseada na acomodação da ascensão histórica da China”, entramos em uma Nova Guerra Fria com o assustador potencial de se espalhar para além do teatro ucraniano. Enquanto algumas empresas têm muito a perder com um confronto com a China, mas outras podem se beneficiar.

Junto com o complexo industrial-militar, as corporações do Vale do Silício estão deliberadamente alimentando temores sobre as capacidades chinesas em inteligência artificial (IA), na esperança de garantir o apoio público para suas atividades e bloquear o acesso a mercados aliados estrangeiros. Isso criou uma relação de fortalecimento mútuo entre a busca privada de lucro e o poder estatal, à maneira imperialista tradicional.

O terceiro problema envolve o equilíbrio entre as classes sociais. Em seu livro recém-publicado L’Etat droit dans le mur [O Estado na parede], Anne-Laure Delatte interroga as raízes econômicas do declínio da legitimidade estatal. Ela argumenta que, na França como em outros lugares, o aumento dos impostos sobre as famílias – a maioria deles regressivo – foi acompanhado pelo aumento dos gastos públicos em benefício das empresas. Isso criou um Estado viciado, orientado em grande parte para o setor financeiro, e uma população em geral cada vez mais desconfiada da formulação de políticas públicas.

Hoje, é fácil ver como uma política industrial ambiciosa poderia agravar tais vieses pró-corporativos. Os gestores de ativos estão especialmente ansiosos para aproveitar as novas oportunidades rentistas decorrentes do investimento em infraestrutura apoiado pelo Estado. Sem aumentar os impostos sobre as empresas e os rendimentos do capital e sem tornar as indústrias em propriedade pública direta, os subsídios estatais implicam uma transferência de recursos do trabalho e do setor público para o capital, exacerbando desigualdades e ressentimentos.

A adoção da política industrial pelo Ocidente é explicitamente motivada pela proeza produtiva chinesa. No entanto, não se pode exagerar a singularidade da China. Lá, o capital estatal é dominante graças à propriedade pública em setores estratégicos e à montante da estrutura econômica – ou seja, o “domínio dos cumes” em termos leninistas. Além de gozar de direitos formais de propriedade sobre ativos-chave, uma forma altamente específica de organização de classe estatal permite que o PC chinês exerça algum controle sobre o caminho geral de desenvolvimento do país.

A sua cultura de disciplina interna é crucial para atribuir aos políticos identidades duplas como senhores do capital e servidores do partido-Estado. Isso fornece uma base sólida para o planejamento público, permitindo que a acumulação privada coexista com forças modeladoras do mercado, como políticas de crédito e compras. A rede público-privada do PCCh também é altamente adaptável, permitindo que o governo implemente grandes mudanças políticas com relativa rapidez. Após a crise financeira de 2008, instruções políticas foram imediatamente transmitidas aos membros do partido em antecipação ao enorme pacote de estímulo estatal, resultando em uma resposta fiscal muito mais rápida e eficaz do que nos EUA ou na União Europeia.

Nas sociedades regidas pela democracia liberal, ao contrário, a disciplina efetiva sobre as corporações só pode vir da pressão popular externa em contraposição aos lobbies empresariais. Assim, para as organizações populares e os partidos de esquerda, a virada neoindustrial só é uma boa notícia na medida em que dá novo impulso a velhas preocupações: quem decide para onde vai o dinheiro? Quais são os seus objetivos? Como é usado? – se ele é ou não mal utilizado. Talvez, ao nos ajudar a formular tais questões, o neoindustrialismo acabe expondo ao sol a inadequação de suas próprias respostas.

*Cédric Durand é professor na Universidade de Sorbonne Paris-Norte. Autor, entre outros livros, de Techno-Féodalisme: Critique de l’économie numérique (La Découverte).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no blog da revista New Left Review.

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