Por VALERIO ARCARY*
Para as correntes marxistas que excluíram a hipótese de uma transição gradualista, que tinha um enfoque mais politicamente evolucionista que econômico, o problema teórico permanecia colocado
“O advento político de uma situação de duplo poder, acompanhado pelo início de uma crise económica, não permite uma resolução gradual. Quando a unidade do Estado burguês e a reprodução da economia capitalista são quebradas, o choque social resultante deve opor-se rápida e fatalmente à revolução e à contra-revolução numa convulsão violenta. Num tal conflito, o capital terá sempre uma base de massas, maior do que um punhado de monopolistas (…) O capitalismo não triunfou em nenhum país avançado do mundo hoje (Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Japão ou Estados Unidos ) sem conflito armado ou guerra civil. A transição económica do feudalismo para o capitalismo é, no entanto, a transição de uma forma de propriedade privada para outra. Será imaginável que uma mudança histórica muito maior implícita na transição da propriedade privada para a propriedade colectiva, que exige medidas mais drásticas de expropriação do poder e da riqueza, assuma formas políticas menos duras (…) A tradição a que pertencem estas concepções? é, de um modo geral, o de Lenine e Trotsky, Luxemburgo e Gramsci”. (Perry Anderson, Teoria, política e história: un debate com E. P. Thompson, p. 215).
A transição do feudalismo ao capitalismo foi, simultaneamente, um processo de passagem gradual e lenta, em que coexistiram por séculos relações sociais pré-capitalistas e capitalistas, e de luta política pelo poder entre duas classes proprietárias. Mas, se a transição burguesa ao capitalismo só se completou depois de revoluções e guerras civis, por que a transição socialista poderia ser mais indolor?
Esta conclusão peremptória, confirmada no laboratório da história de forma irrefutável, não é o bastante para anular o debate sobre a possibilidade de que se desenvolvam, nos porões do capitalismo, elementos que antecipam um modo de produção socialista. Sobre as hipóteses gradualistas de uma transição sem ruptura a tradição marxista se dividiu no último século em distintas opiniões.
O argumento de Perry Anderson é sugestivo: se as transições burguesas mais importantes, afinal uma passagem de poder de uma classe proprietária para outra, exigiram a luta revolucionária contra as resistências das forças sociais arcaicas, como não prever convulsões tão ou mais violentas, em uma transição em que a luta se desenvolve contra toda forma de privilégio?
A propósito dos paralelos históricos entre a transição do feudalismo ao capitalismo – compreendido como, simultaneamente, um processo de revolução social e revolução política – e a transição pós-capitalista, existe um instigante texto de Paul Singer no qual se retoma a possibilidade de uma transição gradualista.
Paulo Singer insiste na importância do sindicalismo, do cooperativismo e da seguridade social como elementos que antecipam, no interior do capitalismo, aspectos de relações econômico-sociais socialistas: “Examinando-se o conjunto do movimento cooperativista, tem-se a impressão de que, de todos os implantes anticapitalistas com potencial socialista, este – apesar dos pesares – é o de maior potencial e o que está mais exposto à contingência de perder sua essência para se amoldar ao ambiente e às exigências da competição com empresas capitalistas. A cooperativa operária realiza em alto grau todas as condições para a desalienação do trabalho e, portanto, para a realização do socialismo no plano da produção. Ela é gerida pelos trabalhadores, as relações de trabalho são democráticas, ela traduz na prática o lema: ‘de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades’ (…) Marx reconhece tanto na cooperativa operária quanto na sociedade anônima ‘formas de transição’ do capitalismo ao socialismo. (…) Agora, quanto à cooperativa operária, a visão de Marx se revela aguda e certeira. Em projeto, ela supera positivamente a contradição entre capital e trabalho, constituindo um elemento do modo de produção socialista, que se desenvolve a partir do modo de produção capitalista”.[i]
Essa hipótese desloca a centralidade do conceito de crise revolucionária como o momento crucial da estratégia, e afasta a ideia de ruptura. Ela repousa na possibilidade de um gradualismo econômico associado a um gradualismo político para pensar o processo de transição histórica, retomando assim, a inspiração do socialismo pré-marxista.
O próprio Marx foi no seu tempo um observador atento das cooperativas de produção como um fenômeno econômico sui generis: “As fábricas cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro da velha forma, a primeira ruptura da velha forma, embora elas naturalmente reproduzam e tenham de reproduzir em todo lugar, em sua organização real, as mazelas do sistema existente. Mas, dentro delas, a contradição entre capital e trabalho está superada, mesmo que inicialmente apenas na forma de que os trabalhadores, enquanto associação, são seus próprios capitalistas, o que significa que utilizam os meios de produção para a valorização de seu próprio trabalho. Elas mostram como, em um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e de suas correspondentes formas sociais de produção, se desenvolve e toma forma, a partir de um modo de produção, um novo modo de produção. (…) As empresas capitalistas por ações devem ser consideradas, tanto quanto as fábricas cooperativas, formas de transição do modo de produção capitalista ao (modo de produção) associado (ou socialista), somente que em uma a contradição é superada negativamente e na outra positivamente.”[ii]
Como se vê, Karl Marx era consciente de que as cooperativas expressavam, de uma maneira embrionária, as possibilidades que estariam abertas quando às formas socializadas da produção correspondessem formas socializadas de apropriação. E, como sempre, procurava no presente os elementos de antecipação do futuro.
Entretanto, é necessário assinalar que a posição de Marx face às cooperativas também evoluiu, várias vezes, ao longo de sua vida: (i) em função das experiências concretas das cooperativas, nos anos 1850, como se pode depreender da leitura de O 18 Brumário, era céptico sobre as suas perspectivas econômicas, dadas as suas dimensões necessariamente modestas, e a decorrente baixa rentabilidade podendo, na melhor das hipóteses, ser um ensaio para acumular experiência; (ii) em um segundo momento, nos anos 1860, que corresponde à resolução do Congresso de Genebra da Primeira Internacional, defende a importância precursora e educativa das cooperativas como forma socializada de produção e apropriação.
(iii) Já na Crítica ao programa de Gotha, Marx é severo em relação às cooperativas, provavelmente como resultado de uma dupla reflexão, (a) as conclusões político-revolucionárias que retirou da derrota da Comuna de Paris, que o levaram a colocar de novo o acento na necessidade de um programa centrado no eixo da disputa do poder político, e (b) por considerar importante que o partido alemão se libertasse dos elementos de Lassaleanismo, ainda muito presentes depois da unificação que originou o SPD, por encarar com reservas as reivindicações formuladas pelo “possibilismo” e, por último, deve ter pesado o balanço do impasse a que tinha chegado o movimento cooperativo na Inglaterra, frustrando as esperanças iniciais.
(iv) Por último, a sua posição final ao que parece resultado de uma longa reflexão e várias oscilações, seria a famosa passagem do livro III de O capital (cuja transcrição fizemos acima) em que retorna a um posicionamento esperançoso, e desenvolve a hipótese de que as cooperativas poderiam ser um elemento de antecipação do processo e das formas de socialização da propriedade.
Porém, 150 anos depois, ainda que existam experiências bem sucedidas no movimento cooperativista (embora, em geral, sejam mais perenes e estáveis as cooperativas de crédito do que as de produção) e admitindo-se também, com boa vontade, o papel pedagógico das novas relações de solidariedade de classe que elas estimulam, parece no mínimo um pouco exagerado, na época de corporações que detêm faturamentos maiores que PIB’s, considerá-las um fenômeno, no sentido estritamente econômico, importante o bastante para em alguma maneira contrabalançar o papel dos monopólios e cartéis.
Já os fundos públicos, em particular os previdenciários, que despertam a atenção de uma parte muito influente da opinião econômica socialista, inequivocamente ocuparam um papel central nos pactos sociais do pós-guerra. Mas daí a considera-los um elemento de socialismo dentro das relações sociais capitalistas, vai um enorme esforço teórico de imaginação: ou podemos esquecer que as reservas dos fundos, que acumulavam depósitos feitos durante décadas pelas gerações mais velhas, foram saqueadas pelo Estado para os mais variados e obscuros fins?[iii]
Sobre esta nova reivindicação histórico-teórica dos fundos públicos a partir da categoria de antivalor, vale a pena conferir a elaboração de Chico de Oliveira: “O caminho percorrido pelo sistema capitalista, e particularmente as transformações operadas pelo Welfare State, repõe a velha questão dos limites do sistema. A famosa previsão de Marx do fim do sistema foi lida literalmente, e interpretada comumente como uma catástrofe ao estilo de Sansão derrubando as colunas do templo. Ora, a história do desenvolvimento capitalista tem mostrado, com especial ênfase depois do Welfare State, que os limites do sistema capitalista só podem estar na negação de suas categorias reais, o capital e a força de trabalho (…) O fundo público, em resumo, é o antivalor, menos no sentido de que o sistema não mais produz valor, e mais no sentido de que os pressupostos da reprodução do valor contêm, em si mesmos, os elementos mais fundamentais de sua negação. Afinal, o que se vislumbra com a emergência do antivalor é a capacidade de passar-se a outra fase, em que a produção do valor, ou de seu substituto, a produção do excedente social, toma novas formas. E essas novas formas, para relembrar a asserção clássica, aparecem não como desvios do sistema capitalista, mas como necessidade de sua lógica interna de expansão”.
Enquanto esses recursos do Fundo Público continuarem a serem controlados por governos burgueses, muito antes de serem um mecanismo de redistribuição de renda, serão sempre uma reserva que o Estado poderá utilizar pra garantir os objetivos de política econômica de governos que respondem aos interesses do capital. Não nos esqueçamos o congelamento de aposentadorias e pensões e a introdução de novos tributos, como o desconto de contribuição para os aposentados, que significam descapitalização da previdência e parte importante dos ajustes fiscais que garantem a rolagem das dívidas públicas: esse processo não ocorreu só no Brasil, ao contrário, está inserido numa dinâmica internacional.
No entanto, também é certo que uma das pautas mais importantes da contraofensiva neoliberal tem sido, nos últimos quarenta anos depois de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, reduzir as contribuições estatais para os fundos, como forma de reequilibrar os orçamentos e, ao mesmo tempo, aumentar as isenções fiscais do capital, sem correr o risco do retorno das pressões inflacionárias na Europa dos anos 1970, que ameaçaria a convertibilidade das moedas (o dogma fundamentalista que protege o capital da desvalorização) em livre flutuação, desde o desatrelamento do dólar ao ouro feito por Richard Nixon.
A tese da transição gradualista seria revisionista? Sim. Mas revisionismo (assim como a qualificação de ortodoxo, por razões inversas), se presta a confusões e exige algum esclarecimento. Adquiriu uma conotação pejorativa, de alguma maneira. Em função da vitória de Outubro, ficou, freqüentemente, associado a reformismo e a oportunismo. Mas existiram e existem diferentes tipos de revisionismo.
Toda e qualquer corrente teórico-política que não se tenha esterilizado vive um permanente processo de revisionismo e, nesse sentido, todos os pensadores marxistas foram revisionistas, pelo menos, em alguma medida. Porque por revisionismo, não se deveria entender, estritamente, nada além de um processo de revisão de ideias anteriormente estabelecidas. Qual o significado, ou a substância da revisão, é algo que só pode ser analisado em cada caso concreto. Nesse sentido, o próprio Marx foi, portanto, revisionista, permanentemente, da sua obra. E não poderia ter sido de outra maneira, a menos que se recusasse peremptoriamente, a reavaliar as mudanças que ocorriam na realidade que o cercava, e não aceitasse readequar as suas ideias a essas transformações.
Uma interpretação da obra de Marx que desconheça que se trata de um pensamento em construção seria, como é óbvio, um disparate. Por outro lado, merece ser observado que revisionismo não é o mesmo que reformismo, e reformismo por sua vez não é o mesmo que oportunismo. O reformismo é uma doutrina política e o oportunismo um comportamento político.
Mas para as correntes marxistas que excluíram a hipótese de uma transição gradualista, no início do século, todos os que na Segunda Internacional se opuseram ao chamado revisionismo alemão agrupado junto a Eduard Bernstein, que tinha um enfoque mais politicamente evolucionista que econômico, o problema teórico permanecia colocado. Como resolver a questão da transição? A resposta teórica que se ofereceu a este aparente beco sem saída foi a definição da revolução socialista como a primeira revolução social que supõe um nível de consciência, adesão e de organização em torno a um projeto estratégico anterior à luta aberta pelo poder que seria único na história.
*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc]
Notas
[i] SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998. p.128-9.
[ii] MARX, Karl. O capital. Terceiro livro, p. 481, apud SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998.
[iii] OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do antivalor. Petrópolis, Vozes, 1998. p. 34-5.
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